PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
HELEM ALVES VIANA
AS AVENTURAS DE LÁZARO NAS TERRAS DO SEM FIM
O LER NO CIBERESPAÇO
MESTRADO EM TECNOLOGIAS DA INTELIGÊNCIA E DESIGN
DIGITAL
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
HELEM ALVES VIANA
AS AVENTURAS DE LÁZARO NAS TERRAS DO SEM FIM
O LER NO CIBERESPAÇO
MESTRADO EM TECNOLOGIAS DA INTELIGÊNCIA E DESIGN
DIGITAL
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Tecnologias da Inteligência e Design Digital, sob a orientação do Prof. Dr. Sérgio Roclaw Basbaum.
BANCA EXAMINADORA
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DEDICATÓRIA
AGRADECIMENTO
À mamãe e papai; a Swarnaly, Swat and Barny. OTÁVIO, Fellipe, Felippe, Doiara, LIGIA, Zé e Azulão, Jacyra e Lauro e Dilce e Gigante e Vanessa também. À WILZA e Wisnton e Gabrieis! Nei. E a elas, Anas e Marias, Joanas, Paulas, FLÁVIA. Lucias, Lucas e Lúcia Máximo! ArmANdo e Bias e Pedros e Aracele e Juca, Laras e Luanas; Mirians, Ritas, Araíde. Franciscas e Fábios Lisandro, Anaires e Naír e Daiana! TiZé, Helena, Marta e à irmã, Maria, LÉIA e Brunos, Katiúces e Gercino; Lenir e AriSilvo e Sâmia. Ana Lúcia, Floras e Isaura - Neides e Nanci. Sandra e Clayton e Cleylli. Fátima! Renatas! Priscila e Peach e Telma, Ramon e Neto. Filhos e Netos, Juniors e Mario. Sérgios e Célios, Césares e Alzira e Rose Linhares, Marcos e Cinha - Gilnei, Gilmara, Gilmar, Gilsomar. À Monclar a Isaías às MULHERES da UESC - alunas e professoras, faxineiras e zeladores, a Cosme e Kinho, Alexandre e Jeans; Cosmira, Joelma, Mariana. Ao ACE, a Itabuna, a Ilhéus, a Buerarema. À Gilmar Dória à Cleber Pinto, aos colegas aos amigos, aos primos, aos tios, aos avôs e às avós, aos alunos aos professores, às flores, Arlucia e Arletes e Dna Flor.
Para JESSICA, Nicolles e Samanthas, e Kingston e Butzy; às mulheres índias, da Índia ou não.
Aos pássaros e gatos, aos ratos e cães.
AS AVENTURAS DE LÁZARO NAS TERRAS DO SEM FIM
O LER NO CIBERESPAÇO
As tempestades para o pensamento humano produzidas pela magia de Gutenberg provocam, sobretudo em nossos dias, fascinantes perguntas sobre o destino da escrita, do livro e dos suportes nos quais guardamos nossas ideias e memórias. Este estudo investiga a experiência da leitura e a produção textual na contemporaneidade. Discute-se a literatura, o livro e suas transformações frente às novas tecnologias, apresentando a experiência de criação do livro digital multimídia Lazarus in the land of endlessness, feito no iPad, inspirado nas obras Memórias de Lázaro, de Adonias Filho, e Terras do Sem Fim, de Jorge Amado -- bem como no conceito de Commonplace book. Com base nas seis propostas de Italo Calvino e nos pensamentos de Katherine Hayles e Sérgio Basbaum, estabelece-se um diálogo sobre literatura nos dias de hoje; o livro analógico e o livro digital são discutidos a partir de teóricos como George Steiner, Vilém Flusser, Marshall McLuhan e Robert Darnton, dando especial atenção à crítica literária. Finalmente, diante da riqueza das novidades tecnológicas, da onipresença da mediação digital e das possibilidades abertas por essa revolução, a dissertação termina com a evolução e refinamento da pergunta inicial, quanto ao uso das novas tecnologias no ensino da literatura, já que o contexto contemporâneo não permite determinações conclusivas, enfatizando-se a importância do acesso à internet e às novas ferramentas tecnológicas-- dadas as possibilidades referentes ao futuro do livro e ao lugar da leitura no século XXI.
THE ADVENTURES OF LAZARUS IN THE LAND OF
ENDLESSNESS
READING IN CYBERESPACE
ABSTRACT
Storms to human thought produced by the magic of Gutenberg cause, especially in our days, fascinating questions about the fate of writing, books and media in which we keep our ideas and memories. This study investigates the experience of reading and textual production nowadays. It discusses literature, the book and its transformations in the face of new technologies, bringing the experience of creation of the digital multimedia book Lazarus in the land of endlessness, done on the iPad, inspired by the works Memories Lazarus by Adonias Filho and The violent Land of Jorge Amado - as well as the concept of Commonplace book. Based on the Six Memos for the Next Millennium by Italo Calvino and on the thoughts of Katherine Hayles and Sergio Basbaum, sets up a dialogue about literature today; the analogic book and digital book are discussed from theoreticians as George Steiner, Vilem Flusser, Marshall McLuhan and Robert Darnton, paying special attention to literary criticism. Finally, given the wealth of technological innovations, the ubiquity of digital mediation and the possibilities opened by this revolution, the dissertation ends with the evolution and refinement of the original question, regarding the use of new technologies in the teaching of literature, since the contemporary context does not allow conclusive determinations, emphasizing the importance of Internet access and to new technological tools - given the possibilities for the future of the book and the place of reading in the twenty-first century.
SUMÁRIO
Resumo vi
Abstract vii
INTRODUÇÃO 9
Capítulo 1: CONSIDERAÇÕES SOBRE LITERATURA 24
Capítulo 2: LÁZARO NAS TERRAS DO SEM FIM 37
Capítulo 3: O LIVRO 78
CONSIDERAÇÕES FINAIS 96
REFERÊNCIAS 100
INTRODUÇÃO
"Se é certo que nos deparam plantas e flôres desengraçadas ou pouco felizes, certo é também que nenhuma ha, inteiramente desprovida de discrição e habilidade. Todas se esmeram na execução do seu papel; todas têm a magnifica ambição de invadir e conquistar a superficie do globo, multiplicando infinitamente a fórma de existencia, que elas representam. Para atingir êsse alvo, e em razão da lei que as prende ao solo, têm a vencer dificuldades muito maiores, do que as dificuldades que se opõem á multiplicação dos animais. E assim é que a maior parte delas recorre a artificios, a combinações, a maquinismos, a ciladas, que, sob o ponto de vista da mecânica, da balística, da aviação, por exemplo, antecederam longamente as invenções e os conhecimentos do homem. [...] Concentra-se inteiramente numa só ambição: salvar-se, por cima, á fatalidade de baixo; evitar, transgredir, a pesada e sombria lei; libertar-se, partir a sua estreita esfera; inventar ou solicitar asas; fugir para tão longe, quanto possivel; vencer o espaço, em que o destino a confrange; aproximar-se de outro reino, em que ha movimento e vida... Se ela chegar a êsse reino, ¿ o facto não será tão surpreendente como se nós conseguissemos viver do tempo, ou entrar num universo, libertado das mais pesadas leis da matéria?
M A U R Í C I O M A E T E R L I N C K1
QR#1
A história da inteligência das flores, contada por Maeterlink, pode
facilmente ser substituída pela história do livro, pois de certo que nenhum
livro há que não queira abrir-se para o mundo, ganhar outras terras - em
nossa época, o sem fim da internet. Remetemos ao filme de animação,
vencedor do Oscar 2012 para curta metragem, The Fantastic Flying Books
of Mr. Morris Lessmore, como uma referência autoexplicativa para a escolha da epígrafe que
abre esta dissertação.
Neste estudo, investigaremos as transformações que vêm experimentando o mais
tradicional suporte de conhecimento produzido pela cultura ocidental, e hegemônico por mais
de 400 anos, o livro. Nos parágrafos que compõem esta introdução, faremos uma
rememoração, descrevendo a nossa relação com as palavras escritas, com o livro, com a nossa
construção de conhecimento. Falaremos, ainda, sobre nossa experiência enquanto professora
de inglês e do nosso espanto, quando nos foi sugerido, pela direção da escola, que não
utilizasse as novas tecnologias nem na escola, nem em projetos extraclasse. Muito da
motivação que nos conduziu ao presente estudo veio desse espanto.
Mencionaremos também a experiência de aplicar a mesma ideia na turma do segundo
semestre de 2008, de Teorias da Imagem, da Universidade Estadual de Santa Cruz, obtendo a
aprovação do professor da disciplina, Otávio Filho, para a utilização desses recursos. E, por
fim, destacaremos a importância deste programa de mestrado para o nosso enriquecimento
intelectual que favoreceu o desenvolvimento do projeto, inicialmente proposto, e também da
ideia primeira de produzir uma narrativa hipermidiática, inspirada em duas obras da literatura
sul baiana.
Vimos do Brasil profundo, onde a oferta de escolas é precária. De família muito
simples, nossa vida sempre foi nômade. Passamos a infância e adolescência sempre estudando
em colégios públicos e, não raras vezes, nossa família se mudou mesmo antes da conclusão do
ano letivo. Por questões religiosas, só tivemos contato com o ensino formal aos seis anos e
meio de vida, quando fomos à escola pela primeira vez. Sempre com muita dificuldade, tanto
na leitura como na escrita, a escola era para nós um lugar onde passávamos por momentos de
sofrimento e de insegurança, por não entender como aprender naquele ambiente.
Os primeiros livros com os quais tivemos contato eram relacionados à igreja: a Bíblia,
os hinários, as cartilhas, as coleções ilustradas das histórias da Bíblia e discos de vinil com
histórias em áudio. Um método utilizado para os momentos de oração, era a leitura
responsiva, em que uma pessoa lê um versículo e o grupo lê o seguinte a uma só voz.
Lembramo-nos de aprender a ler, sentada ao lado de nosso pai, vendo-o apontar as palavras,
uma a uma, para que se acompanhasse as músicas cantadas na igreja.
Demoramos mais que outras crianças para ler e escrever. Muitas vezes escrevíamos
de forma incorreta, com as letras trocadas, espelhadas; a leitura era muito lenta, por confundir
as letras e saltar as linhas. Embora tenha sido dolorosa a nossa experiência com o livro, não
queríamos correr dele. Adorávamos o mundo da fantasia. Utilizávamos, como alternativa, os
livros ilustrados. Fugíamos das palavras escritas, criando nossas próprias narrativas, a partir
das figuras. Com as constantes mudanças de endereço e, consequentemente, de escolas,
sentíamos cada vez mais dificuldades, chegando a repetir de ano. Aos quinze anos, nos
mudamos para a capital e, lá, pela primeira vez, começamos a frequentar uma biblioteca.
Antes mesmo de completar o segundo grau, em 1995, aos dezoito anos de idade, sem
nossa família, fomos para os Estados Unidos. Mal sabia ler e escrever em português,
expus-me ao desafio de aprender uma nova língua, do zero. Pois não falava ou escrevia o idioma.
Em cinco anos, com a ajuda dos computadores e dos audiobooks, aprendi o suficiente para
que pudesse passar em uma prova de importância equivalente ao do supletivo de segundo
Nossa sede pelo conhecimento e pela capacidade de melhor expressão fez com que
buscássemos alternativas à leitura, propriamente dita. Assistíamos muito televisão e
descobrimos as bibliotecas públicas que tinham, em seu acervo, além dos livros impressos,
versões em áudio, que ouvíamos, com frequência, especialmente no carro a caminho do
trabalho. Em casa, fazíamos a audição, acompanhando a leitura do livro impresso e até
mesmo a transcrição. Pudemos, assim, aprender a falar e reconhecer as palavras em inglês.
Isso nos ajudou a ter menos medo do livro impresso e buscando, cada vez mais, ler do modo
tradicional, passando os olhos pelas linhas, juntando, letra por letra, palavra por palavra,
absorvendo seu conteúdo, passo a passo. Com o tempo nossa compreensão e leitura se
tornaram muito melhor em inglês do que na nossa língua materna, com a qual já não tínhamos
quase contato.
Ainda lá, ao cuidar de uma criança, redescobrimos o talento para a contação de
histórias e naturalmente a vocação para professora. Decidimos então, após sete anos naquele
país, voltar ao Brasil, estabelecendo-nos na Bahia, indo estudar Letras com dois objetivos
claros: reaprender o português e obter a licenciatura.
Com a volta ao Brasil, começamos a viver uma experiência marcante, ao ensinar
inglês. Nessa experiência, foi possível reviver e procurar compreender quão paradoxalmente
ricos e dolorosos são os processos da aquisição do conhecimento. Foi aí, na sala de aula, que
nasceu a necessidade profunda de estudar, investigar, tentar compreender os mistérios e os
desafios envolvidos nesse processo. Tornou-se, para nós, uma questão existencial.
Como professora de inglês desenvolvemos e implementamos, com os colegas, um
projeto de incentivo à leitura. Tal projeto, intitulado Readers’Corner, tinha a duração de uma
unidade letiva, um semestre, e culminava em apresentações de releitura do romance lido por
toda a turma. Com ele, pudemos observar, de perto, o comportamento dos alunos diante do
Inconscientemente, observando a experiência alheia, tentávamos compreender a nossa
dificuldade em aprender a ler e a escrever na língua materna. Entretanto, como fazer um
adolescente ler o livro impresso, encantado que já está pelas facilidades do mundo digital?
Era a nossa inquietação e maior desafio naquele momento.
Ao longo deste texto, o leitor encontrará várias imagens, QR Codes, que permitem o
acesso a algumas obras aqui referidas. Tal recurso obedece ao espírito dessa investigação que
compreende o texto como um ambiente hipermidiático. Mas o leitor terá ainda a alternativa de
simplesmente clicar sobre a indicação numérica do QR Code e ter acesso ao endereço
eletrônico da obra referida; referimo-lo no que batizamos "QR-grafia" - após as referências
bibliográficas, no final do texto. Esta dissertação, portanto, obedece ao projeto do novo livro
que surge, o livro extendido2. Aqui, também ousamos, pela primeira vez, apresentar uma
epígrafe (no capítulo 2) que cita não um texto alfanumérico , mas um vídeo, postado no
Youtube.
Para nossa surpresa, dos alunos que participavam do programa de incentivo à leitura,
sobressaíam-se nas atividades desenvolvidas aqueles que tinham o game
como sua principal forma de "leitura ficcional". Os jogos preferidos por
esse novo leitor eram o The Sims e outros, como por exemplo, os
baseados em narrativas como as histórias criadas por John Ronald Reuel
Tolkien, que acontecem na “Terra Média”, mundo criado pelo autor para contar suas
aventuras fantásticas. Surpreendentemente, esses mesmos alunos eram os que traziam para as
aulas contribuições literárias como Dom Quixote de la Mancha, de Miguel de Cervantes, e a
famosa coleção Harry Porter, de J. K. Howling.. Em sala de aula, eles faziam associações de
2 Uma excelente referência nesse assunto é o livro Que é informação?e Robert K. Logan. Em sua passagem pelo
Brasil, o professor Bob Logan, como gosta de ser chamado, prometeu que seu livro será publicado, em breve, no formato sBook (SmartBook). O SmartBook é um projeto que está sendo encabeçado por Greg Van Alstyne, no
laboratório de Inovação Estética do Ontario College of Art and Design. Ver página 232-7.
leituras mais sofisticadas e enriquecedoras do que aqueles que não jogavam ou usavam o
computador regularmente, o que contrariava o senso comum corrente de que a internet seria
perda de tempo e de que os jogos incentivariam a violência. Pudemos observar, também, que
os jogos e sua realidade faziam com que os jogadores consumissem a literatura tradicional,
motivados pela compreensão do universo do jogo.
A partir daí, começamos a utilizar cada vez mais os meios
eletrônicos nas atividades extraclasse. Para testar a escrita dos alunos e
corrigi-la, incorporamos às aulas a criação de blogs3, incentivando a
interatividade entre os alunos fora da sala de aula. Essa metodologia,
pioneira na região, teve resistência por parte de alguns alunos e assustou muitos pais que
chegavam a proibir seus filhos de usar a internet. Com essa reação, a escola nos solicitou que
voltássemos ao modo tradicional de ensino. Para nosso conforto, o livro didático adotado para
o semestre seguinte trazia em si informações que só podiam ser acessadas pela internet, por
meio dos links que os livros forneciam. O ciberespaço não poderia mais ser evitado. Mais
cedo ou mais tarde, todos - escola, pais e alunos - estariam imersos nessa nova realidade. Para
nós, o desafio estava posto: como falar dessas mudanças? Como compreender o que está em
jogo?
Influenciados por essa inquietação, no segundo semestre de 2008, já no último ano da
licenciatura em Letras, demo-nos conta de que os estudos realizados até aquele momento, não
abarcavam essa nova realidade. No penúltimo semestre do curso, inscrevemo-nos nas aulas de
Teorias da Imagem, no curso de Comunicação Social, nas quais nos sentimos à vontade para
experimentar a utilização das novas tecnologias em sala de aula. Conseguimos uma parceria
com o professor da disciplina, e aplicamos juntos a metodologia anteriormente negada pela
escola de inglês.
3Veja um dos blogs desenvolvido durante o ensino inglês - http://owlishings.blogspot.com.br/
A turma foi dividida em cinco grupos e cada grupo era responsável por um capítulo do
livro e pela criação de um blog. Todos os blogs eram interconectados pela ferramenta
"seguidores" e todos os alunos deveriam seguir todos os outros blogs da turma, de modo que
qualquer alteração fosse sinalizada em seus e-mails. Nesses blogs eram postadas as atividades
propostas pelo professor, em sala de aula, como contraponto entre textos de outros autores,
leituras de imagens, resenhas e comentários. Todos os blogs permanecem no ciberespaço
como obras fechadas e interligadas entre si4.
Essa experiência com os blogs fez reacender a curiosidade a respeito da performance
dos gamers em sala de aula, que havíamos observado, quando professora de inglês.
Influenciados pelos alunos, redigimos o artigo intitulado From the playful Lewis Carroll's
Alice to the World of Warcraft's possibilities of play5, como trabalho de conclusão do curso de
Letras.
Durante o curso de Letras, tivemos a felicidade de fazer um exercício interdisciplinar,
frequentando a disciplina "Teorias da Imagem" do Curso de Comunicação. Lá, fomos
apresentados ao mundo das tecnologias da imagem e da hipermídia. Foi uma avalanche de
novos conceitos, novas ideias que estimularam uma imersão na literatura de Adonias Filho,
em Memórias de Lázaro, e de Jorge Amado, em Terras do Sem Fim.
A leitura reflexiva que fizemos dos contos de Jorge Luis Borges, em especial Funes, o
memorioso, que traz no próprio nome uma associação direta com a memória, um dos
principais elementos contidos no livro de Adonias Filho, e a leitura de Robert Darnton, em A
questão dos livros, fizeram surgir em nós a ideia de considerar o experimento intitulado
Lazarus in the land of endlessness, como um Commonplace Book, pois sua narrativa é uma
viagem que retoma, pelo fio da memória, dados marcantes dessa nova experiência de leitura,
em que o sistema de escrita alfanumérico já não é suficiente para o exercício do dizer.
No capítulo inicial, abordaremos o livro, a literatura e suas transformações, frente aos
avanços tecnológicos que têm modificado os modos como lemos, escrevemos e apreendemos
o mundo. Promovendo o diálogo entre tecnologia, literatura e sociedade, falaremos sobre as
velhas e novas práticas de leitura, sobre a reelaboração da literatura e das narrativas
contemporâneas, permitidas a partir do hipertexto.
Em poucas décadas, possivelmente, a grande maioria dos cidadãos do mundo terá
acesso à internet e as exceções, voluntárias ou não, certamente não passarão ilesas a tamanha
revolução. Muitos de nós tendemos a um amor desmedido, frente às novas tecnologias - a
isso se chama tecnofilia; esta se afirma contra aqueles que veem nas novas tecnologias sérios
perigos, e são conhecidos como tecnofóbicos6 - quer façamos parte de um grupo ou de outro, não deveremos perder de vista os perigos de ficarmos presos ao maniqueísmo que divide o
mundo entre o bem e o mal. O temor da ingenuidade do ser humano não se compara à nossa
sede por saber contar, por ver um dia "a simulação de nossos sonhos mais secretos num
ambiente virtual7". Encontramo-nos, inegavelmente, em uma fronteira que se desdobra em outras tantas, ao cair em outros ambientes, que nos levam a outros, extremamente sedutores,
esses que nos proporciona a internet, nossa 'terra média', terra de um 'sem fim' de informação.
O agenciamento de novos modos de cognição, surgidos a partir da transformação do
6 Em inglês, Technophilia: from Greek τέχνη - technē, "art, skill, craft" and φίλος - philos, "beloved, dear,
friend"; Tecnofobia: do grego τεχνη— "técnica, arte, ofício" e - Fobia (do Grego φόβος "medo" - medo da
tecnologia moderna.
7 Página 487 do livro
Muito além do nosso eu, por Miguel Nicolelis. O brasileiro nascido em São Paulo "está à
frente de um grande laboratório na Universidade Duke, o Duke´s Center for Neuroengineering, base física das
avançadas experiências com implantes de microeletrodos neurais em macacos que o tornaram conhecido no mundo todo. É também professor de neurociência na mesma universidade. Suas pesquisas foram publicadas na
Nature, na Science e em inúmeras outras revistas científicas. A Scientific American o elegeu um dos vinte
livro, é o questionamento sempre presente no decorrer dos parágrafos que se seguem. A
pesquisa, que surgiu da experiência de trabalhar com alunos adolescentes em um programa de
incentivo à leitura e do desejo de ver como seriam transpostos para esse novo ambiente,
personagens e mundos criados por autores brasileiros, evoluiu para uma investigação sobre as
mudanças que vêm ocorrendo na própria linguagem, sobre o conceito de livro, do lugar da
literatura em nossos dias, com base nos estudos da percepção, cognição, tecnologia e crítica
literária.
Dos anos de mil novecentos e noventa para cá, não só falamos e vivemos as
possibilidades que traz o hipertexto8 e os "prazeres da navegação"9 pelo mundo cibernético, mas também vivemos as possibilidades da ‘realidade aumentada’10 na produção literária. Um
bom exemplo é o livro Aliens & UFOs, da empresa alemã Metaio, apresentado na Feira de
Frankfurt, em 2008. Podemos, além do mais, experienciar oficinas literárias como a ‘Cave
Writing’,11 ministrada por Robert Coover12(HAYLES, 2008). Antes das novidades
tecnológicas, a literatura moderna já havia produzido experiências hipertextuais, no sentido de
produção de narrativas não-lineares e com inclusão de imagens. Como exemplo, temos
Ulisses, de James Joyce (1922) e O jogo da Amarelinha13, de Julio Cortazar (1963). Jane
8 O hipertexto, que é uma forma explícita e exacerbada de interação, e assim como a memória humana, é
organizado de forma espacial podendo “propor vias de acesso e instrumentos de orientação em um domínio de
conhecimento sob a forma de diagramas, de redes ou de mapas conceituais manipuláveis e dinâmicos.” (LÉVY,
1993).
9 Como afirma Jannet Murray, em seu livro Hamlet no Holodeck, de 1997.
10 Realidade Aumentada é definida usualmente como a sobreposição de objetos virtuais tridimensionais, gerados
por computador, com um ambiente real, por meio de algum dispositivo tecnológico. (...) A Realidade Aumentada também pode ser definida como a inserção de objetos virtuais no ambiente físico, mostrada ao usuário, em tempo real, com o apoio de algum dispositivo tecnológico, usando a interface do ambiente real, adaptada para visualizar e manipular os objetos reais e virtuais (Kirner and Kirner, 2007). In.: http://www.realidadeaumentada.com.br/, Pode-se fazer um curso on-line ou encomendar um trabalho em RA.)
11 “Cave Writing”, uma plataforma altamente sofisticada, criada para promover a criação literária em
RV(Realidade Virtual), já sendo oferecida há anos, pelo curso de Letras da Brown University.
12 Robert Lowell Coover (4 de Fevereiro de 1932) é um autor e professor americano. Ele é geralmente
considerado um escritor de metaficção e fabulações.
13 Na página 11 do livro O jogo da amarelinha, de Julio Cortázar (edição de 1985, da editora Abril Cultural),
Yellowlees Douglas14 , em seu livro The end of books - or books without end?, de 2004, nos oferece, logo nas primeiras páginas (p.VIII), uma linha do tempo com algumas das narrativas
interativas mais expressivas, colhidas desde 1759 até 199815.
As pesquisas sobre as narrativas contemporâneas datam de algum tempo. Desde
Theodor Nelson, que cunhou o termo hipertexto, nos anos de 1960, muitos já trilharam esse
caminho. Entre eles, George P. Landow (1997), Espen J. Aarseth16 (1997), Janet Murray (1997) e Katherine Hayles17, (2008).
George Landow, em Hypertext 2.0: The Convergence of Contemporary Critical
Theory and Technology (1997), fala sobre o fenômeno e sobre a necessidade do homem em
criar artifícios e ferramentas para se expressar. Talhadeira, pena/papiro, instrumentos de
ferro/inscrições em pedras, papel/tinta e, por fim, teclado/tela de um computador ou
14 A autora dedicou quase dez anos estudando hiperficção e ficção interativa. Seus trabalhos em Literatura
Eletrônica a renderam vários artigos sobre hypertexto e narrativa:
15An Interactive Narrative Timeline: 1759-Laurence Sterne's The Life and Opinions of Tristram Shandy first
appears in print; 1776-Samuel Johnson declares, "Nothing odd will do long. Tristram Shandy did not last."; 1914-James Joyce's Ulysses first appears in print; 1915-Ford Madox Ford publishes The good Soldier: A Tale of Passion; 1915 Ford Madox Ford publishes The Good Soldier: A tale of Passion; 1938-Louise Rosenblatt's Literature as Exploration argues for the importance of the transactions between readers and texts; 1939-Roosevelt's science adviser, Vannevar Bush, describes a hypertext-like device, the Memex, in "Mechanization and the Record"; 1949-Jean Paul Sartre's What is literature? introduces readers to the central tenets of what later becomes known as reader-response theory or reader-centered criticism; 1960-Marc Saporta publishes Composition No I, a novel on cards; 1962-Douglas Engelbart's paper "Augmenting Human Intellect: A concenptual Frameword" describes the document libraries, multiple windows, and links between texts that later become parts of the AUGMENT system; 1963-Julio Cortázar's Rayuela (Hopscotch) includes alternative orders for reading its segmented text; 1965-Ted Nelson coins the term hypertext; 1967-The Atlantic Monthly prints John barth's "The Literature of Exsaustion," which suggests that "intellectual and literary history... has pretty well exhausted the possibilities of novelty. "; 1990-Michael joyce publishes Afternoon, a story, the first hypertext novel; 1992-Robert Coover introduces mainstream readers to the possibilities of hypertext fiction in the provocatively titled essay "The end of books", in the New York times review of Books; 1997-W.W. Norton Company inclues two hypertext fictions in tis Postmodern American Fiction: A Norton Anthology alongside works by Barth, Burroughs, Gass, and Pynchon; 1998-flamingo, a British imprint of HarperCollings, publishes Geoff Ryman's 253: The Print Remix, a print rersion of the hypertext narrative 253, first published two years earlier on the World Wide Web. (DOUGLAS, 2004, p. VIII)
16 Espen Aarseth é figura respeitada nas áreas de estudos de videogame e literatura eletrônica. O livro Cybertext,
foca na organização mecânica de textos, colocando o meio, ou seja, a midia, como parte fundamental dos intercâmbios literários. Ele introduz o conceito de literatura ergódica, que é um texto que exige esforço não trivial a ser percorrido, aborda uma teoria (pré-ludological), "tipologia de cibertexto", que permite que os textos
ergódicos sejam classificados pelas suas qualidades funcionais.
17 N. Katherine Hayles é crítica de literatura pós-moderna. Conhecida por suas contribuições para os estudos da
dispositivo móvel. Enfim, o homem está sempre criando ferramentas que lhe permitam
significar e ressignificar o mundo.
Roger Chartier (1999), em A aventura do livro: do leitor ao navegador, fala-nos do
novo leitor, aquele que interage, que é capaz de lidar com criações audiovisuais, com textos,
com sofisticados níveis de interação, com banco de dados e infinitas combinações entre texto,
imagens e som. Este novo leitor é capaz também de ser editor e autor. Suas ações não são
pré-determinadas por uma narrativa fixa e resultam em uma miscelânea, possibilitada pela
variedade de opções.
Assim, a utilização do hipertexto e das expressões hipermidiáticas aponta caminhos
que podem ser seguidos na construção de novas possibilidades narrativas. A literatura
encontra-se em um rico e instigante momento de reelaboração com a incorporação de som e
imagem, oferecendo ao autor grande aproximação com seu leitor, pois agora a possibilidade
de autoria pelo próprio leitor tornou-se fato.
Essas investigações contemporâneas encorajam um diálogo entre a tecnologia e a
literatura existente. Uma leitura indispensável para a compreensão do lugar do imaginário
brasileiro em terras cibernéticas é o livro Made in Brasil: três décadas de vídeo, organizado
por Arlindo Machado. O autor do livro Máquina e imaginário reúne textos de nomes
conhecidos universalmente no mundo acadêmico, como é o caso de Giselle Beiguelman,
autora de O livro depois do livro, disponibilizado em versão analógica e digital.
A utilização de autores brasileiros em exercícios hipermidiáticos é uma forma de
manter a memória de obras de grande importância para a cultura nacional. Ou seja, os novos
recursos tecnológicos podem nos orientar num diálogo enriquecedor sobre a cultura brasileira,
com esses autores que alcançaram importância universal, como é o caso de Jorge Amado e de
literatura fantástica utilizada para as novas aventuras do pensamento.. A eles voltaremos no curso do Capítulo II, Lazarus in the land of endlessness.
Há que se considerar que a indústria literária lida hoje tem um público muito diferente
do de vinte anos atrás, fortemente atraído e interessado por novidades tecnológicas, por
cultura e entretenimento advindos dessas tecnologias. Podemos destacar aqui o crescente
número de pessoas imersas em ambientes virtuais que permitem a criação de suas próprias
histórias, como, por exemplo, o jogo World of Warcraft18, que conta com mais de 12 milhões
de jogadores em todo o mundo. Frente a esse fenômeno, torna-se urgente o estudo das
possibilidades de construção de novas formas literárias que consigam dar conta de atrair esse
público e incentivá-lo tanto para a apreciação da rica literatura brasileira em livro analógico,
como para a criação de narrativas digitais hipermidiáticas.
Admitindo que as novas tecnologias proporcionam uma nova forma de interação com
o texto, acreditamos que uma orientação adequada quanto a seu uso possa despertar no leitor
em formação, tanto o interesse pela literatura tradicional como um enriquecimento cultural
global.
É sabido que os jovens de hoje têm preferência por jogos eletrônicos e pelo uso do
computador e da internet em lugar da antiga forma de leitura que, segundo Chartier (1999),
era vista como uma atividade solitária, pouco alinhada aos agenciamentos coletivos do mundo
em rede. Com as mudanças tecnológicas ocorridas no final do século passado, grandes são os
18 Para melhor compreensão da convergência dos
games com a Internet, que proporciona uma interação imediata
entre os jogadores imersos em MMORPG, seus aspectos sociais e de que forma estes podem enriquecer a experiência do jogo ao se organizarem em coletivo, veja: http://gitsufba.net/simposio/wp- content/uploads/2011/09/Companhias-de-Outro-Mundo-um-breve-olhar-sobre-a-sociabilidade-em-rpgs-online-THOMAZ-Felippe.pdf. / Massive Multiplayer Online Role-Playing Game (adaptações dos RPGs de mesa para o
atrativos por produtos audiovisuais e hipermidiáticos. Essas mudanças fizeram com que a
prática da leitura fosse reprogramada ao modo do dizer flusseriano 19.
O mundo encontra-se na era da informática. Pierre Lévy, afirma que “As relações
humanas passam por um destes raros momentos em que, a partir de uma nova configuração
técnica, quer dizer, de uma nova relação com o cosmos, um novo estilo de humanidade é
inventado” (LEVY, 1993, p.17). E como devemos nos aproximar do real tal como
compreendido pelos nativos de um mundo em que textos digitais são a norma? Que
comportamentos sociais devemos observar para melhor sabermos ler as imagens técnicas que,
segundo Flusser, "devem sua origem à capacidade de abstração específica que podemos
chamar de imaginação" (FLUSSER, 2011, p. 21). E quanto aos residentes digitais, que
comportamento esperar nos seus modos de leitura, programados para ler o mundo segundo os
parâmetros de tempo e espaço pertencentes à "galáxia de Gutenberg"?
Embora alguns estudos, como os mencionados no artigo O contexto dos novos
recursos tecnológicos de informação e comunicação e a escola, publicado em 2008, insistam
em classificar o jovem de hoje como pouco afeito à leitura ou digam que ele lê menos do que
os jovens das gerações passadas, existem autores como Janet Murray20 (1997) e Katherine Hayles (2008), que afirmam haver literatura no ciberespaço, presente nos games e em
produtos considerados cibernarrativas21,22.
19 Vilém Flusser, foi um escritor e jornalista tcheco, que viveu e ensinou no Brasil por longo período. Seus
primeiros trabalhos são marcados pela discussão do pensamento de Martin Heidegger e pela influência do existencialismo e da fenomenologia. O autor certamente contribui para a discussão sobre esse período na história, de uma dicotomia entre adoração do texto e a da imagem. Ele tende, nos parece, hora para a textolatria Seu livro Filosofia da caixa preta, nos apresentado pelo professor Sergio Basbaum, é influência constante no
modo com que nos aproximamos dos textos e autores citados neste trabalho.
20 Janet Murray, nos fala dos prazeres narrativos que os ambientes digitais podem nos proporcionar e, do poder
transformador das histórias. "As Scheherazade and Jesus both knew, storytelling can be a powerful agent of personal transformation. The right stories can open our hearts and change who we are. Digital narratives add another powerful element to his potential by offering us the opportunity to enact stories rather than to merely witness them" (MURRAY, 1997, p. 170).
21 Existem vários teóricos favoráveis à implementação das novas tecnologias na aprendizagem, pois observam
A leitura a partir da tela se transforma numa aventura, ganha ressignificações, e o
leitor não é mais passivo, ele é inter-ator, e navega por ambientes como museus virtuais, tem
acesso a serviços como blogs, fóruns e comunidades, onde disponibilizam seus textos para
download ou para leituras online. As novas tecnologias, mediadas pelo computador, superam
em muito as expectativas de Theodor Nelson, que cunhou o termo hipertexto, e as de
Vannevar Bush que, em 1945, enunciou pela primeira vez a ideia de hipertexto.
Lá se vão mais de duas décadas de tremendos avanços tecnológicos, depois da
publicação do livro de Pierre Lévy, As tecnologias da inteligência: O futuro do Pensamento
na Era da Informática23. Desde então, os computadores estão por toda parte e, aqueles que
não podem ter seu próprio equipamento, podem dirigir-se a uma lan house, ou ainda ter
acesso gratuito em bibliotecas e escolas públicas24. É de se esperar, obviamente, que o sonho dos pioneiros dessa revolução tecnológica e de pensadores como Pierre Levy e Manuel
Castells esteja finalmente se tornando realidade.
Chartier (1999) chama a atenção para os registros imagéticos de livros e de leitores
que mostram a história das práticas de leitura, que até o sec. XVIII revelam leitores “no
interior de um gabinete, de um espaço retirado e privado, sentados e imóveis” (CHARTIER,
1999, p.79), o que dá a ideia de que a leitura era para poucos, um ato forçoso, entediante.
Somente após o século XVIII, é que se tem registros de um novo comportamento: “o leitor na
natureza, o leitor que lê andando, que lê na cama” (CHARTIER, 1999, p.78).
era do videogame “são mais ágeis para resolver quebra-cabeças e tem mais destreza com as mãos do que a geração da televisão” (JOHNSON,apud THOMAZ, 2012, p. 78)
22 É importante manter em mente o que este trabalho não é. E ele não é um trabalho em torno do conceito de
ciberespaço ou cibernarrativa, no entanto, não deixamos de fazer algumas leituras referentes ao assunto. Gaston Bachelard, com sua fenomenologia da imaginação poética, especialmente com o texto A poética do espaço, é
uma de nossas referências.
23 Em Frances: Les Technologies de l’intelligence. L’avenir de la pensée à l’ère informatique, La Découverte,
Paris 1990.
24 Veja um relatório sobre o uso de laptops por crianças:
A partir da invenção do filme, do rádio e mais tarde da televisão, já no sec. XX,
percebe-se uma expansão das formas de comunicação em direção ao uso de todas as nossas
ferramentas ou de todas as nossas tecnologias da inteligência; uma retomada da forma mais
natural de comunicação do homem, que é a comunicação sensorial. Ou seja, "pela primeira
vez na história, integra no mesmo sistema as modalidades escrita, oral e audiovisual da
comunicação humana. O espírito humano reúne suas dimensões em uma nova interação entre
os dois lados do cérebro, máquinas e contextos sociais" (CASTELLS, 1999, p.354).
Vivemos hoje essa realidade. Dispomos de equipamentos que permitem uma
comunicação em que estão presentes imagens, textos e sons. Mas essa não é uma simples e
tranquila passagem. De acordo com Chartier (1999), trata-se de uma brutal “ruptura da
continuidade e (...) necessidade de aprendizagens radicalmente novas” (CHARTIER, 1999, p.
93). O livro, formal ou informalmente, construiu a sociedade ocidental.
São quatro, os movimentos do texto:
O primeiro capítulo, que descreve o projeto deste estudo, apontando sua questão, hipótese e a metodologia aplicada para tal empreendimento.
O segundo capítulo faz a descrição do processo de criação da narrativa em linguagem hipermidiática, chamada Lazarus in the land of endlesness, inspirada nos autores e obras supracitados e na noção de commonplace book. O terceiro capítulo fala sobre o livro e sua transformação frente às mudanças
decorrentes da revolução tecnológica, bem como nas formas de se ler e escrever na contemporaneidade.
Capítulo 1
CONSIDERAÇÕES
SOBRE LITERATURA
"O hábito exprime o poder que temos de dilatar nosso ser no mundo ou de mudar de existência anexando a nós novos instrumentos".
MAURICE MERLEAU-PONTY25
25
Às vezes me parece que uma epidemia pestilenta tenha atingido a humanidade inteira em sua faculdade mais característica, ou seja, no uso da palavra, consistindo essa peste da linguagem numa perda de força cognoscitiva e de imediaticidade, como um automatismo que tendesse a nivelar a expressão em fórmulas mais genéricas, anônimas, abstratas, a diluir os significados, a embotar os pontos expressivos, a extinguir toda centelha que crepite no encontro das palavras com novas circunstâncias.
ITALO CALVINO26
E literatura, o que vem a ser? Existem muitas respostas para essa pergunta, ou apenas
uma, dita de várias formas. Todavia, as respostas poéticas, são provavelmente as que amantes
do livro em todos os lugares mais se lembram, de core, como é o caso da definição dada por
Mario Vargas Llosa, em seu discurso de agradecimento pelo Premio Nobel, concedido a ele
em 2010: "A literatura é uma representação (falaz) da vida que, sem dúvida, nos ajuda a
entender melhor, a nos orientarmos pelo labirinto em que nascemos, vivemos e
morremos"27,28.
A literatura pode ser definida como um "conjunto de obras literárias de reconhecido
valor estético, pertencentes a um país, época, gênero etc" (HOUAISS, 2001, p. 1772). Liter-,
segundo o dicionário é
o antepositivo do latim litttera,ae 'letra do alfabeto, caráter de escrita', litterārum ordĭne
'na ordem alfabética'; coresponde ao gr. grámma, atos, de que littera tomou todos os
sentidos; o coletivo litterae, como grámmata, designa uma 'carta' (= gr. epistolē
'epístola'), depois, toda espécie de obra escrita e, em seguida, 'a literatura, as belas-letras'
e, de modo geral, 'a cultura, instrução'; illiterātus é a tradução do gr. agrámmatos;
litterātus é uma transposição canhestra do gr. grammatikós 'que concerne à arte de
escrever ou ler, à ciência ou arte de ler e escrever, à gramática' (HOUAISS, 2001, p. 1771).
Muito provavelmente iremos conhecer novos acréscimos às definições já existentes
em nossos dicionários. Hoje, não importa o país, o gênero ou suporte, a literatura é "escrita"
26 (CALVINO, 2010, p. 72)
27 Tradução livre: "La literatura es una representación falaz de la vida que, sin embargo, nos ayuda a entenderla
mejor, a orientarnos por el laberinto en el que nacimos, transcurrimos y morimos"
28 Trecho do discurso de agradecimento do escritor peruano Mario Vargas Llosa pelo Premio Nobel concedido
em linguagem multimídia29. O que deve ser seriamente levado em conta pelo literato,
"letrado[...], intérprete, explicador, explanador e exegeta de poetas e poesias, crítico,
comentador, comentarista" (HOUAISS, 2001), ao se deparar com um texto. Mas, seria, a
literatura, como nos sugere Vargas Llosa, tão importante para compreendermos a nós
mesmos? No livro Introdução à Literatura Fantástica, originalmente publicado em francês, em
1970, Tzvetan Todorov nos diz:
Ora, a literatura, sabemos, existe precisamente enquanto esforço de dizer o que a
linguagem comum não diz e não pode dizer. Por esta razão a crítica (a melhor) tende sempre a
se tornar ela mesma literatura: só se pode falar do que faz a literatura fazendo literatura. É
apenas a partir desta diferença relativamente à linguagem corrente que a literatura pode se
constituir e subsistir. A literatura enuncia o que apenas ela pode enunciar. Quando o crítico
tiver dito tudo sobre um texto literário, não terá ainda dito nada; pois a própria definição da
literatura implica que não se possa falar dela (TODOROV, 2007, p. 27).
Todorov, que é filósofo e linguista, reconhece que tais reflexões não devem deter o
crítico literário, que faz bem em tomar suas palavras, sim, como apoio para uma
conscientização dos limites que não podem ser ultrapassados, no caso das primeiras páginas
do livro em questão, dos limites que se impõem na busca de uma regra que permita aplicar o
termo "obras fantásticas" em muitos tipos de textos.
É importante ressaltar que qualquer investigação relacionada a gêneros literários passa
ao largo do escopo deste trabalho. O que nos interessa aqui é saber encontrar os caminhos que
nos levarão ao entendimento dos 'poderes mágicos' do contar. Pois assim como hoje nos são
29 O livro O que é hipermídia, lançado em 2011, pelo professor Doutor Sergio Bairon, é uma boa leitura em
torno deste assunto. Ele entende por hipermídia "a expressão não linear da linguagem, que atua de forma multimidiática e tem sua origem conceitual no jogo. Num sentido metodológico, a característica não linear da linguagem expressa todo caminho da compreensão de algo que não dependa unicamente da exposição sequencial do conteúdo. Em nível técnico, sua atuação multimidiática significa que, no mesmo ambiente, temos imagens (fixas ou em movimento), textos e sons que sustentam o conteúdo exposto. No aspecto filosófico, a linguagem hipermídia, quando compreendida como um jogo, assume o princípio de que linguagem e ser são sinônimos, o
clássicas as histórias contadas por Shakespeare, Beethoven, Borges, Picasso ou Chaplin,
muitas das histórias que contamos em nossos dias, não importa o suporte em que estejam
apresentadas ou o gênero em que estejam classificadas, serão consideradas clássicas amanhã.
O crítico literário Antonio Cândido30, em seu livro Literatura e Sociedade, afirma que:
A arte, e portanto a literatura, é uma transposição do real para o ilusório por meio de uma estilização formal, que propõe um tipo arbitrário de ordem para as coisas, os seres, os sentimentos. Nela se combinam um elemento de vinculação à realidade natural ou social, e um elemento de manipulação técnica, indispensável à sua configuração (CÂNDIDO, 2000, p.47-8).
Arte, portanto a literatura, diz Cândido, é fruto da confluência entre indivíduo e
sociedade. Ele afirma que a obra de arte, sendo investigada sociologicamente, é um sistema
simbólico de comunicação inter-humana, ou seja, sofre influências concretas de fatores
socioculturais, ligados, principalmente, à estrutura social, aos valores e ideologias e às
técnicas de comunicação31. Quando se fala na técnica do escritor, é preciso levar em conta a medida em que essa técnica, que lhe permite escrever livros, deriva diretamente das
possibilidades materiais e tecnológicas que o suporte livro lhe impõe. Talvez, poder-se-ia
sugerir, tenha faltado a Cândido entender McLuhan.
Ainda buscando compreender a importância da literatura para o humano, podemos
evocar Janet Murray, que nos fala das "filhas de Eliza", um programa de computador que,
feito para soar como um terapeuta rogeriano32, foi programado para ecoar, sem interpretações,
as falas de seus "pacientes" e marcou o momento em que "o primeiro personagem
30 As e questões desenvolvidas por Antonio Candido em Literatura e Sociedade, liga Crítica literária à
sociologia. O livro foi escrito a partir de uma exposição feita pelo autor, no II congresso de Crítica e História Literária, realizado na faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Assis, em julho de 1961.
31 Remetemos à leitura da tese de doutorado do professor Otávio Filho, A dimensão técnica nas expressões
hipermidiáticas, defendida em 2006.
32 A terapia rogeriana foi desenvolvida por Carl Ransom Rogers - o terapeuta rogeriano tem a função fazer com
completamente baseado em computador foi criado33." (MURRAY, 1997, p.68). Nas conversas
entre homem e máquina, Eliza gerava respostas tão convincentes, que era capaz de enganar
qualquer desavisado. Murray relata um diálogo que ficou famoso, entre Eliza e o
vice-presidente da empresa onde o cientista teuto-estadunidense Joseph Weizenbaum, trabalhava:
Vice-presidente: Você acha que eu posso usar o computador esta manhã? Teletipo: POR QUE A PERGUNTA?
Vice-presidente: Talvez eu possa fazer algumas outras vendas de telcomp (sistema de computador).
Teletipo: POR QUE NÃO TEM CERTEZA?
Vice-presidente: Meus potenciais clientes nunca viram uma demonstração do sistema.
Teletipo: Será que isso significa muito para você? Vice-presidente: Isso é ridículo.
Teletipos: Me fale mais sobre seus clientes potenciais. Vice-presidente: Por favor, me ligue no 491-1850
O vice-presidente, não digitando o ponto final, fez com que a máquina não respondesse, o que o deixou furioso e, logo em seguida, ligou para o colega:
Vice-Presidente: Por que você está sendo tão esnobe comigo?
Pesquisador: O que você quer dizer com eu estou sendo tão esnobe com você?34
A "terapia" de Eliza funcionou - vários membros da equipe de Weizenbaum exigiram
uma conversa com a máquina, a sós, diz Murray. No entanto, o desconforto causado no
33 Tradução livre: "the first completely computer-based character was created". (MURRAY, 1997, p.68) 34 Tradução livre:
"Vice president: Do you think that I can use the computer this morning? Teletype: WHY DO YOU ASK?
Vice president: I might be able to make some additional telcomp (computer system) sales. Teletype: WHY AREN'T YOU SURE?
Vice president: My prospective customers have never seen a demonstration of the system. teletype: Does this mean very much to you?
Vice president: This is ridiculous.
teletype: TELL ME MORE ABOUT YOUR PROSPECTIVE CUSTOMERS. Vice president: Please dial me up on 491-1850
[...]
Vice President: Why are you being so snotty to me?
researcher: What do you mean why am I being so snotty to you?" (Explosão de raiva)
próprio Weizenbaum35, o fez advertir-nos, em um livro que escreveu em seguida, dos perigos
de se atribuir qualidades humanas às máquinas36.
Seria muito cedo ainda para esperarmos que leitores acostumados à leitura da palavra
impressa possam apreciar, facilmente, a literatura que pode ser encontrada, por exemplo, nos
games? Não há como sabermos ainda, mas não podemos negar que as histórias contadas em
meio eletrônico vêm guiando nossos caminhos pelos espaços virtuais, forçando o humano a
passar por alterações cognitivas que, cada vez mais, chamam a nossa atenção. A presença dos
jogos na cultura contemporânea é tão evidente que intelectuais como Jane McGonigal37
atribuem aos games nada mais nada menos do que a tarefa de salvar o mundo. Ela define
Jogos de realidade alternativa (alternative reality games) - ela, uma divertida intelectual
superstar, faz lembrar McLuhan, ponto. Suas palestras são entretenimento garantido ou
deveriam ser, ao menos para literatos. Henry Jenkins, em seu livro Cultura da convergência,
lista a definição de McGonigal em seu glossário, logo após sua "Youtubologia":
Jogos de realidade alternativa (alternative reality games): segundo Jane McGonigal, "drama interativo jogado on-line e em espaços do mundo real, ocorrendo em várias semanas ou meses, no qual dezenas, centenas, milhares de jogadores se encontram on-line, formam redes sociais de colaboração e trabalham juntos para resolver um mistério ou um problema que seria absolutamente impossível resolver sozinho" (McGONIGAL,
apud JENKINS 2009, p. 382).
Após 34 dias desejando a morte por causa de uma lesão cerebral, McGonigal
encontrou uma forma de pedir por ajuda, diz ela, em uma palestra ao TED38, criando um jogo
aberto para todos, a fim de curar seu cérebro, o SuperBetter. Depois de alguns posts e vídeos
35 Para a curiosa lista de pensadores teuto-estadunidenses:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Categoria:Teuto-estadunidenses
36 O livro de Weizenbaum: Computer Power and Human Reason: From Judgment To Calculation.
37Veja uma de seus vários talks disponíveis na rede em:
http://www.ted.com/talks/jane_mcgonigal_gaming_can_make_a_better_world.html
38 "TED (acrônimo para
Technology, Entertainment, Design; Tecnologia, Entretenimento, Projeto ou Desenho
com tutoriais sobre como jogar, pessoas de várias partes do mundo começaram a adotar suas
identidades "secretas", recrutando seus aliados "secretos" para superar dores causadas por
vários tipos de doença.
Seu modo fantástico-literário do dizer, suas palavras cheias de otimismo e a
notoriedade de suas aparições podem causar um certo desconforto no
meio acadêmico, ainda hoje formado por pensadores, geralmente
apegados aos modos tradicionais de aquisição de conhecimento, o que
poderemos confirmar mais à frente, no capítulo 3, O livro.
Já o desconforto causado pelo medo de perder o precioso livro objeto39, ou seja, o
livro impresso, como o grande suporte do conhecimento, mostra ser até mesmo capaz de
causar desconforto a pensadores do quilate de Umberto Eco, que chegou a não só ignorar
narrativas combinatórias em 1962, em seu livro Obra aberta, mas também a publicar Não
contem com o fim do livro, em 2010.
Um dos nomes mais citados em artigos e livros acadêmicos, quando o assunto permeia
as mudanças pelas quais o conceito de literatura vem passando, é o de Katherine Hayles que
tem seus interesses voltados para a relação entre ciência, tecnologia e interhumana, literatura
dos séculos XX e XXI, em seu livro Electronic Literature. Ela convida os literatos a atentarem
para o fato de que a "literatura no século XXI é computacional" (HAYLES, 2008, p. 43).
Assim como ela, acreditamos que a literatura eletrônica, em seu caráter experimental,
híbrido e diverso, pode nos auxiliar a compreender as transformações nos modos perceptivos
39 O scrap of paper mais popular dos primeiros anos do século 19 popularizou certos romances e autores aqui no
Brasil, a exemplo de Manuel Antônio de Almeida. com Memórias de um sargento de milícias, publicado
originalmente em folhetins, pelo Correio Mercantil do Rio de Janeiro, entre 1852 e 1853. Uma passagem do
livro a Aventura do livro experimental, toma de subito nossa lembrança: "O folhetim - a exemplo da La vieille fille, de Balzac, publicado em La Presse, de 23 de outubro a 4 de novembro de 1847 - , chega para cumprir o
papel de popularizar certos romances e autores, de levar alguns leitores à obra e autoria. Inserido no jornal, que pode ser comprado a preço acessível, o folhetim fragmenta a estória e a oferece em etapas. O livro resgata a completude, a estória integral. Os jornais acabam fazendo publicidade para o editor. O universo editorial se retroalimenta". (PAIVA, 2010, p. 58-59)
e cognitivos pelos quais estamos todos passando. Lançado em 2008, o livro é uma publicação
intimamente ligada ao trabalho da ELO - Electronic Literature Organization40 e inclui um site
e um CD-ROM (já obsoleto), oferecido com a intenção de servir como recurso pedagógico,
que facilite a entrada dessa nova literatura nas salas de aula.
E o que vem a ser Literatura Eletrônica? Hayles a define como sendo aquela que
exclui literatura impressa que não tenha sido digitalizada, "é ao contrario, 'nascida digital' um
objeto digital de primeira geração criado em um computador e (geralmente) lido em uma tela de computador."41(HAYLES, 2008, p.3). Outra definição citada por ela e formulada por um comitê organizado pela ELO, liderado por Noah Wardrip-Fruim, é: “obra com um aspecto literário importante que aproveita as capacidades e contextos fornecidos por um computador independente ou em rede”. (HAYLES,
2008, p. 3)
Parte do que Hayles se dispõe a fazer em seu livro é procurar
investigar que capacidades e contextos são esses, fornecidos por um
computador ou rede. Ela acredita que a Literatura Eletrônica nos desafia
"a repensar o que a literatura e o literário podem fazer e ser"(HAYLES,
2008, p. 42). E, depois de considerar o trabalho sendo feito por iniciativas de preservação e
armazenamento dentro da ELO, Hayles chega a conclusão de que
a informação que conhecemos como 'literatura' é uma teia complexa de atividades que inclui muito mais que imagens convencionais de escrita e leitura. Estão também envolvidas, as tecnologias, mecanismos culturais e econômicos, hábitos e predisposições, redes de produtores e consumidores, sociedades profissionais e suas possibilidades de financiamento, cânones e ontologias destinadas a promover e facilitar o ensino e a aprendizagem, e uma série de outros fatores. (HAYLES, 2008, p. 42)42
40 A ELO foi fundada pelo filantropo Jeff Ballowe, Robert Coover, author and professor in the Literary Arts e,
Scott Rettberg, que é escritor de literatura impressa e eletrônica - o propósito da ELO é promover o desenvolvimento e difusão da Literatura Eletrônica.
Veja entrevista de Katherine Hayles em: http://www.youtube.com/watch?v=tBhFYkaift4 e http://eliterature.org/2011/06/mit-to-host-the-electronic-literature-organization/
41 Tradução livre: "Electronic literature, generally considered to exclude print literature that has been digitized, is
by contrast "digital born," a first-generation digital object created on a computer and (usually) meant to be read on a computer." (HAYLES, 2008, p.3)
42 Tradução livre: "the information we know as 'literature' is a complex web of activities that includes much more
than conventional images of writing and reading. Also involved are technologies, cultural and economic
A literatura e, portanto, o livro, passam por transformações que devem ser levadas em
conta como resultante dos inéditos hábitos cognitivos sociais oportunizados e fomentados pela
emergência dos meios de comunicação digitais; para que se compreenda de forma abrangente
as implicações da transição entre paginas impressas para a tela, é necessário um esforço
comunitário que exige "clareza de pensamento, planejamento visionário e reflexão crítica
profunda"43, afirma Hayles (ibidem, p. 42).
Por onde devem pois, buscar, os literatos, uma aproximação das questões sobre a
Literatura Eletrônica, já que "a computação não é periférica ou incidental para ela, mas central
para sua realização, execução, e interpretação"(ibidem, p. 44)? Hayles aponta caminhos para
que comecemos por considerar as “capacidades cognitivas da computação” para a
participação no que ela chama de “loops de retroalimentação recursiva, característicos da
escrita literária, leitura e interpretação44" (ibidem, p. 44). Isso, sem "abandonar os ricos
recursos dos modos tradicionais de se entender linguagem, significação e interação com
textos" (ibidem, p. 24). Hayles lista algumas questões prementes:
Em que sentidos a literatura eletrônica está em interação dinâmica com as mídias computacionais? E quais são os efeitos dessa interação? Esses efeitos se diferenciam sistematicamente do texto impresso enquanto mídia? E se sim, de quais formas? Como são postas em jogo as interações do usuário corporificado quando a execução textual é feita por uma máquina inteligente? (HAYLES, 2008, p.44).
A partir de tais questões, Hayles faz uma reflexão da coevolução, entre a literatura e os
meios digitais, guiada pela linguagem literária, possível a partir da interação entre corpo e
máquina, considerando as ligações entre corpo e mente, percepção e cognição, dos novos
meios de estar e agir no mundo45.
mechanisms, habits and predispositions, networks of producers and consumers, professional societies and their funding possibilities, canons and anthologies designed to promote and facilitate teaching and learning activities, and a host of other factors." (HAYLES, 2008, p. 42)
43 Traduação livre: "enlightened thinking, visionary planning, and deep critical consideration" (p. 42)
44Feedback loops, segundo nos diz Hayles em How we bacame posthuman, foi teorizado, explicitamente como
"o fluir de informação" como ficou conhecido entre as décadas de 1930 e 1940. (ver p. 8 de 351 - Location 329 de 8468, do Kindle edition)
Sergio Basbaum (2011) afirma que a transformação da experiência do conhecimento
no pós-livro deve conduzir a violentas transformações éticas, pois a estética (do grego
αισθητική ou aisthésis: percepção, sensação) é o fundamento da ética (do grego ἠθικός, e
significa aquilo que pertence aoἦθος, ao caráter, aos valores) - e isso pode ser constatado, por
exemplo, nas noções de autoria e propriedade intelectual ou privacidade.
A experiência temporal, que é entendida juntamente com as categorias da história, ou seja, como algo irreversível, progressivo e dramático, deixa de existir para massa, para o povo, para quem os códigos de superfície prevalecem, para quem as imagens substituem os textos alfabéticos. O mundo codificado em que vivemos não mais significa processos (...) O fato de ele não significar mais isso é chamado "crise dos valores" (FLUSSER, 2007, p. 135).
Os estudos que Basbaum vem desenvolvendo, relativos à experiência perceptiva
agenciada pela onipresença da mediação digital (tecnoetése) e suas consequências cognitivas
(infocognição), para pensar a arte das novas mídias, dialogam bem com os assuntos
abordados por Hayles. Ambos argumentam sobre a importância das capacidades do sujeito
corporificado em relação à arte nas novas mídias e da necessidade de uma coevolução entre os
meios e o corpo encarnado, para compreendermos nossa presente condição social e,
consequentemente, nossos modos de apreender o mundo.
Hayles (2008), em seu argumento, ressalta o trabalho de Friedrich A. Kittler46, que escreveu sobre o estímulo à leitura no século XIX e do surgimento dos meios técnicos como o
gramofone e a máquina de escrever no século 20 e, também, o trabalho de Mark Hansen, no
livro New Philosophy for new Media, que tem como base uma ampla gama de filósofos
neurofisiologistas, e artistas digitais, "para argumentar que a corporificação - especialmente
afetiva, háptica, sinestésica, e capacidades proprioceptivas - é crucial para converter os
46 Hayles faz menção a McLuhan, mas prefere trabalhar com os textos de Friedrich A. Kittler, um estudioso
padrões de dados de informação de imagens digitais em imagens significativas47" (HAYLES, 2008, p. 102).
Basbaum (2005), por sua vez, inquire "por uma natureza de uma percepção digital nas
sociedades contemporâneas" (BASBAUM, 2005, p.5), evocando, primeiramente, os estudos
de Merleau-Ponty, sobre a percepção, Walter Benjamin, Marshall McLuhan e Vilém Flusser.
Autores "que atribuem grande importância à mediação tecnológica nos modos de perceber o
mundo e formalizar o conhecimento" (Ibidem, p. 5). Ele nos convida a dar especial atenção ao
conceito benjaminiano de liquidação da experiência:
a intervenção tecnológica devora o passado e cria um tipo de ilusão em que o mundo e a cultura parecem ter sido como que re-inaugurados - subitamente, o sentido de mundo tal qual vivido por uma ou algumas gerações parece não dialogar com o sentido que assume o cotidiano. (...) essa ilusão decorre de um deslocamento do ponto-de-experiência da cultura, que pode ser atribuído em maior ou menor medida(...) à intervenção tecnológica na mediação das formas de comunicação, produção e ordenação de conhecimento, sempre entrelaçadas, como explicitação de uma percepção epocal (BASBAUM, 2005, p. 223).
Se observarmos, atentamente, os movimentos dos estudos literários, iremos perceber
que a disciplina tem abarcado, como bem colocam Hayles e Cândido, os estudos culturais,
pós-coloniais, de cultura popular48 etc49. Segundo Hayles, a literatura eletrônica, por suas
características heurísticas e psicológicas tem uma posição privilegiada frente a outras formas
artísticas, no auxilio da compreensão de nossa própria época. No entanto, o literato,
acostumado à tradição do livro impresso, pode ter dificuldades para se voltar para os estudos
da literatura eletrônica, que não pode suprir as expectativas formadas pelo texto impresso,
"including extensive and deep tacit knowledge of letter forms, print conventions, and print
47 Tradução livre: "draws on a wide range of philosophers neurophysiologists, and digital artists to argue that
embodiment - especially affective, haptic, kinesthetic, and proprioceptive capacities - are crucial to converting the informational data patterns of digital images into meaningful images." (HAYLES, 2008, p. 102)
48 Veja a entrevista de Katherine Hayles em: http://www.youtube.com/watch?v=tBhFYkaift4
49 Um McLuhan ficou famoso por seus aforismos "descuidados", ou seja, populares. Um fato curioso que vale