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A antropologia dos Tshokwe e povos aparentados

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Academic year: 2021

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TSHOKWE

C o l ó q u i o em h o m e n a g e m a

M A R I E - L O U I S E B A S T I N ( P o r t o , 1999)

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AAhTROPOLOGIA DOSTSnOKWE E POVOS APARENTADOS

Edi*"

Faculdade de Letras da Universidade do Porto

organizagão

Departamento de C~ências eTécnicas do Patrimónie Armando Coelho Ferreira da Silva

C:ento de Estudos Africanos António Custódio Goncalv~q

Beijamim Enei Pereira Manuela Palmeirim Apoio

FundacZo Dr António Cupertino de Mranda

Concepqão Gráfica

SeiSilito- Empresa Gráfica, Lda.1 Maia

Tiragem 500 exemplares

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Nota de Abertura

N o dia 30 de Novembro de 1998, o Departamento de Ciências e Técnicas do Património promoveu uma sessão comemorativa dos 80 anos da Doutora Marie-Louise Bastin no Círculo Universitário do Porto. Neste encontro, em que participaram docentes e convidados d o departamento e alguns amigos da homenageada, foi inaugurada uma exposição da bibliografia científica por Marie-Louise com a inestimável colaboração do seu marido Senhor António Enes Ramos. O Prof Manuel Rodrigues de Areia fez a apresentação desta ilustre investigadora belga que dedicou uma parte da sua vida ao estudo da arte africana e, particularmente, dos Tshokwe ou Quiocos localizados no nordeste de Angola.

Este foi o primeiro contacto formal estabelecido entre a Faculdade de Letras da Universidade do Porto e a Doutora Marie-Louise Bastin que, logo percebemos, muito lhe agradou. Mas, em resultado de contactos prévios, já então corria na Faculdade de Letras a proposta de atribuição do grau de doutora "honoris causa" a Marie-Louise Bastin, subscrita por diversos professores e datada de 23 de Setembro de 1998, que mereceu aprovação unânime do plenário d o Conselho 1 Científico da Faculdade de Letras em 6 de janeiro de 1999 e do Senado da Universidade do Porto em 25 de Fevereiro de 1999, materializando-se com a realização da cerimónia de imposição das insígnias doutorais, ocorrida em 28 de junho de 1999 no Salão Nobre da Faculdade de Ciências.

Entendeu a Faculdade de Letras que esta homenagem da Universidade Porto deveria ser enquadrada com outras actividades que valorizassem o labor científico de Marie-Louise Bastin. Neste sentido, o Departamento de Ciências e Técnicas do Património e o Centro de Estudos Africanos, então presididos pelos Profs.Armando Coelho Ferreira da Silva e António Custódio Gonçalves, respectivamente, promoveram a organização da exposição "Escultura Tshokwe", inaugurada em 8 de Julho de 1999 nas instalações da Fundação Dn António Cupertino de Miranda, que recolheu 54 das mais significativas peças tshokwe existentes em colecções nacionais. Esta mostra beneficiou da activa e entusiástica participação de Marie-Louise, também autora do excelente catálogo publicado na ocasião, e do seu dedicado amigo Benjamim Pereira, cujo saber; competência e eficácia foram imprescindíveis para o êxito desta iniciativa.

U m outro evento de grande importância foi a realização, no dia da cerimónia do doutoramento "honoris causa", do Colóquio "A Antropologia dosTshokwe e Povos Aparentados" que contou com a presença de Marie-Louise e de outros especialistas nacionais e estrangeiros. A realização deste encontro não teria sido possível sem a coIaboraç20 da Profa Manuela Palmeirim, que teve um papel fundamental na sua organização, bem como na preparação das actas que agora se publicam.

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NXo quis o destino que Marie-Louise, falecida em 20 de Março de 2000, pudesse manusear este livro que reúne um valioso conjunto de textos, sobre temas que lhe eram tão caros, escritos em sua homenagem por alguns dos seus amigos e admiradores e que resulta de uma iniciativa que muito a comoveu e sensibilizou. Sabemos, contudo, que Marie-Louise, onde quer que se encontre, ficará mais uma vez feliz por esta publicação que é mais um significativo contributo para o conhecimento de uma Cultura que ela sabiamente estudou e revelou ao Mundo.

Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 19 de Fevereiro de 2003

O Presidente do Conselho Directivo Rui Manuel Sobra1 Centeno

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Prefácio

O Colóquio "A Antropologia dos Tshokwe e Povos Aparentados", integrado na homenagem prestada à Profa Marie- Louise Bastin pela Universidade do Porto, reuniu uma equipa de antropólogos e historiadores de excelente qualidade, com uma importante experiência de trabalho de campo entre osTshokwe.

As comunicações apresentadas e publicadas nestas Actas revelam um exame crítico e minucioso das tradições orais, dos factores mágico-religiosos, dos complexos rituais simbólicos e ideológicos, dos mitos, histórias ou lendas, que enformaram as sociedades e culturas dos povos Tshokwe, na encruzilhada de diversos contributos sócio-culturais: Mbundos, Lundas, Luenas, Luvales e outros que partilhavam laços históricos e sociais e práticas rituais comuns. Estes trabalhos salientam a importância da contextualização histórica e espacial na análise das observações dos cronistas e viajantes, transmitidas com distorções etnocêntricas e ideológicas no contexto de uma determinada missão ou expedição, convocando assim perspectivas de longa duração na interpretação de processos culturais e simbólicos e de estratégias políticas quanto às formações sociais e à construção de identidades culturais.

Emancipando-se da hegemonia de teorias meramente abstractas e realizando uma síntese eficiente do trabalho teórico e do trabalho de campo, os autores confirmam a mudança do paradigma do eurocentrismo para paradigmas dominantes do desenvolvimento cultural endógeno africano, numa ruptura definitiva com a chamada "política do espelho" associada à imagem de um desenvolvimento cultural de África que contirmasse os pressupostos desenvolvimentistas europeus.

Em 1885, os Tshokwe conquistaram o "império" Lunda, a nordeste de Angola, florescente do século XV ao século XIX, constituído por uma rede de sociedades e de organizações políticas culturalmente aparentadas, que se estendiam de Angola ao Malawi, até aos confins do Zaire e da Zâmbia. Os Tshokwe, povos guerreiros e comerciantes, organizavam-se segundo um sistema original de tíiulos relativos aos chefes de linhagens, estruturando-se num sistema de parentesco mítico. As colonizações portuguesa e belga forçaram-nos a emigrar cada vez mais para leste, para a região do Alto Kassai, fixando alguns grupos em territórios da actual República Democrática do Congo e do Noroeste da Zambia. Outros grupos expandiram-se, depois, para sul, em Angola, do Cunene ao Cuanhama. Originários de uma civilização de caçadores das savanas, os Tshokwe impuseram-se na arte da caça e do comércio de mafim. Sendo povos prevalentemente matrilineares, as representações femininas constituem um facto cultural predominante, sobretudo nas máscaras de madeira que gozam de uma reputação internacional.

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A cultura Tshokwe caracteriza-se por um sistema social relativamente homogéneo, construído através de um pluralismo diverso e coerente. Foi no âmbito das relações intra-societais Tshokwe e na encruzilhada de relações com povos aparentados, constituídas através de rivalidades e alianças, de conquistas e submissões, de invenções e apropriações, formando uma unidade interna e um pluralismo coerente do reino Lunda, que se fundamentou a vitalidade do contexto artísticoTshokwe. Este foi identificado pelos críticos de arte pelo poder da sua expressividade, elogiado pela subtileza dos seus arranjos formais, admirado pela sua dignidade austera e pela serenidade das suas figuras escultóricas. Os artistas Tshokwe foram os mais famosos da região, devido às suas estátuas de chefes e de antepassados deificados, de grande dimensão, chamadas hamba, que exaltavam a força e a dignidade humana, e pelas estátuas mahamba associadas as actividades da caça, do amor; da magia e da fertilidade.

A representação mais célebre foi a estatueta de Tshibinda llunga. filho mais novo do grande chefe luba Kalala Ilunga e herói caçador luba, que teria ensinado aos Lundas a arte da caça e as técnicas de forjar o ferro. Com ele iniciou-se a dinastia do MwataYamvo, da Lunda.

O Museu do Dundo, em Angola, "um dos grandes museus mundiais de arte e de etnografia africana", como refere ErnestoVeiga de Oliveira, teve um papel notável na expressão e na divulgação da culturaTshokwe. Não foi uma galeria para conservar objectos recolhidos, nem tão pouco para arquivar vestigios dissecados, mas um meio para ajudar a compreensão dos Tshokwe e povos aparentados, pondo em relevo a experiência da diversidade das manifestações culturais. Contribuiu, assim, para a análise científica da realidade cultural da Museologia, evidenciando, como refere Marcel Mauss. que a cultura material, como aliás qualquer âmbito da cultura, assume o significado total do grupo social a que pertence.

Em Portugal, realizou-se um trabalho referencial de tratamento e de inventariação das colecções de arte Tshokwe, nomeadamente no Museu de Etnologia de Lisboa, no Museu de Antropologia de Coimbra e no Instituto de Antropologia D r Mendes Corrêa no Porto.

Três desafios importantes atravessaram este Colóquio: o primeiro consistiu na defesa intransigente das políticas contra as pilhagens do património cultural de África; o segundo sublinhou a emergência de novos valores e análises científicas da etno-museologia, pelo desenvolvimento de uma política cultural e científica de acções de cooperação entre museus e coleccionadores particulares; o terceiro apelou para a implementação do estudo e da formação em arte africana em Portugal.

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Luc de Heusch

Pour Marie-Louise Bastin

Cexposition que nous inaugurons aujourd'hui n'existerait pas sans le travail irnrnense acornpli par Marie-Louise Bastin pour faire connaitre I' un des arts les plus irnpressionnants d'Afrique noire. Un travail de très longue haleine qu'elle poursuit avec acharnernent et que I'Université de Porto vient couronner en I'élevant à Ia dignité de Docteur Honoris Causa.

Cart tshokwe, c'est beaucoup plus qu'un objet de connaissance pour Marie-Louise Bastin: une passion. Une passion qui double celle de I'art rnoderne. D e I'art que I'on appelait hier encore moderne, avant que d'incertaine productions n'apparaissent sur le marché et n'envahissent nornbre de rnusées, cornplices de ses errements iinanciers du goüt, qui inaugurent une très vague ère post-moderniste.

Cette passion s'est d'abord nourrie de I'enseignernent que jeune étudiante, Marie-Louise Bastin suivit a I'lnstitut Supérieur des Arts Décoratifs, Ia cèléhre Ecole de Ia Carnbre, fondée à Bruxelles par I'architectevandervelde, qui en tit un foyer de réflexion sur I'avant-garde. Mais c'est Ia rencontre d'un objet qui décida de Ia vocation de Marie-Louise Bastin. Une rencontre dans laquelle les surréalistes auraient décelé Ia marque du hasard objectif, c'est-à-dire du destin. Poussée par un rnystérieux dérnon elle dirige un jour ses pas vers une boutique d'art colonial, un véritable capharnaurn, où elle s'éprend d'un petit masque songye. Elle I'achète et va le rnontrer à Frans Olbrechts, qui prépare à cette époque son petit ouvrage sur Ia chronologie des arts plastiques africains. Olbrechts trouve Ia pièce plutôt rnédiocre, mais charge Marie-Louise d'éxecuter pour lui une série de dessins. En les traçant, Marie-Louise ravie découvre sa voie. Devenu directeur du Musée de Tervuren en 1947, Olbrechts lui confie Ia responsabilité d'une photothèque qui deviendra l'un des prerniers centres européens importants de docurnentation sur les arts africains, dont, a l'époque, Ia connaissance était encore ernbryonnaire. C'est Ia prernière plongée de Marie-Louise dans un continent que les historiens d'art sont très peu nornbreux alors à exploref: C'était, rappelons-le, il y a cinquante ans.

Elle ira ensuite sur le terrain. En Angola, au rnusée de Dundo. Elle découvre avec érnerveilleillernent les rnultiples aspects de I'art tshokwe, auquel elle consacrera sa vie. Entourée d'excellents inforrnateurs qu'elle écoute avec attention, elle réussit ce tour de force d'écrire un sornptueux ouvrage sur I'art décoratif tshokwe (publié en français à Lisbonne en 1961) sans jamais avoir entrepris d'études dans le charnp de I'anthropologie. Elle s'initie à cette discipline, que I'on ne

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saurait séparer de I'histoire de I'art des peuples sans écriture, en s'inscrivant à I'Université de Bruxelles en 1962. Elle est alors âgée de quarante quatre ans. Elle pioche avec obstination son latin quelque peu oublié, car il faut passer par I'Antiquité et le Moyen-Age pour conquérir le diplôrne de licencié en historie de I'art et archéologie. Elle voyage et étudie les collections tshokwe de tous les grands rnusées ethnographiques d'Europe. Elle conquiert le diplôrne de dodeur en philosophie et lettres avec une thèse sur Ia grande statuaire tshokwe. Elle s'inscrit résolument dans ce courant stirnulant de recherches qu'olbrechts avait inauguré et qui consiste à attribuer à un rnaitre particulier ou à son atelier une série de chefs d'oeuvre. O n se souviendra que Olbrechts fut le prernier à attribuer au maitre de Buli un ensernble d'oeuvres rnarquantes dont le style expressioniste est si particulier dans le vaste dornaine luba-hernba. Marie- Louise définit quant à elle avec une sureté de jugernent exceptionnelle le style des grands ateliers tshokwe portant Ia marque unique du génie créateur Elle n'a pas peur d'écrire que les plus belies productions atteignent "l'un des sornrnets de I'art". Mais elle est sensible à Ia dirnension historique et constate que, après Ia grande expansion desTshokwe travers I'ernpire lunda dans Ia seconde rnoitié au XIXe siècle, I'art hauternent évolué des centres culturels anciens "perdra progressivernent son arnpleur et son rafinernent" (Bastin, 1982, p. 36). Elle distingue ainsi les styles de I'expansion. Par Ia suite, elle étudiera encore I'influence de Ia culture tshokwe sur les cultures voisines d'Angola et définira les styles Iwena, songo, ovirnbundu, ngangela. Elle est devenue ainsi le rneilleur spécialiste des arts d'Angola dans leur ensernble. Elle leur a consacré un récent ouvrage.

Mais revenons en arrière. Elle devient rnon assistante à Ia Faculté de philosophie et lettres de I'Univenité de Bruxelles en 1972; elle y sera nornrnée chargé de cours six ans plus tard.

Elle se consacre aux tâches universitaires avec beaucoup de dévouernent et avec une irnrnense affedion pour ses étudiants, dont elle suit attentivernent les travaux. Mais sa carrière universitaire et les aspects financiers de celle-ci ne I'ont jamais préoccupée vrairnent.

II

rn'a toujours sernblé que le petit masque songye sorti d'un bric-a-brac surréaliste a plongé Marie-Louise Bastin dans une irnrnense rêverie. Cet objet véritablernent magique, I'entraina à un voyage sans fin, hors du ternps, balisé de rnerveilleux objets. Un voyage hors du ternps acadérnique, un voyage où elle s'est cornplèternent identifiée au masque jeune fille rnpo. Le masque d'Alice de I'autre côté du rniroir

Mais, de I'autre côté du miroir; qu'y a-t-il? Une fantastique créature surgit du pays des rnorts, le corps tout habillé de fibres, Ia tête couverte d'une sirnple cagoule. II annonce son arrivée en frappant deux bâtons I'un sur I'autre. II est suivi d'un cortège de masques irnpressionnants au visage modelé en résine dont I'imrnense coiffure faite d'écorce battue aux formes très diverses est couverte de rnystérieux signes rouges, noirs ou blancs évoquant le soleil, Ia lune, les étoiles. Le patron de ces créatures rnasquées d'antilop-cheval, évoque Ia sauterelle, insecte réputé pour sa fertilité. II marche lenternent et fait entendre un long cri ululé qui fait fuir les fernrnes. li va checher au village les enfants terrorisés que I'on va circoncire et les conduit dans un carnp en brousse, où ils séjourneront un an ou deux afin que se rompe détinitivement le cordon ornbilical qui les relient encore socialernent à leur rnère.

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Voici Kalelwa dont le nom évoque le nuage, lelwa. II est en rapport avec I'eau céleste puisque sa présence est requise lorsqu'on confedionne le charme magique destiné a lutter contre les pluies torrentielles. II se déplace en courant et pousse lui aussi des cris pour chasser les femmes. Mais au terme de Ia longue retraite initiatique, il rarnènera auprès de leur mère les enfants devenus des hommes. Les mères les ont nourris à distance et des masques de moindre d'importance se sont chargés d'emporter Ia nourriture qu'ils venaient chercher au village et qu'ils apportaient aux enfants exilés au pays des esprits incarnés par les masques ...

Voici Tshitamba qui porte sur Ia tête un plateau circulaire imitant le séchoir à manioc qui lui donne son norn. II est chargé, en effet. de ravitailler les enfants au village, de même que Tshitelela, dont Ia grande carcasse en vannerie sert de garde-manger;

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Voici Tshitarnba qui porte une coiffe sphérique évoquant le nid des termites à Ia fecondité incornrnensurable. Une fécondité dont le rituel de circoncision s'efforce précisérnent de doter le pénis circoncis des novices.

Mais Tshikungu, le plus irnportant, le plus grand de tous les masques, ne fait pas partie du cortège des fantômes qui apparaissent lors de ces cérérnonies. II sort très rarernent: seulernent lorsqu'une calmité publique doit être conjurée par un sacrifice solennel aux ancêtres. Seul le chef de terre en personne - o u I'un de ses neveux utérins - peut le porter, car il

représent ses ancêtres. II porte un glaive dans chaque rnain et seuls les chefs ou les grands notables peuvent le voir sans danget..

Cette fois nous sornrnes en pleine rnythologie. L'architecture cornpliquée du masque, en forme d'ailes, représente Ia petite cigogne noire kumbi. Des triangles en dents de scie le couvre littéralernent. Ce rnotif est rnystérieusernent appelé yenge lyo kumbi,"la vipère de Ia cigogne".Yenge désigne plus précisérnent Ia vipère du gabon qui présente sur le dos "une double frise de triangles ou de losangles juxtaposés" (Bastin, Bastin, 196 1 , p. 125). Vipère (Yoomv), te1 est le titre que portaient les puissants rnonarques de I'ernpire lunda dont dépendaient jadis plus ou rnoins les chefs tshokwe. Le rnythe tshokwe raconte que Ia reine Lueji, enceinte des oeuvres du prince chasseurTshibinda-llunga aperçut un jour cet animal et en fut tellernent effrayée qu'elle fit une chute en courant se réfugier dans sa case et accoucha prérnaturérnent C'est en souvenir de cet évènernent singulier que le nouveau-né, le futur roi, le fondateur de Ia dynastie, reçut le surnorn de vipère, sans doute pour souligner son caractère redoutable (idem, p. 124).

Mais pourquoi le rnotif yenge lyo kumbi qui envahit Ia coiffure du grand masque des chefs tshokwe, associe-t-il dans son norn rnêrne Ia petite cigogne noire (kumbi) à Ia vipère royale (yenge)? Pourquoi cet oiseau est-il representé par les ailes mêmes qui surrnontent le masque tshikungu? II faut interroger ici un autre rnythe, lunda celui-là (Nous ignorons s'il en existe une version tshokwe). C'est le rnythe fondateur d'une association qui s'occupe du traiternent du cadavre royal chez les Lunda (Crine-Mavai; 1963, p. 84). Ce rnythe raconte qu'une petite cigogne noire accornpagnée d'un autre oiseau non identifié, tarirent jadis du batternent de leurs ailes un étang que les fernrnes ne parvenaient pas à assécher pour récolter du poisson. A I'occasion de Ia rnort du chef de village, les hornmes s'ornèrent des plurnes de ces deux oiseaux rnerveilleux et se rnirent à danser en les irnitant. Le rnythe se laisse aisérnent déchiffrei: C'est au rnornent de Ia saison sèche que se pratique Ia pêche décrite. D u batternent de leurs ailes les deux oiseaux rnettent fin à Ia saison des pluies qui se prolonge puisque les fernrnes qui s'efforcent en vain d'assécher I'étang, appartiennent à Ia rnoitié de Ia tribu qualifiée de "vornisseurs de terre hurnide". I'autre rnoitié étant qualifiée de "vornisseurs de terre aride". Les fernrnes auxquelles les deux oiseaux rnythiques apportent leur aide sont en quelque sorte marquées par Ia saison des pluies à laquelle il

ernporte de rnettre fin pour perrnettre Ia pêche férninine. Le rnythe fait donc de Ia petite cigogne noire Ia rnédiatrice entre pluie et sécheresse.

Mais cet oiseau est syrnboliquernent surdéterrnine il connote aussi le passage du jour a Ia nuit. En effet, il accornpagne le solei1 couchant en volant très haut dans le ciel. Son norn en luvale (londokumbi) rnet ce caractère solaire en relief: londo

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vient du verbe archaique kulonga (suivre) et likumbi désigne le soleil (Horton, 1953, p. 165). Si le plurnage noir de Ia petite cigogne évoque Ia nuit, son ventre blanc se trouve toute naturellernent associé au soleil qui disparait à I'horizon. D'un seu1 et mêrne geste cosrnique, Ia petite cigogne kumbi inaugure à Ia fois le nuit et Ia saison sèche. Mais, sur terre, c'est le Roi- vipère, créature solaire qui est responsable de I'alternance du jour et de Ia nuit cornrne du rythme des saisons (L. de Heusch, 1972, chap.Q. O n cornprend dès lors que les chefs tsholcwe, qui ont adopté pour leur propre cornpte le rnythe de fondation de I'empire lunda contant les arnours de Ia reine autochtone Lueji et de Tshibinda Ilunga, le séduisant chasseur étranger, associent Ia vipère et Ia cigogne sur le grand masque représentant les ancêtres de leurs propres chef8.A vrai dire celui-ci est le résurné de I'univers, car"sur I'avancée du rnenton deux ronds figurent chacun le soleil" tandis que, au dessus du front, un tissu rouge en forme de croissant réprésent Ia lune (Bastin, 196 1 , vol. 2, p. 371). Cornrne le roi sacrée lunda dont i partage le syrnbolisme, le masque tshikungu muni d'un glaive est une créature arnbivalente, inquiétante. C'est Ia part rnaudite du pouvoir qu'assure le roi-vipère lunda, grand guerriei; c'est son aspect secourable que syrnbolise Ia petite cigogne noire kumbi.

Je rappelais à I'instant le mythe fondateur de I'ernpire lunda. C'est un inforrnateur de Marie-Louise Bastin qui lui révéla que les superbes statues tshokwe représentant un chasseur aux puissantes mains, solidement carnpé sur ses grands pieds, n'est autre que Ia représentation du rnythique héros Tshibinda llunga. Venu du pays luba il épousa Ia reine autochtone Lueji donnant naissance au prernier roi-vipère, fondateur d'une dynastie conquérante dans I'orbite duque1 IesTshokwe vécurent apparernent jusqu'au milieu du 19e siècle.

II ne faut pas prendre I'iconographie du chasseur au pied de Ia lettre. II est vrai que IesTshokwe s'adonnaient à Ia chasse avec passion, mais tout laisse croire que les Tshokwe pratiquaient avec succès I'art cynégétique avant I'arrivée, très probablement fictive, du héros. En fait, Tshibinda llunga introduit Ia prospérité et les usages de Ia royauté sacrée. II est un dispensateur de fertilité dans un pays dont Ia reine autochtone est rnenacée de diverses calarnités. Cet état de manque est symbolisé par les troubles rnenstruels dont souffre Ia reine autochtone Lueji. La chasse est plus précisément une image rnétaphorique de Ia fécondité dans I'univers lunda.

Marie-Louise Bastin a rnontré Ia parfaite assirnilation par IesTshokwe de cette grande tigure rnythique lunda. En effet, ce noble étranger ne fait pas partie du panthéon des esprits ancestraux mahamba. Cependant, Ia coiffe qu'il porte dans Ia statuaire n'est pas celle des Lunda, mais bien celle des chefs tshokwe (Bastin, 1988, pp. 53-54). Marie-Louise s'étonne à ce propos de constater que Ia cour lunda ne produisit aucune oeuvre d'art (idem, p. 56). Elle note que Ia chaise qu'un oficier norvégien reçut du roi lunda au début du 20e siècle, et qui est actuellement conservée au Musée d'Oslo, estUun travail des Tshokwe", qu'il ait été reçu en tribut, pris comme trophée de guerre ou exécuté pour le souverain par un artiste tshokwe renornmé (idem, p.56). La réponse à cette énigrne historique est que le grand art n'est pas nécessairernent lié à une forme quelconque d'État conquérant, bien que nous tenions celle-ci à t o r t cornrne Ia rnanifestation rnêrne de Ia civilisation. Cernpire de Napoléon a-t-il produit de grandes oeuvres? II en a dérobé quelques unes dans diverses collections

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européennes, et, faute de souffle, le style dit ernpire s'inspire notamrnent de I'Egypte ancienne. Et n'est-ce pas en devenant eux-rnêrnes conquérants, que IesTshokwe perdirent leur génie?

Mais il est vrai que I'art tshokwe s'épanouit dans de puissantes chefferies vénérant un chef sacré, dont Ia statuaire célèbre Ia présence.Tshibinda Ilunga n'est pas en effet le seu1 prétexte de Ia grande statuaire. La figure du chef Ia domine, tantôt debout dans une attitude Iégèrement fléchie, les mains posées avec assurance sur le ventre, tantôt assis sur un siège, battant des rnains, à rnoins qu'il ne surmonte un sceptre orné parfois avec une science exquise de I'arabesque. Marie-Louise insiste sur le naturalisme caractéristique des oeuvres provenant du pays d'origine (Bastin, 1988, p. 55). Elle constate aussi que les représentations deTshibinda Ilunga n'obéissent pas un canon unique; tantôt elles portent Ia marque d'un créateur "apolinien", tantôt elles participent d'un "expressionisrne dyonisiaque" (idem, p. 54). L'on constatera que ces diverses formules originales s'inscrivent toutes dans Ia grande tradition réaliste des arts de cour d'Afrique centrale.

Nous sornmes toujours de I'autre côté du miroir; dans un univers où masques et statues participent du monde des esprits. Mais voici que s'avance vers nous un masque en bois dont les traits schérnatiques idéalisent Ia beauté férninine, et elle seule. C'est Ia célèbre masque rnpo plein de douceur; de réserve et de rafinement. II est porté par un homrne. Comme les autres masques. C'est Ià, vous ne I'ignorez pas, une constante en Afrique noire. Mais le masque rnpo n'est pas un objet sacré, contrairernent à ses congénères d'écorce battue et de résine, ces esprits qui enlèvent les enfants à leur rnère pour les conduire au carnp de circoncision. La tradition rapporte cependant que jadis sur Ia place publique, le danseur effectue une danse férninine gracieuse, qui est censée dispenser Ia fécondité (Bastin, 1988, p.p. 63-65). En dépit de son asped ludique, le masque rnpo ne nous mène donc pas tout a fait en dehors de Ia sphère rituelle. A Ia fin de sa carrière théatrale, à sa "rnort", le masque rnpo était souvent enterré dans un marais avec un bracelet rnétallique "pour éviter que I'esprit ne vienne hanter un rnernbre de Ia famille de I'ancien danseui', alors que les masques du rituel de circoncision étaient normalement b d é s à Ia tin des cérérnonies (idem, p. 65).Tout se passe donc comme si rnpo était traité comme un être hurnain, une femme réelle, résumant toutes les fernmes du monde.

Un masque rnasculin fait en résine ou en bois, est le pendant de mpo. C'est lui aussi un masque de danse dont le caractère profane est évident. II s'appelle tshihongo. Anciennement porté par un fils de chef, i1 recevait des cadeaux en échange de ses exhibitions choréographiques qui se répétaient durant plusieurs rnois. C'était à une manière ingénieuse de prélever un tribut en réjouissant les sujets du chef de terre. Thishongo célèbre en quelque sorte publiquernent I'aspect profane du pouvoir; alors que ihiskungu, dont vous vous souviendrez qu'il représente les ancêtres du chef en "entourant d'un grand rnystère, exalte le caractère politico-religieux de ce même pouvoirTout se passe comrne si les deux masques obéissaient à un dédoublement fondionnal: Jshihongo et Tshikungu révèlent les caractéristiques complémentaires de Ia chefferie. O n pourrait dire que le prernier danse les deux pieds sur terre, le second un pied ans I'au-delà.

Revenons de ce côté-ci du rniroir; dans le mond totalement profane. Ici aussi I'art s'épanouit. O n est stupéfait de l'extraordinaire diversité de Ia sensibilité artistique tshokwe. II serait faux de croire qu'il en est ainsi dans toutes les cultures

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africaines. Les pipes, mortier à écraser le se1 ou le tabac, tabatières, peignes, épingles à cheveux, chasse-mouches, sanza, sifflets, les coupes comme le ventre des femmes accueillent figurines ou dessins. Le souci de beauté est partout. Même sur le sol où les hornmes dessinent du doigt sur le sable les arabesques sona, sont autant d'idéogrammes.

Vous jugerez d'une partie de cette richesse en visitant cette exposition qui est un hommage à Mane-Louise Bastin à

l'occasion de son élévation au titre de dodeur honoris causa de I'Université de Porto, que je félicite de cette heureuse initiative.

Puisse Marie-Louise danser encore de nombreuses années en compagnie du masque rnpo, en cornpagnie deTonio son rnari, son photographe de grand talent, son compagnon fidèle, pour que Ia paix et Ia joie règnent enfin sur le monde, pour que Ia petite cigogne noire au ventre blanc tienne en resped tous les rois-vipères qui n'ont cessé de conduire le monde à

leur guise. Pour que I'Angola, pour que 'Afrique tout entière retrouvent Ia sérénité, Ia douceur du masque mpo

...

Ouvrages cités BASTIN, M-L..

1961. Art décorotif tshokwe, Museu do Dundo (2vol.). Lisbonne.

1988."LesTshokwe du pays d'origine", in Art et rnythologie. Figures tshokwe. Fondation Dappec Paris, pp. 49-68 CRINE-MAVAR, 0. ,

1963,"Un aspeci du symboisrne lunda. Cassociation funéraire dez Acudyaang", in L. de Sousberghe, F Crine-Mavai; A. Doutreloux et j. de Loose. Miscelloneo Ethnogro~hico,Annales du Musée royal de VAfrique centrale,Tervuren, pp. 8 1 / 0 6 .

HEUSCH, L de,

1972. Le mi ivre ou I'origine de rÉtot, Gallimard, Paris. HORTON, A. E.,

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Jill

Dias

-A

Caçadores,Artesãos, Comerciantes, Guerreiros:

Os

Cokwe em perspectiva histórica

I. Introdução

Em 19 14, um mapa publicado pelo administrador colonial de Angola, Ferreira Diniz. projectou a primeira imagem sis- tematizada da distribuiqão territorial das diferentes "tribos" africanas pertencentes a colónia portuguesa de Angola'. Nesse mapa, as populações Cokwe ocupam uma grande faixa de território do norte e leste de Angola (Fig. I). Porém, o mosaico de "tribos" ou de "culturas" representadas no mapa não só transmite uma ideia exagerada da separação entre os diferen- tes grupos em presença como consagra uma falsa imagem fixa e estática desses grupos. Na verdade, até ao século XX, os Cokwe, em comum com a maioria dos habitantes da savana africana, eram populações abertas e interactivas, cuja compo- sição e tamanho demogrático alterava ao longo do tempo de acordo com as circunstâncias históricas.Assim, os Cokwe são próximamente aparentados com grupos vizinhos,tais como os Luvale ou os Lwena com os quais, ainda hoje, compartilham muitas características culturais. Na viragem do século XIX, a imagem colonial dos Cokwe era predominantemente de uma população guerreira e esclavagista cujos assaltos e violência tinham provocado a queda do império Ruwund Contudo, essa imagem esconde uma realidade muito mais complexa, fruto de uma longa história de interacção entre os Cokwe e as outras sociedades da África Central. O presente texto procura situar os Cokwe nesse contexto histórico mais vasto.

Até 1900, os Cokwe viviam fora do alcance da administração colonial, uma vez que foi só então que a ocupação efec- tiva portuguesa do território angolano conseguiu expandir para além dos pequenos núcleos costeiros centrados em Luanda, Benguela e Moçamedes. N o século XIX, a influência dos interesses mercantis europeus na costa atlântica, sentida através da presença no interior longínquo de comerciantes oriundos da pequena colónia portuguesa de Angola, estimulou Jill Dias, Faculdade dar Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.

' A representação das diferentes popuaqões permaneceu pouco alterada nos mapas "etnicas" produzidas até à década de 970: veja-se, em especial. Rednha, 1952. Lima, i970

Ou seja"Lunda" na dorumenta@o histórica portuguesa. O Estado ou sistema político Ruwund sob a autor,da.de márima do MantYaav, abranga uma vasta região a leste dos rios Kwango e Kwanra até aos finais do século XIX: CfPalmeirim, 1994, p. 24. Esta situação histórica deu origem na primera década do século XX à crias20 do distrito colonial da Lunda do nordeste de Angola: veja-se Santos. 966.

li

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interacções entre as diferentes sociedades africanas que transformaram social e politicamente, as populações a leste do Kwanza, incluindo os Cokwe

'.

A o longo do século XIX, as sociedades africanas politicamente autónomas que circundavam esses núcleos não só produziam a maior parte das exportações coloniais, como também controlavam o comércio entre o interior e a costa.Assim, no curto prazo, a economia mercantil do Atlântico introduziu novas oportunidades económicas e políticas para essas populações, não obstante a eventual subordinação das suas economias locais aos mercados intemacio- nais e a marginalização de entrepreneurs africanos a favor de agentes europeus que acompanharam a expansão da admi- nistração europeia nos princípios do século XX. Porém após o colapso, em 19 13, os preços mundiais da borracha aficana em consequência da concorrência sud-asiática, os interesses do capital mercantil foram sendo substituídos pelos do capital industrial, e, a partir da década de 1920, essas populações, em especial os Cokwe se tornaram vítimas da exigência euro- peia de trabalhadores nos empreendimentos industriais coloniais, e, especial as minas de diamantes.

Se é possível aprofundar a história dos núcleos coloniais através da documentação arquivística de natureza administra- tiva ou militar; o conhecimento empírico das sociedades africanas mais longínquas, tais como os Cokwe, deriva principal- mente dos relatos deixados por viajantes e exploradores do século dezanove, e maior parte dos quais eram europeus. Entre o primeiro conjunto de relatos, baseados em observações feitas nas décadas de 1840 e 1850, são as descrições do negociante brasileiro, Joaquim Rodrigues da Graça ( 1 854158, 1890), o sertanejo português, Silva Porto (1 942, 1885, 1986), o missionário escocês, David Livingstone (1 857,1963) e o viajante e sertanejo húngaro, Lazlo Magyar ( 1 859). Posteriormente, entre as décadas de 1870 e 1880, essas sociedades foram visitadas por exploradores portugueses, nome- adamente Capelo e Ivens ( 1 88 I), Serpa Pinto (1 88 1) e Henrique de Carvalho (1 890, 1894195) e, ainda, por exploradores alemães e húngaros que penetraram a África Central nesses anos, nomeadamente Anton Lux(1880), Paul Pogge (1 88 I), O t t o Schuti ( 1 88 I), Max Buchner (1 882),Von Mechow ( 1 882) eVon Wissman ( 1 889).

E claro que as interpretações e representações desses autores são profundamente influenciadas pelo seu etnocen- trismo. A maior parte dos europeus, mesmo os mais viajados ou experimentados no comércio africano, pouco compreen- deram do sentido das instituições e os valores familiares, políticas e religiosas das sociedades africanas à sua volta. As suas representações, tantas vezes negativas da vida africana, denunciam os seus próprios preconceitos culturais. Por isso mesmo, são relativamente fáceis de desmontar4. Filtradas por uma leitura crítica, os relatos europeus se tornam fontes preciosas de conhecimento histórico das sociedades africanas. No caso específico dos Cokwe, as tradições e informações recolhidas pelos exploradores portugueses e alemães na região do Kasai no último quartel do século XIX são cruciais sobretudo em proporcionar uma crónica interna das relações da população Cokwe com os "Lunda do MwontYoav", ou seja os Aruwund ' Para sínteses recentes da história de Angola no século XIX. vejam-se por exemplo, Henriques, 1997: Dias, 1998.

' Sobre isso, vejase, por exemplo, a leitura critica das observações do comerciante brasileiro Joaquim Rodrigues de G r a q na década de 8 4 0 feita por Isabel Castro Henriques, 1997, pp. 442-443

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Neste respeito, a obra mais notável é de Henrique de Carvalho, que aprendeu a iíngua Uruwund entre 1884 e 1888, con- duzindo um trabalho etnogtáfico de grande sensibilidade e rigor, de tal forma que as informações por ele recolhidas cons- tituem a fonte principal de conhecimento sobre os Cokwe nesse período 6 .

Marie-Louise Bastin, pioneira de estudos etnográficos sobre a cultura material da região da Lunda, foi entre os primei- ros antropólogos a reconhecer o valor das informações recolhidas pelos exploradores europeus do século XIX para a reconstrução histórica da população Cokwe(196 1 , 1966, 1994). O seu trabalho foi complementado pelo estudo histórico pormenorizado de Joseph Miller ( 1 970) e pelas investigações antropológicas de Mesquitela Lima (1 97 I),Alfredo Margarido (1 972), Rodrigues de Areia (1985) e Manuela Palmeirim (1 994). Mais recentemente ainda, essas fontes foram sujeitas de novo a uma re-leitura crítica e exaustiva pela historiadora Isabel Castro Henriques (1 997), no sentido de conceptualizar e aprofundar a realidade histórica dos Cokwe. Reconhecendo a importância das reconstruções históricas e ideológicas do mundo Cokwe apresentadas por esses autores, o presente texto procura sintetizar; de modo sucinto e matizado, algumas das suas conclusões.

2. Os Cokwe n o contexto da África Central

De acordo com as tradições orais da África Central, os Cokwe possuem origens comuns muito antigas com outros grupos dessa região, entre eles os Aruwund, Mbangala, Masongo, ou Xinje, com os quais são aparentados política e cultu- ralmente

'.

Contudo, não há notícia escrita dos Cokwe até ao último quartel do século XVIII - o que reflecte não a sua eventual ausência fisica ou linguística, mas a falta de conhecimento geográfico ou etnográfico europeu acerca das regiões a leste dos rios Kwango e Kwanza. Até aos finais do século XIX, os Portugueses na costa atlântica juntavam todas as populações lon- gínquas entre os rios Kwanza e Zambeze sob o rótulo pejorativo de "Ganguela"'. N o entanto, nas línguas Luvale, Lwena, Luchazi, Cokwe e Mbunda, o termo nganguela significa a zona baixa de florestas e savanas arenosas e secas entre o planalto

Ibid., pp. 142-1 43.Vcja-se, também.Tavares, 1995

'

A ausênc~a de fontes escritas contemporâneas para a reconstrução histórica das sociedades das savannas é compensada pela existência de numerosas tradições orais.Tradições e informações orais sobre os laços históricos dos Cokwe foram registadas por Capelo e Ivens, 188 1 . 1 , pp. 173-174 e Carvalho, 1890, 1898. Porém, o conhecimento detalhado da história das socedades da África Central antes de 8 0 0 é complicado pelas dificuldades em interpretar essas tradições, as quais. para além do seu conteúdo simbólico contém uma visão telescópica do passado, confundindo acontecimentos históricos mais recentes com lendas antigas: Para o debate sobre a nterpretaqão da savanna africana ver; por exemplo. Heusch, 1972: Miller 1980, 1988, pp. 26-27: Para reconstruções da história política mais recuada dos Cokwe. Ruwund e povos vizinhos ver; em especial,Vaniina. 963, 1966: 011-mingham, 965; Margarida,

1971: Miller: 976, pp. 1 14150: Lima. 1988; Hoover; 1978a , 1978b Reefe. 198 1 , 1983, pp. 189- 192. Pamerim. 1994. Henriques, 1997.

OS ingleses. que se introduziram na mesma região vindo do leste referiam à mesma região e população coma 'Wika': veja-se Gluckman 1954, pp. 89-92.

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do Bié e o rio Zambeze. O u seja, na sua origem, ngonguela é um termo ecológico, cuja transformação em rótulo étnico durante o penodo colonial implicava a homogenização de uma situação historicamente complexa e bastante diferenciada em termos das formações sociais e das identidades e tradições culturais desenvolvidas nessa zona9. Hoje em dia, essa zona inclui povos chamados Luchazi, Mbunda, Cokwe, Lunda, Ndembu, Luvale e Lwena. Mas é impossível determinar o que essas diferenciações étnicas representam, sem saber a sua evolução histórica. Por sua vez, as fortes semelhanças culturais, políti- cas e linguísticas entre alguns desses grupos observadas por viajantes, antropólogos e administradores coloniais no século XX também sublinham a importância de adoptar uma perspectiva mais regional do que"tribaln na abordagem histórica dos mesmos grupos.

Parece evidente que, no século XIX, esses povos integravam uma multiplicidade de identidades culturais e políticas pro- duzida historicamente a partir de especializações ecológicas e de contactos milenários entre as populações espalhadas nas savanas da África Central. Aproveitando-se da facilidade de movimento, quer na savana, quer nas margens da floresta mais a leste '4 essas populações desenvolveram correntes migratórias em resposta às oportunidades fornecidas pelo comércio, pela protecção política ou pelas alianças matrimoniais. Por um lado, a partilha e o intercâmbio, de ideias e comportamen- tos resultantes desses movimentos populacionais teriam contribuído para reforçar as semelhanças ligando comunidades amplamente separadas e dispersas no meio de espaços vazios. Mas, por outro, a interacção histórica entre grupos forte- mente diferenciados e desiguais em termos dos recursos econórnicos ou das suas estruturas demográficas ou políticas teria provocado a afirmação de uma multiplicidade de identidades culturais distintas cujo sentido subjectivo de diferença - às vezes quase imperceptível ao observador estrangeiro - exprimia-se através da sua cultura material, língua, adornos corpo- rais, ou mitos de fundação. Entre os muitos grupos linguísticas que se formavam através desse longo processo histórico incluíam-se as populações Cokwe do além Kwango I ' .

As semelhanças geográficas, culturais e políticas da vasta região entre o rio Kwanza e o alto Zambeze no século XVIII facilitavam o desenvolvimento de redes regionais de comércio cuja antiguidade é confirmada pelos poucos dados arqueo- lógicos existentes.Tais redes baseavam-se sobretudo nos depósitos de sal e de minérios de ferro e cobre, sendo particu- larmente desenvolvidas em volta das concentrações destes minerais e também nas zonas ecológicas de transição que favo- reciam a troca de produtos regionais especializados e complementares; ou seja, entre a floresta e a savana, o litoral e o interior; entre as matas mais secas e os vales de rios mais húmidos, ou entre zonas agrícolas de pastorícia

".

Esses produtos incluíam, para além dos produtos da floresta, géneros alimentícios, medicinas e os serviços especializados de adivinhos e Esta realidade histórica é dedurida prncpalmente de registos arqueo1ógicos:Veja-se, por exemplo. Philipson, 974, pp. 1-25; e Derricourt & Papstein. 977. ' O Veja-se, por exemplo,Vansina, 1973-74.

' ' De acordo com o explorador alemão, Otto Schuti, que viajou entre as Cokwe em 878. eles se teriam fixados há mais de trezentos anos.

' Veja-se Birmingham, 970. Estes aspectos do comércio africano foram também aprofundados por Miller; 1988: tendo sido revis~tados mais recentemente por Henriques, 9 9 5 e 1997.

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curandeiros. Os rios tributários, sobretudo nas bacias do Zaire e do Kasai proporcionavam caminhos importantes para o comércio e para a migração local. Por sua vez, as semelhanças linguísticas verificadas na maior parte dessa região tornaram relativamente fácil a comunicação entre a maioria dos agrupamentos populacionais que habitavam essas bacias e ainda a do rio Kasai ' I .

As unidades políticas dessa região também compartilhavam uma tradição histórica comum, com sínibolos e estruturas políticas semelhantes. Os Cokwe se integravam no sistema de matrilinhagens Mbwela, de grande antiguidade, que atraves- savam as diferenciações culturais, ou 'tribais" emergentes, facilitando a mobilidade e a migração.Além desses laços históri- cos e sociais, práticas rituais comuns (mukondo e os cultos de possessão mahombo), também funcionaram para cortar as diferenciações culturais. A cerimónia mukondo, em especial, constituía uma experiência comum para todos os adultos mas- culinos, unindo-os e dando-os um estatuto social mutuamente respeitado e reconhecido em toda a região entre os rios Kwanza e Zambeze 14.

Até aos meados do século XVII, as populações a leste do Kwanza, incluindo os Cokwe, eram pouco afectadas pela pre- sença portuguesa na costa angolana. N o entanto, a partir dessa data, com a expansão do tráfico transatlântico de escravos os tentáculos mercantis alcançaram pontos cada vez mais distantes do interior 15. Não é por acaso que os Cokwe emer- gem pela primeira vez na documentação colonial na última década do século XVIII quando o tráfico transatlântico come- çava a atingir o seu auge. Integrando uma vasta rede de comércio africano, esse tráfico já abrangia quase todas as socieda- des da África Central, com excepção dos grupos agro-pastorícios e caçadores-recolectores, semi-nómadas, do extremo sul de Angola. A expansão do c o m é ~ i o e a violência da guerra redefiniram de maneira mais nítida as relações sociais e políti- cas entre grupos vizinhos e aparentados - incluindo os povos referidos na documentação histórica europeia como "Lundas" 16. para além dos Mbangala e os C o k w e , ou entre os povos agricultores das terras altas do planalto central, mais tarde designados como Ovimbundu.

As terras do Ciboku I', que nesse período constituíam o espaço central das populações Cokwe, eram estrategicamente situadas entre duas principais rotas de comércio: uma mais a sul, seguia para os povos Luvale 18, do alto Zambeze, a outra,

mais ao norte, para os Aruwund (ver mapa I). Essas terras, "bastante elevadas" constituindo "...verdadeiro centro hydro-

" Sobre este ponto veja-se, Papstein 1978, pp. 268-29 1

" Sobre as rituais mukanda e mahamba vejam-se, entre outros.White. 1953, pp. 4156: Mwondela, 197O;Van Koowijk 1963, pp. 156-I7Z;Turner; 1957, Lma. 197 1, Papstein, 1978.

' i Veja-se M~ller; 1988

Estes povos incluíam, para além dos"Lunda da MantYaav", ou Aruwund, mais a norte, os Luapula do Karembe. mais a leste, e os Ndembu. mais ao sul. para além de pequenos grupos periferais. entre eles osYaka, do Kwango: veja-se Palmeirim, 1994, pp. 23-26

' "Quiboro" na documentação portuguesa. Escrito como "Trhibaco" em Bastin, 196 I . Actual regláo de Moxico. Chamados "Lovai' nas fontes contempoianeas portuguesas

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gráphico, d'onde irradiam, por sulcos profundos, águas que pelo Congo-Zaire, Cuanza e Zambeze passam aos dois grandes oceanos

..." ",

consistiam de terrenos arenosos, sujeitos a secas periódicas. Quando as chuvas permitiam, os habktantes cultivavam uma variedade de colheitas, incluindo mandioca, milho painço, milho, amendoim, cana-de-acúcar e bananas

".A

mandioca, introduzido do Atlântico nos meados d o século XVI e comum em toda a zona entre os rios Kwanza e Zambeze na segunda metade do século XVIII, deu maior segurança alimentar; eli- minando os períodos de fome2'. Nas últimas décadas do século XVIII a caça, sobretudo aos elefantes, era já uma adividade assinalável ". Na ausência de refe- rências documentais, é razoável supor que, em comum com outras sociedades africanas da África Central nessa data, a sociedade Cokwe também possuía cate- gorias de pessoas não-livres, incluindo escravos, que, em princípio teriam entrado nas operações de permuta conduzidas nas suas terras por traficantes portugue- ses. Contudo, as observações dos primeiros viajantes brancos que atravessaram essas terras rumo a Luvale a partir de 1789 à procura de escravos 23 indicam que,

nessa data, o tráfico protagonizado pelos Cokwe era pouco significativo. Esses via- jantes referem os C o b e como uma população pacífica que não fazia guerra aos vizinhos. E se os chefes políticos "Quiboque" e "Bunda" acolheram bem os comerciantes brancos que atravessavam as suas terras, há pouca menção de per- mutas de escravos ou marfim para as importações europeias. Em contrapartida, a identificação de uma população Cokwe n o Brasil2' revela que os próprios Cokwe se tornaram vítimas desse tráfico. Se alguns podiam ter sido capturados em eventuais assaltos esclavagistas por parte dos povos Mbangala ou

Mapa I De: I. C. Miller,"Cokwe Trade and Conquerr" ( I 970)

' Capello e Ivens. 188 1, p. 202.

"

Anónimo."Epanáfora dos dias de viagem que se gastão desde a Libata do Sauva Caberaber denominada Quindombe athé às terras do Loval; rios grandes, que se passão nomes das terras e souvas dellas". (1789), em Felner. 11, 1940. p. 25

>' Não é fácil determinar precisamente a cronologia da difusão de mandioca no interior afrcano. Mandioca entrou em Angola no século W I e estava a ser plantada entre os povos Lovale nos meados do século XVIII: vejam-se, por exemplo, Redinha, 1968, Roberts, 1976. p. 142;Vansina. 1997

"

Anónimo (1 789). em Felnec 1940.11. p. 25

"

Vejam-se Anónimo (1789) em Felnec 1940, I , pp. 24-25:Teixeira (1794). em Felner. 1940, 1, pp. 236-237:Vasconcelos (1799). em Annaes Marltimos e Coloniais, Lisboa, 1844, pp. 159-16 1; Baptista, 1843, p. 236.A~ observações desses viajantes em relaçáo ao"Quiboco"Mo submitidas a uma crítica exaustiva em Henriques, 1997. pp. 434-438

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Ovimbundu 2s, outros eram provavelmente canalizados para o Brasil através das redes tributárias do Estado, ou "império" Ruwund, principal gestor dos escravos exportados das costas de todo o litoral angolano 26.

3. O "império" Ruwund

Nos finais do século XVIII, o "império" Ruwund constituía uma espécie de federação comercial e tributária, relativa- mente coerente e estruturada, cuja influência estendia-se sobre uma vasta área entre o rio Kwango e o alto Zambeze. Ela integrava grande parte das populações aparentadas, embora linguística e culturalmente distintas dessas regiões, incluindo os Cokwe, através de uma rede de autoridades políticas e militares que se identificavam como "Aruwund", adoptando a orga- nização e os símbolos políticos da corte dos MwanrYaavi7, cuja capital, ou rnusurnb (Musumba),se situava além do rio Kasai. Essas autoridades enviaram tributos periódicos - caravanas de escravos e outros produtos locais - ao Mwant Yaav, que os retribuiu pela distribuição sobretudo de bens europeus importados, obtidos através da venda de escravos". Nessa altura, é provável que as aldeias do Mwant Yaav e de outros membros da oligarquia central do "império" incorporassem grandes concentrações de escravos, aumentando assim as concentrações populacionais em volta dos seus centros de poder princi- pais, ou rnbonza.Tal populaçZo escrava nZo só colonizava e desbravava novos terrenos agrícolas, como reforçava o prestí- gio político-militar dos seus senhores, para quem constituía um capital humano disponível para pagar tributos internos ou vender em troca de bens estrangeiros 29.

Até

aos meados do século

XIX, as relações do Estado Ruwund com a colónia portuguesa eram medidas por uma

íonstelação de outros Estados intermediários do vale do Kwango, nomeadamente,Yaka, Matamba, Holo, Mbondo e Kasanje. Durante mais de um século, Kasanje, cujo "rei", ou "jaga", intitulado Kinguri, reclamava laços directos de parentesco com a dinastia Ruwund dos MwantYaav, tinha impedido o livre comércio e trânsito de estrangeiros nas suas terras, exercendo um monopólio do tráfico do kinguri, conduzindo ao gradual desmoronamento do poder centralizado de Kasanje facilitou as relações directas do Mwant Yaav com os estabelecimentos portugueses do litoral atlântico. Em 1808, respondendo ao con-

"

Hambly 1954, p. I 13

'*

Segundo à uma fonte contemporânea, a zona subordinada à influencia Ruwund forneceu um terço dos escravos exportados anualmente de Luanda e de Benguela antes de 1850 o que , segundo a um cálculo recente teria dado uma média de entre 2,000 a 3,000 pessoas: ver Birmingham, 1970. p. 1 13, citando Magyar (1 859). Um número muito maor de escravos onundos dessa regi20 teria saído, no mesmo pen'odo, porém, de outros pontos da costa angolana náo controlados pelas autoridades coloniais portuguesas.

"

Escr~to como"Mwata Yamvo" ou 'Muatiânvua" nas fontes portuguesas

2' Birmingham, 1970. p. 95. Para o debate sobre as origens do império Ruwund, veja-se, ente outras, as fontes referidas na nota 7, mais acima.

''

Ver Brmingham, 1970. p. 96. Uma das fontes portuguesas mais importantes para informações sobre a região abrangida pelo poder Ruwund nas últimas décadas do séculoXVIII é o relato de Manoel Correia Leitão. publicado em Dias, 938. pp. 3-30. Para a história dessa região nesta época vel; sobretudo, Velut, 1970, pp. 75-1 35; 1972. pp. 61 -1 66.

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vite do governo de Luanda, o Mwont Yaov enviou uma caravana até a colónia portuguesa3", quebrando, finalmente, a bar- reira de quase dois séculos, imposta pelo Kasanje nos contactos directos estabelecidos entre os diferentes grupos de trafi- cantes portugueses e as populações Shinje, Minungo, Cokwe e outros, subordinados ao Mwont Yoov a leste do Kwango começavam a minar os laços tributários internos do próprio Estado Ruwund, ameaçando a sua unidade política.

4.A expansão de comércio "legítimo"

Esse enfraquecimento dos laços tributários internos e da autoridade política centralizada do Mant Yoov acelerou-se a partir da década de 1820, no contexto da intensiticação do tráfico transatlântico de escravos e da exportação para a Europa de produtos tropicais, especialmente a cera de abelha3'. a goma copal, o marfim e, mais tarde, a borracha3'. A

subida dos preços internacionais desses produtos a partir dos finais do século XVIII ofereceu novas oportunidades a todas as sociedades africanas autónomas, do vasto hinterlond florestal e silvestre dos planakos além dos rios Zaire, Kwango, Kwanza e Kubango, incluindo os Cokwe. A prontidão de resposta africana as exigências do novo comércio de exportaçZo colonial foi facilitada sobretudo peb adaptação das técnicas de subsistência existentes - em especial de caça e de recolec- ção - ao aproveitamento do rnarfim, da cera de abelha, da goma copal ou da borracha. A região entre o Kwanza e

Zambeze foi muito rica nesses géneros, a maior parte dos quais podiam ser recolhidos e preparados para venda por qual- quer pessoa e cuja exportação não foi a custa do consumo local. As terras dos Cokwe eram abundantes em elefantes e enxames de abelhas, e ao alcance fácil do entreposto português do Bié. Nas décadas de 1840 e 1850, foram os Cokwe, juntamente com grupos vizinhos, tais como os Luchazi, Lwena e Luvale, que produziram a maior parte da cera e do mar- fim que afluia a Luanda e a Benguela3'.

Por sua vez, o aproveitamento africano da subida dos preços de marfim na costa teria sido facilitado pelo grande pres- tígio e importxncia simbólica e religiosa atribuída à actividade de caça, em especial a caça aos elefantes.Técnicas usadas pelos Cokwe na década de 1840 continuaram a incluir os arcos e as flechas e as azagaias envenenadas, para além de bura- cos escavados na terra como armadilhas3'.Ao mesmo tempo, os novos lucros provenientes sobretudo da venda de cera, teriam proporcionado aos caçadores Cokwe, o poder de compra das armas de fogo "lazarinas", há muito importadas em

"

AHU, Angola, cx.58. carta do governador Saldanha Gama, 18 de Janeiro de 1808;Torres. 1825, pp. 300-30 I ;Vellut, 1972, pp. I 10- I 15

' Em 1844, o valor das exportações coloniais de cera rondavam os 32.000800, ocupando o terceiro lugar no comércio euterno angolano: ver Lima, 1846, p.

76. As exportações de cera a partir de Luanda aumentaram de 52,690 libras em 1844 para 1,698,348 libras em 857: ver Miller. 1970, p. 178

" Sobre as tendênc~as económicas nternacionais relativds à África no século XIX, vel; por exemplo, Hopkins, 1973: Munm, 976:Audin. 1987.

" Na sua viagem através de "Quiboca". em 1846. Joaquim Rodrigues G r a ~ a observou que "mensos carregamentos" de cera partiram anualmente desse

districto para Cassange e Bié: Graça, 8 9 0 . p. 415. Considerava-se a cera de "Quiboco" a da melhor qualidade em toda a África austral: veja-se Miller. 970. p. 178

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Angola, mas, ao que parece, só então utilizadas por esses caçadores africanos 15. Nesses anos, o sertanejo Lazlo Magyar observou pequenos grupos de caçadores Cokwe espalhados nas florestas a leste e ao norte de Musumba 16, onde eram obrigados a pagar às autoridades políticas das terras onde caçavam um dente de marfim em cada elefante morto ". O pró- prio Mant Yaav decretou o pagamento de tributo em mariim, em vez de escravos ", consolidando, assim, o novo padr2o de comércio externo e reforçando a importância desses caçadores no seu território. Em 1850. o valor do marfim exportado do estado Ruwund excedeu aquele de escravos J9. Porém, a crescente disponibilidade das armas de fogo que permitiu aos Cokwe e às populaç6es vizinhas responder à procura externa do mariim através da caça mais eficaz dos elefantes, acabou de determinar a fuga e exterminação destes nas terras do Ciboku na década de 185040. Semelhante destino tiveram os elefantes, outrora abundantes, em todas as regiões atingidas pela nova procura do marfim, tais como Songo, Bié, a regiáo de Ngangea, Lunda e até Luvale, mais a leste, onde o sertanejo português Silva Porto afirma já, em 1850, que não havia marfim suticiente para satisfazer o comércio europeu 'I.

Foram os contactos directos estabelecidos com o Mont Yaav e outros régulos além Kwango na década de 1840, durante as viagens exploratórias realizadas a partir do Bié e Mbaka, por sertanejos como António Ferreira da Silva Porto ", Joaquim Rodrigues da Graça", ou Lazlo Magyar; que contribuíram para estimular a maior produção e comercialização afri-

cana da cera e sobretudo do marfim '4, artigo de grande valor simbólico no quadro do poder politico africano, cuja extrac- ção tinha sido, no passado, rigorosamente controlada pelos chefes políticos das terras onde se encontravam os elefantes. A partir dos anos de 1850, o marfim passou a ser comerciado, cada vez mais, por autoridades políticas menores e até pelos milhares de caçadores individuais que guardavam os dentes para vender às caravanas organizadas por esses outros serta- nejos brancos e negros estabelecidos em Bié ou em Mbaka, agentes de firmas portuguesas estabelecidas na costa atlântica. Alguns produtores africanos, nomeadamente os C o h e , também organizaram caravanas pequenas, carregando cera de

- .~

" Ibid. Baseando-se nas obsen~ações de viajantes brancos, nomeadamente Graça( 8 9 0 ) pp 4 13 e 426, Gamitto, 1854, p. 237, e Capella e Ivens, 188 I pp. 16 1 - - 170, Isabel Caem Henriques. 1989, 1997, p. 6 18, distingue entre as espingardas'raiúnas mais pesadas, associadas às r~tuas e cerimonias palkicas e religiosas quiocas. e as"Izar~nas''. procuradas pelos caçadores quiocas, que os africaniraram, sacralizando-as com decorações s m b ó l i r ~ : Henriques. 1989, 1997, p. 6 18.

''

Miller. 1970, p. 179, citando Petermann, 1860, v01 VI. p. 228.

" Magyar. 1859, p. 9 (Agradece-se a Lotte Pfluger e a Mar~a da Conceçáo N e t o a cedência de uma cópia da tradução portuguesa da obra de Magyar; em publicação a sair em Luanda): Carvalho, 1890, p. 699. Graça, 1854155; Henriques, 9 8 9 . p. 4 16

Miller. 1970, pp. 7 9 - 8 0 , citando Bastin, 1966, p. 2 5 . Miller. 1970, p. 7 9

' O Livingitane, 1963. p. 106; Miller; 1970, p. 179.

'' Santoi, 1986, p. 83

"

Ibid..'7ntmduçãa" passim.

" Graça, 1890, pp. 373-488; 854-58.

" Assim. p o r exemplo. segundo Joaqum Rodrigues da Graça, foi ele próprio quem convenceu o Mwant Yaav, Nawej I , a vender a sua grande reserva de mariim: veja-se Graça, 1854158, pp. 44 1.445.463.466

(27)

abelha até Bié ". N o entanto, até aos finais da década de 1860, fora do escoamento clandestino de géneros coloniais que se dirigia para as feitorias estrangeiras na costa de Ambriz, grande parte do mariim, da cera e de goma copal de produção africana desceu a Luanda, Benguela ou Moçamedes através das caravanas oriundas dos núcleos coloniais portugueses. A partir da década de 1840, elas percorriam distâncias cada vez maiores e mais diversas. Não só foram mais ao sul, passando pelo Humbe até às margens do Kubango e do Lago Ngami, mas penetraram também mais ao norte, estabelecendo liga- ções regulares com países tão longínquos como Katanga. Nos meados do século, as autoridades portuguesas também ini- ciaram uma vaga de acções militares, visando não só a ocupação mais efediva do interior e dos entrepostos europeus avançados do hinterland, entre eles a feira de Kasanje, de forma a proteger os investimentos sobretudo da praça de Luanda, como. também, a integração progressiva da população africana autónoma na rede fiscal e administrativa colonial.

Por sua vez, a comercialização africana do mariim e da cera produzida para o mercado colonial inseriu-se numa teia com- plexa de trocas internas as quais faziam a ponte de ariiculação entre o comércio de iniciativa europeia e o sistema de comér- cio africano autónomo praticado entre as sociedades do interior. A farinha de mandioca, tabaco, panos (ntangas) de algodão, enxadas ou gado de produção e criação africanas entravam como moeda de troca, juntamente com as importações euro- peias, nos circuitos mais a leste. D o ponto de vista de muitos africanos do interior de Angola, as mercadorias, sobretudo estran- geiras, trazidas pelo comerciante "branco" eram não só altamente desejadas como sinais exteriores de riqueza, como muitas vezes vistas ainda como obra sobrenatural, possuindo por isso propriedades mágicas 46. Mas nem sempre os tecidos e outros

artigos de fabrico estrangeiro eram os bens mais procurados. Na década de 1870, por exemplo, alguns Cokwe trocavam a cera de abelha directamente por tabaco, de cultura e preparação africanas, em preferência às importações europeias4'. Se é

cedo que a procura externa, por parte da sociedade colonial, estimulou a maior produção e comércio de marfim e outros produtos entre as sociedades africanas, as preferências específicas e diferenciadas destas sociedades eram também cruciais. 5. O carácter da sociedade e política Cokwe nos meados d o século XIX

Os relatos dos sertanejos e outros viajantes europeus entre as décadas de 1840 e 1870 fornecem a primeira série de imagens vivas das populações africanas a leste do Kwanza. Para alguns desses observadores, os habitantes de Ciboku se destacaram a primeira vista pelo seu aspecto físico, sendo "...altos, esveltos, de força e agilidade extraordinária...". Mas

Henr~ques, 1997, p. 61 2, citando Silva Porto,"Viagens e Apontamentos de um Portuense em África", manuscrito da Biblioteca Pública Muncipa do Porta (BPMP),Vol.2" (de I de Mato de I854 a 3 I de Dezembro de 1862), cap.VI. p. 162.

'* Henriques, 1997, p. 430

"

Soremekun, 1977. p. 84

(28)

foi o seu penteado "...invariavelmente constituído por longas tranças, e uma

longa pera de igual maneira ..." que os distinguia "desde logo" dos outros povos vizinhos Distinguiam-se também não só pela sua coragem e estima pela caça

de elefantes e outros animais, mas também pela beleza da sua cultura material. Em especial, os Cokwe eram muito conotados como artesãos. Silva Porto conta, por exemplo, que os carregadores africanos pertencentes às caravanas comer- ciais oriundas do Bié não resistiram à tentação de comprar artigos fabricados e postos a venda nas aldeias cokwe, em especial tecidos de algodão

'*.

Sobretudo,

os Cokwe gozavam de grande prestigio pela sua habilidade como escultores de

'

madeira e nas artes do ferreiro 50 Para além de implementos utilitários ou deco-

' -2

,"

9ULSSANJ.L rativos, como enxadas ou machados, os ferreiros Cokwe fabricavam facas e aza- gaias, pulseiras e manilhas de cobre e outros objectos de significado simbólico e Fig. 2

ritual. Essas técnicas de ferreiro foram transferidas também para a reparação e reciclagem das espingardas "lazarinas" importadas 'I. Por sua vez, artistas Cokwe esculpiam máscaras, cadeiras e estátuas, que se encontraram entre as mercado-

rias oferecidas ao próprio comércio europeu ", e que eram também muito pro- curadas para fins politicos e religiosos por grupos africanos vizinhos, em especial os povos abrangidos pelo Estado RuwundS3. A o mesmo tempo, eram bons

oleiros, trabalhando "..,a terra com perfeição. tirando todo o partido de uma argilla negra, que o paiz produz, para o fabrico de cachimbos de primorosa

execução ..."54. A semelhança de outros povos vizinhos, a prática de música, através de tocar a quissanja, marimbas, tambores e outros instrumentos, junta-

"

Capello e lvens, 188 1 . 1 . p. 203

'' Porto, 942. pp. 136-1 37: Henriques, 1997, p. 447

Henriques, 1997, citando Silva Porto,'Viagens e Apontamentos de um Portuense em África", vol.2" (de I de Maio de 1854 a 3 1 de Dezembro de 1862), BPMF p. 162: Porto. 1942. p. 136: Magyal: 1859. p. 9: Capello e Ivens. 188 1, 1, p. 204.Vejam-se também Redinha. 1953; Martins, 1966: Lima, 977. pp. 345-35 1 .

"

Henriques, 1997, p. 6 I8

"

Ibid.. pp. 621-622, citando as observa~ões de Silva Porto.

"

BKtin, 1961

(29)

Fig. 3 "...Trajavam os músicos um pouco á maneira

de mu-quiche, com pennas e saias: e, tangendo ar ins-

trumentos, fariam ao mesmo tempo tolirs ambati-

cor. punham as mãos no chàa e os pés para o ar, acabando por meneios e esgarer, gritos e saltos..

."

Cape110 e lveos, 1881, i,

c.

204

mente com a dança, também oesempenhou um papel importante, não só religioso e político, como Iúdico, entre os Cokwe (Figs.2 e 3)

Quanto à organização social e política dos Cokwe, as informações são escassas. Rodrigues Graça, que. em 1846, per- correu

as

terras de Ciboku rumo a Musumba, transmite uma imagem muito negativa dos seus habitantes, referindo-os como populações dispersas e "errantes", sem habitat fixo ou permanente, em contraste com outros povos africanos vizi- nhos. Os Cokwe que ele conheceu viviam na floresta em pequenos cercados de palha, muito rudimentares, no meio das suas culturas alimentares5! LLázlo Magyar; tal como David Livingstone, que atravessou as margens desse território pouco depois, confirma a imagem dos Cokwe como uma população bastante numerosa, organizada em pequenos agrupamentos ou aldeias, muito disseminados e dispersos, quase invisíveis no meio do capim, e que não ultrapassavam um milhar de pes- soas. Nas visitas desses viajantes nunca faltaram alimentos, quer para a subsistência, quer para o comércio

Tanto Silva Porto como Magyar salientam a importância social e simbólica da circuncisão entre os Cokwe, sem a qual um homem não podia casar ou praticar poligamiaS8.A iniciação dos jovens durante as cerimónias de circuncisão visava pre- pará-los para enfrentar, com êxito, os enormes perigos provenientes da caça de animais grandes, em especial os búfalos e os elefantes. Pelo mesmo motivo, as armas de fogo utilizadas pelos caçadores Cokwe levaram decorações simbólicas untadas com misturas de substâncias naturais, incluindo elementos dos animais mortos, que as sacralizaram, assegurando o apoio e a protecção dos espíritos 59, enquanto nos seus acampamentos eram exibidos os chifres e crâneos de búfalos e antflopes uti- li Porto, 1942, p. 136. Henriques, 1997, p. 445. Capello e Ivens, 188 i , 1, pp. 159. 204. Segundo esies exploradores, os Cokwe passaram horas "sem fim"

"agarradas i qwssanja": lbid, p. 172

i' Graça. 1899, pp. 414-41 6. Henriques. 1997.

I' Livingstone, 8 5 7

' Porto: 1942. p. 136; Henriquer, 1998. p. 446 IP Redinha, 1950, p. 82: Henriques. 1998, p. 6 18.

29

Imagem

Fig.  3  "...Trajavam  os  músicos um  pouco  á  maneira  de  mu-quiche, com pennas e  saias: e,  tangendo  ar  ins-  trumentos,  fariam  ao  mesmo  tempo  tolirs  ambati-  cor
Fig.  4 " N o   alto das  choças  divrsavam~se chifres de  bufalo  oryx,  e  outros  antilopes, uns ainda I~gados  aos  craneos
Fig. 7  " T r a j a v a   um panno de  riscado preso  á  cinta  por uma correia, tendo  suspensa  adiante  pequena  pele de antelope
Fig.  8  "Um  negociante Quioco"  europeus. Neste  contexto, a  imagem  do  Cokwe  como  caçador  e  guerreiro,
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