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2 O teorema da completude

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Academic year: 2019

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(1)

A matem´

atica de Kurt G¨

odel

Fernando Ferreira

Universidade de Lisboa

I would like to convey to you, most of all, my admiration: You solved this enormous problem with a truly masterful simplicity. (...) Reading your investigation was really a first class aesthetic pleasure.

– John von Neumann1

1

Introdu¸

ao

A 3 de Mar¸co de 1978, cerca de mˆes e meio depois da morte de Kurt G¨odel, teve lugar no Instituto de Estudos Avan¸cados de Princeton (Nova J´ersia, E.U.A.) uma pequena cerim´onia p´ublica de homenagem ao grande l´ogico. A cerim´onia, presidida pelo ent˜ao director do Instituto, Harry Woolf, foi pouco publicitada tendo apenas atra´ıdo uma pequena audiˆencia. Hao Wang (l´ogico, amigo e correspondente de G¨odel), Simon Kochen (professor da Uni-versidade de Princeton), Andr´e Weil e Hassler Whitney (colegas de G¨odel no Instituto) prestaram oralmente um tributo a G¨odel e ao seu trabalho. Na sua interven¸c˜ao, Kochen recordou uma pergunta que Stephen Kleene lhe pˆos no seu exame doutoral: “Nomeie cinco teoremas de G¨odel”. De acordo com Kochen, a quest˜ao tinha como objectivo mostrar que “cada um dos

O Armando Machado e o Ant´onio Fernandes leram este trabalho e sugeriram-me

algu-mas altera¸c˜oes ´uteis. Agrade¸co-lhes os coment´arios. Um deles tamb´em sugeriu que o tra-balho fosse mais curto e menos especializado, tendo em vista que se dirige aos matem´aticos em geral e n˜ao aos l´ogicos. Video meliora proboque, deteriora sequor(vejo a melhor maneira e aprovo-a, mas fa¸co da pior maneira).

1

(2)

teoremas (...) iniciou uma ´area da moderna l´ogica matem´atica”.2

N˜ao se pode subestimar a centralidade do trabalho de G¨odel na l´ogica matem´atica. Esta centralidade reflecte-se, por exemplo, no conte´udo program´atico das cadeiras da ´area. A primeira parte duma cadeira de l´ogica matem´atica est´a geralmente organizada para demonstrar o teorema da completude de G¨odel e suas principais consequˆencias e, com frequˆencia, o curso culmina com os dois teoremas da incompletude de G¨odel. Uma cadeira de teoria dos conjun-tos – em que se abordem resultados de consistˆencia e independˆencia – cobre necessariamente o universo construt´ıvel de G¨odel. Numa cadeira sobre intui-cionismo o resultado simples, mas elucidativo, da interpreta¸c˜ao de G¨odel (e Gentzen) da aritm´etica cl´assica na aritm´etica intuicionista tem lugar garan-tido e, desde que as aulas tomem um determinado rumo, ´e mister estudar-se a interpreta¸c˜ao Dialectica de G¨odel. Num plano mais elevado, compartilho com muitos colegas a opini˜ao de que os teoremas da incompletude de G¨odel marcam indelevelmente o pensamento humano.

A obra matem´atica de G¨odel n˜ao ´e extensa. Consiste essencialmente em sete artigos de fundo, duas monografias baseadas nas suas aulas e numa s´erie de treze pequenos artigos (ou notas) publicados entre 1932 e 1936 na revista Ergebnisse eines mathematischen Kolloquiums (s˜ao escritos de uma ou duas p´aginas, com a excep¸c˜ao de um artigo de cinco p´aginas e de um outro com um ´unico par´agrafo).3

O Ergebnisse foi criado no final dos anos vinte do s´eculo passado pelo ge´ometra Karl Menger como f´orum de publica¸c˜ao das actividades dum semin´ario de matem´atica tamb´em por ele fundado. Menger foi aluno de doutoramento de Hans Hahn na Universidade de Viena (tal como G¨odel) e era mais velho do que G¨odel quatro anos (G¨odel chegou a ter uma cadeira de teoria da dimens˜ao com Menger). Menger convidou G¨odel em 1929 para integrar o semin´ario, tendo este nele participado activamente e colabo-rado na edi¸c˜ao de sete dos oito volumes doErgebnisse. Das contribui¸c˜oes de G¨odel para esta revista ressaltam pelo inesperado cinco pequenos trabalhos sobre geometria, incluindo um de uma p´agina em colabora¸c˜ao com Menger e Abraham Wald (o ´unico trabalho em conjunto de G¨odel). Estes pequenos artigos enquadravam-se num programa de Menger para “reformar” a geome-tria projectiva e diferencial. Dada a minha falta de competˆencia na ´area, n˜ao comentarei os trabalhos de G¨odel em geometria, assim como n˜ao comentarei

2

Epis´odio relatado por John Dawson na p. 266 de [6]. 3

(3)

os dois artigos de G¨odel sobre cosmologia relativista publicados bastante mais tarde em 1949 e 1952 (emReviews of Modern Physics e emProceedings of the International Congress of Mathematics; Cambridge, Massachusetts, U.S.A., 1950, respectivamente). Os restantes artigos de G¨odel noErgebnisse debru¸cam-se sobre resultados de l´ogica e, no que se segue, coment´a-los-ei brevemente. Entre 1931 e 1935, G¨odel escreveu in´umeras recens˜oes, princi-palmente de trabalhos em l´ogica – trinta e duas ao todo. Depois de 1935, G¨odel nunca mais escreveu recens˜oes.

Dos sete artigos atr´as mencionados, trˆes publicaram-se na revista da Uni-versidade de Viena Monatshefte f¨ur Mathematik und Physik, entre os quais os dos c´elebres teoremas da completude e incompletude. Em 1934, G¨odel d´a aulas no Instituto de Estudos Avan¸cados sobre os seus resultados, da´ı resultando uns apontamentos policopiados tirados por Stephen Kleene e J. Barkley Rosser. Estes apontamentos apenas ser˜ao publicadas trinta e um anos mais tarde, em 1965, numa colectˆanea organizada por Martin Davis intitulada The Undecidable. Os resultados de G¨odel sobre a consistˆencia re-lativa do axioma da escolha e da hip´otese generalizada do cont´ınuo foram publicados nosProceedings of the National Academy of Sciences, U.S.A., em 1939 (um an´uncio destes resultados fora publicado no ano anterior tamb´em nosProceedings). Em 1940, G¨odel publica uma monografia na s´erieAnnals of Mathematics Studies(Princeton University Press), baseada em apontamentos tirados por George Brown das suas aulas sobre os resultados de consistˆencia em teoria dos conjuntos. A monografia estuda estes resultados de forma mais detalhada e duma maneira tecnicamente diferente. O ´ultimo artigo publicado por G¨odel viu a luz do dia em 1958 num n´umero especial da revista sui¸ca Dialecticapor ocasi˜ao do septuag´esimo anivers´ario de Paul Bernays, amigo e principal correspondente cient´ıfico de G¨odel. Os dois artigos remanescentes s˜ao os estudos, atr´as referidos, sobre cosmologia relativista. As publica¸c˜oes que apareceram at´e 1936 est˜ao escritas em alem˜ao e as subsequentes em inglˆes, com a excep¸c˜ao do artigo de 1958 de homenagem a Bernays. Kurt G¨odel n˜ao teve estudantes nem deixou escola.

2

O teorema da completude

(4)

do c´alculo de predicados, se ela ´e v´alida ser´a que ent˜ao ´e formalmente de-dut´ıvel?4

A resposta ´e afirmativa, como mostrou G¨odel na sua disserta¸c˜ao de doutoramento submetida `a Universidade de Viena em Outubro de 1929 e defendida em Fevereiro de 1930 (uma reformula¸c˜ao da tese foi publicada em [10]). John Dawson, bi´ografo de G¨odel, reporta que – muito provavelmente – G¨odel escolheu o t´opico de disserta¸c˜ao sozinho e que a completou antes de a mostrar ao seu supervisor, Hans Hahn (cf. [6], p. 54 e tamb´em nota 2 de [43]).

As f´ormulas do c´alculo de predicados obtˆem-se formalmente a partir de s´ımbolos relacionais R, Q, etc. e de vari´aveis individuais x, y, etc. por meio da constru¸c˜ao de f´ormulas at´omicas, do g´enero ‘R(x, y)’, e da aplica¸c˜ao de conectivos proposicionais (nega¸c˜ao, condicional, etc.) e quantifica¸c˜oes universais e existenciais.5

Quando todas as vari´aveis duma f´ormula ocorrem quantificadas (mudas), diz-se que ´e uma f´ormula fechada. ´E caso da f´ormula

∀y∃xR(x, y)→ ∃x∀yR(x, y). Uma interpreta¸c˜ao desta f´ormula consiste num conjunto n˜ao vazio X (o dom´ınio da interpreta¸c˜ao) e numa rela¸c˜ao bin´aria

U ⊆ X × X (a interpreta¸c˜ao do s´ımbolo relacional bin´ario R). Quando

X ´e N e U ´e a rela¸c˜ao “menor ou igual”, a f´ormula acima ´e verdadeira nesta interpreta¸c˜ao, enquanto que se se modificar a interpreta¸c˜ao mantendo o dom´ınio N mas tomando U como sendo o conjunto diagonal de N×N,

ent˜ao a f´ormula em apre¸co ´e falsa. Uma f´ormula fechada diz-se v´alida se for verdadeira em todas as interpreta¸c˜oes.6

A f´ormula acima n˜ao ´e v´alida, mas j´a o ´e a f´ormula ∃x∀yR(x, y)→ ∀y∃xR(x, y).

Fruto do labor do programa logicista de Gottlob Frege, Bertrand Russell et al., nos anos vinte do passado s´eculo a l´ogica j´a se encontrava axiomatizada

4

O problema an´alogo para o c´alculo proposicional (toda a tautologia ´e formalmente dedut´ıvel) fora solucionado afirmativamente por Bernays em 1926. Emil Post j´a tinha antecipado uma solu¸c˜ao em 1921.

5

N˜ao se incluem nem s´ımbolos constantes, nem s´ımbolos funcionais nem o sinal de igualdade (o c´alculo de predicados puro). Por´em, G¨odel tamb´em trata o caso com o s´ımbolo de igualdade e a presen¸ca de s´ımbolos constantes e funcionais n˜ao levanta quaisquer problemas. ´E fundamental para se ter o resultado de completude quen˜ao se permitam quantifica¸c˜oes de s´ımbolos relacionais (nem funcionais). G¨odel ´e enf´atico a respeito deste ponto na nota 3 de [10].

6

(5)

de uma maneira precisa e formal. No seu trabalho, G¨odel adoptou um sistema dedutivo formal devido a Russell (e usado por Hilbert e Ackermann), o qual se passa a descrever com algumas modifica¸c˜oes menores. Os axiomas s˜ao todas as f´ormulas da forma

1. A∨A→A 4. (A→B)→(C∨A→C∨B) 2. A→A∨B 5. ∀xF(x)→F(y)

3. A∨B →B ∨A 6. ∀x(A∨F(x))→A∨ ∀xF(x)

onde, em 6, a vari´avelxn˜ao ocorre livre na f´ormulaA. As regras de inferˆencia s˜ao a regra do Modus Ponens e a regra da generaliza¸c˜ao que permite inferir

∀xF(x) de uma dedu¸c˜ao de F(x) (intuitivamente esta regra permite inferir uma asser¸c˜ao universal duma dedu¸c˜ao para indiv´ıduos ao arb´ıtrio).7

Tamb´em se permitem substitui¸c˜oes de vari´aveis mudas.

Na demonstra¸c˜ao da completude, G¨odel mostra a seguinte dicotomia: ou uma f´ormula (fechada) ´e satisfaz´ıvel numa estrutura cujo dom´ınio ´e N

ou, alternativamente, a sua nega¸c˜ao deduz-se formalmente.8

O resultado de completude sai facilmente desta disjun¸c˜ao.

A demonstra¸c˜ao de G¨odel segue linhas j´a trilhadas ao tempo. Apoiando-se explicitamente num trabalho de Thoralf Skolem de 1920, G¨odel reduz o problema a f´ormulas da forma ∀x1. . .∀xk∃y1. . .∃yrH(x1, . . . , xk, y1, . . . , yr),

onde H ´e uma f´ormula sem quantificadores.9

Assim, G¨odel pˆode restringir a sua aten¸c˜ao a f´ormulas com prefixo quantificacional da forma ∀ · · · ∀∃ · · · ∃.

O pr´oximo passo de G¨odel consiste em associar a cada f´ormula F uma sucess˜ao de f´ormulas sem quantificadores (com vari´aveis livres)F1, F2, F3, . . .

em que cada uma se deduz das seguintes e que satisfaz duas propriedades: (a) cada condicionalF →En´e uma f´ormula v´alida, ondeEn´e o fecho existencial deFn;10

(b) se as f´ormulasFns˜ao simultaneamente satisfaz´ıveis no sentido do c´alculo proposicional,11

ent˜aoF ´e satisfaz´ıvel numa interpreta¸c˜ao de dom´ınio

7

Nesta axiomatiza¸c˜ao, os s´ımbolos l´ogicos primitivos s˜ao a nega¸c˜ao, a disjun¸c˜ao e a quantifica¸c˜ao universal. O condicionalAB abrevia¬AB.

8

O leitor com estudos de l´ogica observar´a que este resultado incorpora o resultado de Leopold L¨owenheim de 1915 segundo o qual uma f´ormula satisfaz´ıvel ´e satisfaz´ıvel numa estrutura de dom´ınio N. No c´alculo de predicados com igualdade tem tamb´em que se prever o caso da f´ormula ser satisfaz´ıvel somente em dom´ınios finitos.

9

Skolem mostrou como associar a cada f´ormulaF uma f´ormulaS (a suaforma normal

de Skolem) com a forma acima de tal modo que uma ´e satisfaz´ıvel num dado dom´ınio se, e somente se, a outra tamb´em o for. Para obter a sua redu¸c˜ao, G¨odel argumenta que se

¬S se deduz, ent˜ao¬F tamb´em se deduz.

10

O fecho existencial duma f´ormula obt´em-se prefixando-a com quantificadores existen-ciais de modo a obter uma f´ormula fechada. Mutatis mutandispara o fecho universal.

11

(6)

N. Considere-se a alternativa entre

(1) Cada Fn ´e satisfaz´ıvel no sentido proposicional; e

(2) Alguma f´ormula Fn n˜ao ´e satisfaz´ıvel no sentido proposicional. Caso se dˆe a primeira alternativa, G¨odel invoca “argumentos familiares” para concluir que as f´ormulasFns˜ao simultaneamente satisfaz´ıveis no sentido proposicional e, por (b), conclui que F ´e satisfaz´ıvel numa interpreta¸c˜ao de dom´ınio N. Por outro lado, usando a forma sint´actica especial das f´ormulas

Fn, G¨odel mostra que todos os condicionais F → En se deduzem formal-mente. Se se tiver a segunda alternativa para um certoFn, sai imediatamente que ¬Fn ´e uma tautologia. Consequentemente, pelo teorema da completude proposicional, ¬Fn deduz-se proposicionalmente. Ergo, o seu fecho universal (equivalente a ¬En) deduz-se e, portanto, ¬F tamb´em. Q.E.D.

O leitor com treino em l´ogica reconhece no estudo da primeira alternativa a propriedade da compacidade do c´alculo proposicional. No seu coment´ario ao artigo de G¨odel, Burton Dreben e Jean van Heijenoort interpretam a ex-press˜ao ‘argumentos familiares’ como denotando o uso duma forma do axioma da escolha (cf. p. 54 de [27]). G¨odel n˜ao refere o trabalho recente de D´enes K¨onig de 1926 em que este uso ´e feito explicitamente, mas presumivelmente o tipo de argumento seria “folclore”. Trata-se, contudo, duma aplica¸c˜ao do axioma da escolha em circunstˆancias muito especiais que, na realidade, a torna sup´erflua. Ainda assim, o argumento ´e essencialmente n˜ao constru-tivo. A sucess˜ao de f´ormulas Fn, tal como o estudo da primeira alternativa, j´a eram conhecidos por Skolem em [41] mas – aparentemente – G¨odel n˜ao sabia deste artigo. Somente o estudo da segunda alternativa ´e novidade ab-soluta na demonstra¸c˜ao de G¨odel, se bem que esta parte do argumento seja simples de alcan¸car. Em 1967 G¨odel, depois duma nota cautelosa chamando a aten¸c˜ao para o facto de se estar a debater acontecimentos dos anos vinte atrav´es do prisma da l´ogica dos anos sessenta, comentou assim a situa¸c˜ao numa carta a Hao Wang (cf. p. 397 of [30]):

Matematicamente, o teorema da completude ´e de facto uma con-sequˆencia quase trivial de Skolem[41]. Todavia, acontece que, na ´epoca ningu´em (incluindo o pr´oprio Skolem) fez esta inferˆencia (nem a partir de Skolem [41] nem, como eu fiz, a partir de con-sidera¸c˜oes similares suas).

(7)

G¨odel generaliza ainda o resultado da completude a um conjunto nu-mer´avel de f´ormulas: dado um conjunto nunu-mer´avel de f´ormulas, ou bem que elas s˜ao simultaneamente satisfaz´ıveis ou, ent˜ao, a nega¸c˜ao duma con-jun¸c˜ao finita delas j´a se deduz formalmente. Deste enunciado G¨odel retira o seguinte resultado de compacidade: para que um conjunto numer´avel de f´ormulas seja satisfaz´ıvel ´e condi¸c˜ao necess´aria e suficiente que todo o seu subconjunto finito seja satisfaz´ıvel.12

Mais tarde, em 1936, Anatolii Maltsev generaliza a compacidade para conjuntos n˜ao numer´aveis. O pr´oprio G¨odel estabeleceu em 1932 (cf. [13]) uma esp´ecie de resultado de compacidade para o caso n˜ao numer´avel no ˆambito do c´alculo proposicional.13

Na parte final da sua tese, G¨odel demonstra ainda a independˆencia da axiom´atica usada por Hilbert e Ackermann.

3

Como ´

e que G¨

odel chegou `

a incompletude?

Noutro artigo deste volume, Reinhard Kahle debru¸ca-se sobre os teoremas da incompletude de G¨odel pelo que n˜ao os discutirei em detalhe. Convido o leitor a consultar o artigo de Kahle. Por´em, ´e interessante discorrer um pouco sobre a forma como G¨odel chegou aos teoremas da incompletude. Estes, ao contr´ario do teorema da completude, surgiram inesperadamente para a comunidade matem´atica. O que se sabe sobre este assunto devemo-lo a Hao Wang que, em [43], relata conversas com G¨odel sobre este tema.

No ver˜ao de 1930, G¨odel toma como problema a consistˆencia formal da an´alise. Isto significa considerar um sistema axiom´atico totalmente formali-zado da an´alise e mostrar que dele n˜ao se deduzem contradi¸c˜oes. Adicional-mente, o m´etodo de demonstra¸c˜ao da consistˆencia deve serfinitista– seguindo as normas do Programa de Hilbert. Por exemplo, pode demonstrar-se a con-sistˆencia da geometria de Lobatchevski por meio duma sua interpreta¸c˜ao na geometria euclideana (e.g., atrav´es do disco de Klein). Este m´etodo fornece t˜ao-somente uma demonstra¸c˜ao da consistˆencia da geometria de Lo-batchevski relativa `a geometria euclideana. Hilbert, por outro lado, procu-rava demonstra¸c˜oes de consistˆencia dum sistema formal que n˜ao se baseassem

12

A compacidade parece ter-lhe ocorrido mais tarde, pois n˜ao aparece na disserta¸c˜ao. 13

(8)

em suposi¸c˜oes de consistˆencia de outro sistema formal. As demonstra¸c˜oes, por sua vez, apenas se poderiam apoiar em argumentos matem´aticos incon-troversos – os tais argumentos de car´acter finitista.

G¨odel optou, prudentemente, por n˜ao abordar directamente o problema de consistˆencia antes considerando o problema da consistˆencia da an´alise em rela¸c˜ao `a aritm´etica. Este passo, por si s´o, j´a constituiria uma contribui¸c˜ao significativa para o Programa de Hilbert. Em [43], Wang reporta o seguinte:

(G¨odel) representou os n´umeros reais por f´ormulas ... da teoria dos n´umeros e descobriu que tinha que usar o conceito de verdade para f´ormulas fechadas da teoria dos n´umeros para conseguir veri-ficar os axiomas de compreens˜ao para a an´alise. Rapidamente se deparou com os paradoxos relacionados com a verdade e a defini-bilidade (em particular com o paradoxo do mentiroso e o paradoxo de Richard). Apercebeu-se de que a no¸c˜ao de verdade em teo-ria dos n´umeros n˜ao pode ser definida em teoria dos n´umeros e, por conseguinte, que o seu plano para demonstrar a consistˆencia relativa da an´alise n˜ao funcionava.

O passo chave neste fio de racioc´ınio foi, certamente, a percep¸c˜ao de que ´e poss´ıvel dar na aritm´etica um sentido preciso `as asser¸c˜oes auto-referenciais. Desta forma, se a no¸c˜ao de verdade fosse defin´ıvel na aritm´etica ent˜ao chegar-se-ia a uma contradi¸c˜ao (e.g., atrav´es da asser¸c˜ao ‘esta asser¸c˜ao ´e falsa’). Au contraire, a no¸c˜ao de dedutibilidade formal ´e

¯ defin´ıvel na aritm´etica. Logo, verdade e dedutibilidade n˜ao s˜ao a mesma no¸c˜ao. Este ´e o cerne do fen´omeno da incompletude. Wang prossegue:

(G¨odel) acaba por concluir que em sistemas suficientemente fortes como o Principia Mathematica(teoria dos tipos) ou a teoria dos conjuntos (“Zermelo-Fraenkel”) existem proposi¸c˜oes indecid´ıveis.14

G¨odel, por´em, era presumivelmente uma personalidade cautelosa (consulte-se o interessante [8]). A no¸c˜ao de verdade era uma no¸c˜ao com demasiadas conota¸c˜oes metaf´ısicas para ser bem acolhida em estudos matem´aticos (ou outros) no clima neo-positivista da Viena dos anos trinta. O trabalho seminal

14

(9)

de Tarski sobre este assunto ainda estava um bom par de anos no futuro.15

Naturalmente, G¨odel substitui a no¸c˜ao de verdade por uma no¸c˜ao sint´actica no seu artigo sobre a incompletude [11]. Depois de esbo¸car a demonstra¸c˜ao da incompletude na parte final da primeira sec¸c˜ao do seu glorioso artigo, G¨odel ´e elucidativo:

O m´etodo de demonstra¸c˜ao que se utilizou pode obviamente ser aplicado a qualquer sistema formal que, em primeiro lugar, pos-sua meios de express˜ao suficientes para que, quando interpretado intuitivamente, defina os conceitos (em especial o de ‘f´ormula de-dut´ıvel’) que ocorrem no argumento que desenvolvemos acima; em segundo lugar tem que ser um sistema no qual qualquer f´ormula dedut´ıvel seja verdadeira. Na execu¸c˜ao detalhada da nossa de-monstra¸c˜ao, que vem a seguir, substituiremos a segunda destas hip´oteses por uma mais fraca e puramente formal.

As cautelas de G¨odel tiveram a consequˆencia imediata de tornarmais forteo enunciado do primeiro teorema da incompletude. Em particular, desde que se suponha que a aritm´etica seja formalmente consistente, a asser¸c˜ao auto-referencial ‘esta asser¸c˜ao n˜ao se deduz’ n˜ao se deduz.16

Agora, com mais um

15´

E interessante inquirir se G¨odel sentiu a necessidade de formalizar matematicamente a no¸c˜ao de verdade para f´ormulas (fechadas) duma linguagem formal sob uma dada in-terpreta¸c˜ao. O seguinte ´e certo. Em primeiro lugar, determinadas afirma¸c˜oes de G¨odel necessitam da defini¸c˜ao formal de verdade para serem substanciadas rigorosamente. Um exemplo de tal afirma¸c˜ao ´e a seguinte em [14]:

Se imaginarmos o sistema Z [da aritm´etica] a ser sucessivamente alargado

pela introdu¸c˜ao de vari´aveis para classes de n´umeros, classes de classes de n´umeros, etc., juntamente com correspondentes axiomas de compreens˜ao, obtemos uma sequˆencia (prolong´avel no transfinito) de sistemas formais (...), tendo-se que a consistˆencia (...) de cada um destes sistemas se demonstra em todos os sistemas subsequentes.

Em segundo lugar, G¨odel sabia que a no¸c˜ao de verdade aritm´etica n˜ao se define na lin-guagem formal da aritm´etica (uma antecipa¸c˜ao do teorema da indefinibilidade da verdade de Tarski), como mostra uma carta de G¨odel a Ernst Zermelo em 1931 (cf. p. 427 de [30]).

16

O primeiro teorema da incompletude, tal como enunciado por G¨odel no Teorema VI de [11], tem duas partes. Esta ´e uma das partes e, como ´e patente, usa apenas como hip´otese a no¸c˜ao sint´actica de consistˆencia (formal). Para a outra parte, G¨odel utiliza a no¸c˜ao mais forte deω-consistˆencia. S˜ao estas no¸c˜oes que substituem a no¸c˜ao de verdade

(10)

pouco de reflex˜ao, obt´em-se o segundo teorema da incompletude de acordo com o qual a consistˆencia formal duma teoria “suficientemente forte” n˜ao se deduz na pr´opria teoria.17

H´a horas felizes.18

4

Outros trabalhos l´

ogicos

A publica¸c˜ao [18] ´e um sum´ario, sem demonstra¸c˜oes, em que se anuncia (um pouco imprecisamente) o seguinte resultado, destacado em it´alico no original:

(...) ao se passar para a l´ogica do tipo seguinte, n˜ao s´o certas proposi¸c˜oes que n˜ao eram dedut´ıveis se tornam agora dedut´ıveis como tamb´em um n´umero infinito de proposi¸c˜oes que j´a o eram tˆem agora dedu¸c˜oes extraordinariamente mais curtas.19

Depois da descoberta dos teoremas da incompletude, G¨odel insiste ao longo de toda a sua carreira na tese da inexauribilidade da matem´atica, enun-ciada da seguinte forma particular: dada uma qualquer formaliza¸c˜ao da matem´atica (que contenha ummodicumde aritm´etica), pode sempre passar-se para uma extens˜ao formal com vari´aveis do tipo l´ogico passar-seguinte na qual

17

No dia 7 de Setembro de 1930, numa mesa redonda sobre fundamentos de matem´atica no ˆambito duma conferˆencia em K¨onigsberg sobre Epistemologia das Ciˆencias Exactas, G¨odel faz uma curta interven¸c˜ao em que anuncia:

Podemos mesmo dar exemplos (admitindo a consistˆencia da matem´atica cl´assica) de proposi¸c˜oes (e mesmo de proposi¸c˜oes do g´enero de Goldbach ou Fermat) que, n˜ao obstante serem intuitivamente verdadeiras, n˜ao se de-duzem no sistema formal da matem´atica cl´assica.

Este ´e o primeiro an´uncio p´ublico dos resultados de incompletude (uma transcri¸c˜ao da discuss˜ao foi publicada na revista Erkenntnis em 1931, encontrando-se dispon´ıvel em [5] uma tradu¸c˜ao em inglˆes). O an´uncio de G¨odel passou relativamente despercebido. Sabe-se que von Neumann se mostrou muito interessado na interven¸c˜ao de G¨odel e que conversou com ele depois de terminada a sess˜ao. Na altura, G¨odel ainda n˜ao tinha obtido o segundo teorema da incompletude (cf. [43]). A 20 de Novembro, von Neumann escreve a G¨odel a dizer que “(...) obtive um resultado admir´avel. Consegui mostrar que a consistˆencia da matem´atica n˜ao ´e demonstr´avel.” (cf. p. 337 de [30]). A 23 de Outubro Hans Hahn tinha entretanto j´a apresentado um sum´ario dos resultados de G¨odel `a Academia das Ciˆencias de Viena, com o segundo teorema da incompletude inclu´ıdo. O artigo [11], com as demonstra¸c˜oes completas, chega `a revista Monatsheftea 17 de Novembro . . .

18

No in´ıcio da sec¸c˜ao 4 de [11], G¨odel classifica o segundo teorema da incompletude de “surprising consequence” dos resultados que levaram ao primeiro teorema da incompletude.

19

(11)

se deduzem proposi¸c˜oes intuitivamente verdadeiras mas n˜ao dedut´ıveis no sistema original.20

O conte´udo de [18] ´e uma variante interessante do tema da inexauribilidade, observando-se que a passagem ao tipo seguinte n˜ao s´o permite novas dedu¸c˜oes como tamb´em permite obter dedu¸c˜oes muito mais curtas de teoremas originais. Mais detalhadamente, seφ´e uma fun¸c˜ao recur-siva (por exemplo, φ(n) = 106

n), ent˜ao h´a um n´umero infinito de teoremas do sistema original cujas demonstra¸c˜oes mais curtas s˜ao 106

mais longas que certas demonstra¸c˜oes correspondentes do sistema de tipo superior. Em 1952, Andrzej Mostowski demonstra em [38] um teorema deste g´enero com a no¸c˜ao de comprimento de dedu¸c˜ao definida pelo n´umero de s´ımbolos que nela ocor-rem (G¨odel, na sua nota, refere-se antes ao n´umero de linhas da dedu¸c˜ao mas esta no¸c˜ao de comprimento levanta certos problemas visto que h´a um n´umero infinito de dedu¸c˜oes com um dado n´umero de linhas, mas apenas um n´umeros finito de dedu¸c˜oes com um dado n´umero de s´ımbolos). O leitor interessado nestes assuntos de “speed-up” de dedu¸c˜oes pode consultar a in-trodu¸c˜ao ao artigo de G¨odel por Rohit Parikh em [27] e a exposi¸c˜ao de Pavel Pudl´ak em [39] (em especial a sec¸c˜ao 7).

O ´ultimo artigo de G¨odel na revistaMonatshefte[20], assim como o artigo [12], dedica-se a problemas de decis˜ao no ˆambito do c´alculo de predicados puro (ver a nota 5). Este g´enero de problemas estava muito em voga ao tempo e a ele se dedicaram autores como Bernays, Ackermann, Skolem, Moses Sch¨onfinkel, L´aszl´o Kalm´ar, Kurt Sch¨utte, etc. Uma classe de f´ormulas do c´alculo de predicados puro diz-se decid´ıvel se existir um m´etodo algor´ıtmico que permita determinar se uma dada f´ormula da classe ´e, ou n˜ao, satisfaz´ıvel. Em [12] G¨odel mostra que a classe das f´ormulas cujo prefixo quantificacional ´e da forma∃ · · · ∃∀∀∃ · · · ∃´e decid´ıvel, melhorando assim um resultado seme-lhante de Ackermann de 1928 sobre a decidibilidade desta classe com apenas um quantificador universal intercalar. O artigo do Monatshefte refina o re-sultado de [12] e corrige uma lacuna da sua demonstra¸c˜ao. O refinamento consiste no seguinte: toda a f´ormula satisfaz´ıvel da forma ∃ · · · ∃∀∀∃ · · · ∃

´e necessariamente satisfaz´ıvel numa interpreta¸c˜ao de dom´ınio finito. Esta condi¸c˜ao ´e suficiente para garantir a decidibilidade da classe em quest˜ao pois implica imediatamente que as suas f´ormulas satisfaz´ıveis formam um con-junto recursivamente enumer´avel (e, consequentemente, decid´ıvel porque o teorema da completude garante que a classe complementar tamb´em ´e recur-sivamente enumer´avel). A demonstra¸c˜ao de G¨odel baseia-se num engenhoso

20

(12)

e complicado argumento combinatorial. O artigo do Monatshefte termina com a demonstra¸c˜ao, relativamente simples, de que o problema da decis˜ao para o c´alculo de predicados puro se reduz ao problema de decis˜ao para a classe∀∀∀∃ · · · ∃(refinando a forma normal de Skolem). Uns anos mais tarde, Alonzo Church resolve o Entscheidungsproblem para o c´alculo de predicados – mostrando a indecidibilidade do c´alculo de predicados. O resultado de G¨odel garante agora que j´a a classe prenexa∀∀∀∃ · · · ∃´e indecid´ıvel.21

G¨odel afirma ainda, sem substanciar, que a decidibilidade da classe ∃ · · · ∃∀∀∃ · · · ∃

para o c´alculo de predicados com igualdadese pode argumentar de modo se-melhante `a do c´alculo puro. Mais de sessenta anos depois, Warren Golbfarb mostra em [32] que G¨odel se enganara a este respeito.

Em [19] G¨odel mostra que nem toda a demonstra¸c˜ao de independˆencia no ˆambito do c´alculo proposicional se pode obter por meio de tabelas finitas de valores de verdade. O contra-exemplo de G¨odel ´e o seguinte: a tautologia

P → ¬¬P ´e independente dos trˆes axiomasP →P, (P → ¬¬Q)→(P →Q) e (¬¬P → ¬¬Q) → (P → Q) munidos da regra de inferˆencia do Modus Ponens. A tabela infinita formada pelos naturais e definida por¬P =P+ 1;

P → Q = 0 para P ≥ Q; e P → Q = 1 caso contr´ario; mostra o resultado de independˆencia. G¨odel avan¸ca um argumento combinat´orio para mostrar que este resultado n˜ao se pode obter com tabelas finitas.

Resta discutir os artigos [21], [17] e [16]. Estes trˆes artigos debru¸cam-se, duma forma ou doutra, sobre a l´ogica intuicionista. No primeiro dos artigos G¨odel mostra que a l´ogica proposicional intuicionista n˜ao pode ser conside-rada uma l´ogica a um n´umero finito de valores de verdade. O argumento baseia-se numa aplica¸c˜ao muito simples do princ´ıpio dos cacifos. O segundo dos artigos d´a (sem apresentar demonstra¸c˜oes) uma interpreta¸c˜ao da l´ogica proposicional intuicionista no sistema modal hoje conhecido por S4 e

conjec-tura que a interpreta¸c˜ao ´e fiel (o que foi quinze anos mais tarde demonstrado por J. C. C. McKinsey e Alfred Tarski). Retrospectivamente, a interpreta¸c˜ao de G¨odel explica por que raz˜ao se pode obter uma semˆantica para a l´ogica intuicionista a partir da semˆantica de Kripke para a l´ogica modal. Logo no in´ıcio do artigo, G¨odel interpreta informalmente a modalidade como demons-trabilidade (na nossa nota¸c˜ao, P querendo dizer que P ´e demonstr´avel). Por´em, no ´ultimo par´agrafo faz notar que a modalidade em S4 n˜ao pode

ser interpretada pela no¸c˜ao de dedutibilidade formal numa teoria aritm´etica, pois o axioma P → P de S4 pode refutar-se sob esta interpreta¸c˜ao. Com

21

(13)

efeito, se se tomar para P a f´ormula ‘0 = 1’ tem-se (0 = 1) → 0 = 1 e, consequentemente, ¬(0 = 1). Ora, isto ´e a asser¸c˜ao da consistˆencia formal, contradizendo o segundo teorema da incompletude. Para se interpretar a mo-dalidade como dedutibilidade formal tem que se substituir em S4 o axioma

problem´atico pelo axioma de L¨ob: (P →P)→P. No contexto da ar-itm´etica este axioma ´e um refinamento do segundo teorema da incompletude de G¨odel. O estudo destes assuntos deu origem ao tema vasto e sofisticado da l´ogica da demonstrabilidade (consulte-se [33]).

Finalmente, o artigo [16] ´e uma pequena j´oia. ´E muito simples, mas as coisas n˜ao tˆem que ser complicadas para ser interessantes. G¨odel apresenta uma interpreta¸c˜ao da aritm´etica cl´assica na aritm´etica intuicionista.22

A interpreta¸c˜ao, denotada pelo ´ındiceg, define-se assim: Pg =P (P at´omico), (¬F)g =¬Fg, (F G)g =FgGg, (F G)g =¬(¬Fg∧ ¬Gg), (F G)g =

¬(Fg∧ ¬Gg), (∀xF(x))g = xF(x)g e (xF(x))g =¬∀x¬F(x)g. Mostra-se que se uma f´ormula (fechada) F se deduz na aritm´etica cl´assica ent˜ao Fg deduz-se na aritm´etica intuicionista. O argumento de G¨odel trata primeiro o caso proposicional `a parte, apoiando-se num resultado de Valerii Glivenko de 1929 segundo o qual uma nega¸c˜ao proposicional deduz-se classicamente se e somente se deduz intuicionisticamente. O caso proposicional ´e depois generalizado ao caso quantificacional.

A interpreta¸c˜ao, dita de negativa, de G¨odel mostra que – num certo sen-tido – a aritm´etica cl´assica ´e parte da aritm´etica intuicionista e, portanto, que a primeira n˜ao pode ser inconsistente sem a segunda o ser. De acordo com o relatado por Bernays em [3], o resultado mostrou aos membros da escola de Hilbert que os princ´ıpios intuicionistas v˜ao bem para al´em dos princ´ıpios finitistas e (dado o segundo teorema da incompletude) abriu uma alternativa ao Programa de Hilbert, podendo-se tomar o racioc´ınio intuicionista – ao inv´es do finitista – como base para a metamatem´atica.23

22

No original, G¨odel considera sistemas semi-formais porque inclue na axiom´atica to-das as asser¸c˜oes universais finitisticamente demonstr´aveis. Isto n˜ao ´e essencial para a interpreta¸c˜ao.

23

(14)

5

O universo construt´ıvel

A hip´otese do cont´ınuo diz que qualquer subconjunto infinito de R, n˜ao

nu-mer´avel, est´a em bijec¸c˜ao com R. Este era o primeiro problema da c´elebre

lista de problemas de David Hilbert na sua comunica¸c˜ao ao Congresso Inter-nacional de Matem´atica em Paris em 1900. Na publica¸c˜ao [22] de 1938, G¨odel anuncia que o axioma da escolha e a hip´otese do cont´ınuo s˜ao consistentes com os restantes axiomas da teoria dos conjuntos e, no ano seguinte, publica em [23] uma demonstra¸c˜ao densa, directa e concisa deste resutado. Hilbert n˜ao teria tido em mente este g´enero de solu¸c˜ao. A solu¸c˜ao de G¨odel s´o ´e poss´ıvel dado os avan¸cos da l´ogica entretanto realizados, em que evidente-mente se inclui a formaliza¸c˜ao precisa da axiom´atica da teoria dos conjuntos no c´alculo de predicados com igualdade. G¨odel baseia-se na axiom´atica de Ernst Zermelo de 1908, complementada pelo axioma da substitui¸c˜ao.24

Esta axiomatiza¸c˜ao ficou conhecida pela siglaZF (“Zermelo-Fraenkel”).25

A teo-ria ZF C obt´em-se de ZF adicionando-lhe o axioma da escolha. Tanto a linguagem de ZF como a deZF C tˆem apenas um ´unico s´ımbolo relacional primitivo: o s´ımbolo ‘∈’ de perten¸ca. N˜ao h´a espa¸co neste trabalho para fazer a exposi¸c˜ao da axiom´atica. Chamo apenas a aten¸c˜ao para o axioma da substitui¸c˜ao,26

proposto por Abraham Fraenkel em 1922. Sem este axioma n˜ao ´e poss´ıvel, por exemplo, formar o conjunto{N,P(N),P(P(N)), . . .}. Em geral, n˜ao ´e poss´ıvel efectuar defini¸c˜oes por recurs˜ao transfinita.

O resultado de G¨odel ´e um teorema deconsistˆencia relativa. G¨odel mostra que se a teoria ZF for consistente ent˜ao a teoria ZF C juntamente com a hip´otese generalizada27

do cont´ınuo tamb´em ´e consistente. O m´etodo de

24

A axiom´atica de Zermelo usa l´ogica desegunda-ordem, ao inv´es da l´ogica de primeira-ordem (ou c´alculo de predicados) usada hoje em dia. A l´ogica de segunda-ordem n˜ao ´e formal sendo por isso inadequada para estudos l´ogico-matem´aticos.

25ZF

tamb´em inclui o axioma da funda¸c˜ao que, e.g., impede a existˆencia de conjuntos “patol´ogicos” que satisfa¸cam a equa¸c˜aox={x}. Importantemente, este axioma garante

que todos os conjuntos estejam no universo cumulativo (ver nota 30 adiante e discuss˜ao precedente). G¨odel n˜ao faz uso deste axioma em [23].

26

Recomendo o manual de Kenneth Kunen [37] como referˆencia para a axiom´atica de

ZF C e outrossim para o resultado de consistˆencia de G¨odel. O segundo cap´ıtulo do

manual, sobre combinat´oria infinita, n˜ao ´e necess´ario para os resultados de consistˆencia. 27

Georg Cantor, o criador da teoria dos conjuntos, mostrou que a cardinalidade dum conjunto x´e sempre estritamente inferior `a cardinalidade do conjuntoP(x) dos

subcon-juntos dex. Ahip´otese generalizada do cont´ınuodiz que, para todo o conjunto infinitox,

(15)

demonstra¸c˜ao ´e o m´etodo dos modelos internos: G¨odel define em ZF um modelo de ZF C que satisfaz a hip´otese generalizada do cont´ınuo. Trata-se do mesmo m´etodo que permite mostrar a consistˆencia relativa da geometria de Lobatchevski em rela¸c˜ao `a geometria euclideana: neste caso o “modelo interno” ´e o disco de Klein.

O modelo interno de G¨odel, conhecido por universo construt´ıvel, emana duma vis˜ao dos conjuntos diferente da vis˜ao logicista. De acordo com esta ´

ultima, os conjuntos s˜ao algo de derivado das propriedades, viz. as colec¸c˜oes que se obtˆem dividindo a totalidade de todas as coisas em duas categorias, conforme satisfa¸cam ou n˜ao uma determinada propriedade. Ainda hoje com-pensa fazer uma leitura do ´unico artigo exposit´orio de G¨odel [25] onde se explica esta vis˜ao, conhecida por universo cumulativo dos conjuntos:28

Os paradoxos s˜ao um problema muito s´erio, mas n˜ao para a matem´atica (...). Os conjuntos que ocorrem na matem´atica (pelo menos na matem´atica actual, incluindo toda a teoria dos conjun-tos de Cantor) s˜ao conjunconjun-tos de inteiros ou de n´umeros racionais (i.e., pares de inteiros) ou de n´umeros reais (i.e., conjuntos de n´umeros racionais) ou de fun¸c˜oes reais de vari´avel real (i.e., con-juntos de pares de n´umeros reais), etc. Quando se enunciam teo-remas acerca de todos os conjuntos (ou a existˆencia de conjuntos em geral), estes teoremas podem ser sempre interpretados sem qualquer dificuldade como significando que s˜ao satisfeitos para conjuntos dos inteiros assim como para conjuntos de conjuntos de inteiros, etc. (respectivamente, que existe um conjunto de in-teiros, ou um conjunto de conjuntos de inin-teiros, ou . . . etc., que tˆem a propriedade afirmada no teorema). Contudo, este conceito de conjunto segundo o qual um conjunto ´e algo que se pode obter a partir dos inteiros (ou quaisquer outros objectos bem definidos) por itera¸c˜ao da opera¸c˜ao “conjunto de”, e n˜ao como algo que se obt´em dividindo a totalidade das coisas existentes em duas categorias, nunca levou a nenhuma antinomia (...)

H´a uma nota nesta cita¸c˜ao a esclarecer que a itera¸c˜ao da opera¸c˜ao “conjunto de” inclui a itera¸c˜ao transfinita.29

Por motivos de elegˆancia t´ecnica (e nada

28

Zermelo introduziu a vis˜ao cumulativa em 1930. A ideia fundamental desta vis˜ao foi antecipada por Dmitry Mirimanoff em 1917.

29

(16)

pos-se perde com esta escolha), costuma partir-pos-se da colec¸c˜ao vazia de objectos. O universo dos conjuntos obt´em-se atrav´es de etapas, denotadas pela letra ‘V’ e indexadas nos ordinais:

V0 = ∅

Vα+1 = P(Vα)

Vλ = ∪α<λVα, para ordinais limite λ.

A teoria ZF mostra que as etapas acumulam, i.e. α ≤ β →Vα ⊆Vβ, e que todo o conjunto est´a nalgum Vα, i.e. ∀x∃α(x∈ Vα).30

O modelo interno de G¨odel, denotado pela letra ‘L’ ´e uma variante de V:

L0 = ∅

Lα+1 = Def(Lα)

Lλ = ∪α<λLα, para ordinais limiteλ.

A diferen¸ca com V est´a nas etapas sucessor, em que em vez da passagem ao conjunto potˆencia apenas se consideram os subconjuntos de Lα que s˜ao defin´ıveis (com parˆametros) na estrutura (Lα,∈) por meio duma f´ormula da linguagem da teoria dos conjuntos. Assim,Lα+1n˜ao tem todos os

subconjun-tos deLα, mas apenas alguns. As etapas deLtamb´em acumulam eLα ⊆Vα, para todo o ordinal α. O axioma da construtibilidade, de sigla ‘V = L’, diz que todos os conjuntos s˜ao construt´ıveis, i.e., ∀x∃α(x∈Lα).31

S˜ao necess´arias trˆes coisas para demonstrar os resultados de consistˆencia. Em primeiro lugar, tem que se mostrar que o universo (classe) de todos os conjuntos construt´ıveis satisfaz os axiomas da teoria dos conjuntos ZF. Em segundo lugar, que tamb´em satisfaz o axioma da construtibilidade V = L.

sibilidade de efectuar defini¸c˜oes por recurs˜ao transfinita (aqui ´e necess´ario o axioma da substitui¸c˜ao). Os n´umeros ordinais generalizam os n´umeros naturais e est˜ao associados a boas-ordens, i.e., ordens totais em que todo o subconjunto n˜ao vazio tem elemento m´ınimo. Na teoria dos conjuntos, os n´umeros cardinais s˜ao precisamente os n´umeros ordinais que n˜ao est˜ao em correspondˆencia biun´ıvoca com nenhum n´umero ordinal inferior. No caso finito, os n´umeros ordinais e cardinais coincidem. Isto j´a n˜ao se passa no caso infinito. O axioma da escolha garante que todo o conjunto tem um n´umero cardinal.

30

Este ´ultimo facto ´e, na presen¸ca dos restantes axiomas, equivalente ao axioma da funda¸c˜ao (ver nota 25).

31

G¨odel usa a letra ‘L’ para o universo construt´ıvel em [24], inicial da palavra “lawlike”

(17)

Finalmente, tem que se mostrar queZF+V =Limplica o axioma da escolha e a hip´otese generalizada do cont´ınuo.

Para estabelecer rigorosamente o primeiro facto h´a que ter algum cuidado com a verifica¸c˜ao do axioma da separa¸c˜ao. O argumento de G¨odel baseia-se no seu fundamental Teorema II, segundo o qual cada subconjunto de Lα (α infinito) em L est´a em Lκ, onde k ´e o menor cardinal depois de α.32

Este teorema tamb´em ´e essencial para verificar que a hip´otese generalizada do cont´ınuo vale no universo construt´ıvel. O tipo de considera¸c˜oes necess´ario para obter este resultado ´e, na minha opini˜ao, um tour de forcepara a l´ogica da ´epoca.33

O segundo facto ´e um tudo-nada subtil porque certas no¸c˜oes da teoria dos conjuntos dependem crucialmente do universo onde se est´a. Por exemplo, pode existir em V uma bijec¸c˜ao entre dois conjuntos deLsem que uma tal bijec¸c˜ao exista emL. Por isso, a no¸c˜ao de cardinalidade depende do universo de trabalho.34

As no¸c˜oes que n˜ao dependem do universo de trabalho dizem-se absolutas. G¨odel mostra que a no¸c˜ao de ser conjunto construt´ıvel ´e absoluta. Consequentemente, em ZF deduz-se que L ´e um modelo interno de ZF + V =L.

J´a comentei acima a verifica¸c˜ao da hip´otese generalizada do cont´ınuo em ZF C + V = L. A verifica¸c˜ao do axioma da escolha ´e, realmente, a parte mais f´acil da demonstra¸c˜ao. O argumento ´e t˜ao intuitivo que pode ser esbo¸cado aqui. Sob a suposi¸c˜ao de que V = L ´e poss´ıvel dar uma boa-ordena¸c˜ao (ver nota 29) do universo dos conjuntos – o que implica o axioma da escolha. Dados conjuntos x e y quando ´e que se diz que x ≺ y? Tanto

32

Modernamente, a verifica¸c˜ao do axioma da separa¸c˜ao usa um princ´ıpio de reflex˜ao. Veja-se [37] para terminologia e detalhes. G¨odel segue um caminho diferente que parece exigir a presen¸ca dum cardinal inacess´ıvel. Contudo, no final do artigo, G¨odel menciona “slight modifications”. O argumento do Teorema II usa t´ecnicas baseadas em resultados de L¨owenheim e Skolem e antecipa o teorema do colapso de Mostowski. Na sua monografia de [24], G¨odel apresenta todos os detalhes mas trabalha com uma teoria com vari´aveis para conjuntos e para classes(a teoria dos conjuntosBGde Bernays-G¨odel). Ao contr´ario da

primeira demonstra¸c˜ao, a nova demonstra¸c˜ao ´e pouco conceptual e a defini¸c˜ao do universo construt´ıvel ´e ad hoc. De acordo com o relatado por Kleene em [34], o pr´oprio G¨odel considerava a sua primeira demonstra¸c˜ao como a mais sugestiva.

33

Li pela primeira vez as cinco p´aginas do artigo [23] de G¨odel h´a pouco tempo para preparar o presente trabalho. Se bem que j´a conhecesse a demonstra¸c˜ao de consistˆencia desde os meus tempos de estudante de p´os-gradua¸c˜ao, a concis˜ao e direiteza do artigo de G¨odel constituiram para mimtamb´em“um prazer est´etico de primeira classe” (cf. cita¸c˜ao de von Neumann no in´ıcio do artigo).

34

Os universosV eLtˆem os mesmos ordinais, mas certos ordinais podem ser cardinais

(18)

x como y aparecem algures nas etapas que formam L. Se x aparecer antes de y, p˜oe-se x ≺ y. Admita-se que x e y aparecem pela primeira vez na mesma etapa α + 1. Este ´e o caso crucial, que n˜ao se pode efectuar em

V. Neste caso, x e y aparecem porque tˆem defini¸c˜oes (com parˆametros) na estrutura (Lα,∈). Ora, estas defini¸c˜oes s˜ao dadas por f´ormulas. Como as f´ormulas s˜ao em n´umero numer´avel (e, por isso, podem ser bem-ordenadas) e se pode supor (por indu¸c˜ao transfinita) que os parˆametros de Lα j´a est˜ao bem-ordenados, conclui-se que as defini¸c˜oes sobre (Lα,∈) se podem bem-ordenar. Naturalmente, p˜oe-se x≺y caso x se defina primeiro do que y.35

Ainda que a teoria dos conjuntos n˜ao seja uma teoria dos tipos, a vis˜ao cumulativa ´e tipada “em esp´ırito”, com os tipos a prosseguir pelo transfinito a fora.36

Esta vis˜ao encaixa-se com a forma particular da tese da inexauri-bilidade da matem´atica subscrita por G¨odel (ver Sec¸c˜ao 4). Na teoria dos conjuntos, a considera¸c˜ao de novos tipos transforma-se em postulados de ex-istˆencia de ordinais cada vez maiores, tecnicamente denominados de cardinais inacess´ıveis. G¨odel exprime em [25] a convic¸c˜ao de que a hip´otese do cont´ınuo se possa vir a decidir por meio destes postulados de cardinalidade ou atrav´es de outro tipo de axiomas.37

Esta ideia tem sido motor de desenvolvimento da teoria dos conjuntos desde o final da d´ecada de sessenta, ainda que os estudos contemporˆaneos n˜ao pare¸cam sustentar a convic¸c˜ao de G¨odel.38

6

A interpreta¸

ao

Dialectica

De acordo com Georg Kreisel (p. 104 de [36]), as origens do artigo de G¨odel da revistaDialecticaem 1958 remontam ao in´ıcio da d´ecada de quarenta quando G¨odel se debru¸cava sobre a forma de tornar expl´ıcito o car´acter construtivo

35

No seu an´uncio em [22], G¨odel tamb´em enuncia a consistˆencia de duas asser¸c˜oes sobre a estrutura de certas classes de subconjuntos de R. Este resultado ´e consequˆencia das

asser¸c˜oes serem verdadeiras no universo construt´ıvel e apoia-se no facto de existir uma boa-ordem defin´ıvel (o que origina uma boa-ordem defin´ıvel emR). Para mais informa¸c˜oes

sobre este assunto, consulte-se a introdu¸c˜ao de Robert Solovay aos artigos de G¨odel em [28].

36

Por´em, os tipos – os ordinais, neste caso – s˜ao objectos da pr´opria teoria dos conjun-tos . . .

37

Em 1963, Paul Cohen mostra que a nega¸c˜ao da hip´otese do cont´ınuo ´e consistente comZF C. G¨odel, por´em, j´a tinha admitido esta possibilidade em [25] e defendido que, a

dar-se, ela n˜ao encerraria a quest˜ao do cont´ınuo. 38

(19)

da l´ogica intuicionista. O projecto foi abandonado porque, pouco depois em 1945, Stephen Kleene publica os seus resultados sobre realizabilidade re-cursiva. O artigo [26] aparece finalmente em 1958 como uma contribui¸c˜ao para uma extens˜ao do Programa de Hilbert da consistˆencia da aritm´etica. O artigo ´e de leitura algo agreste porque tem uma introdu¸c˜ao muito densa filosoficamente (em que muito pouco parece ter sido conseguido), n˜ao tem de-monstra¸c˜oes e ´e formalmente um pouco impreciso. Contudo, teve um grande impacto na actividade fundacional dos anos seguintes ([1] tem informa¸c˜oes so-bre este assunto) e, hoje em dia, est´a no centro dum programa extremamente bem sucedido de extrac¸c˜ao de informa¸c˜ao computacional de demonstra¸c˜oes cl´assicas da an´alise (ver adiante).

Se ´e verdade que a metodologia finitista ´e construtiva, ela tamb´em en-forma do elemento especificamente finitista que exige que as constru¸c˜oes se-jam constru¸c˜oes de e sobre objectos “concretos” (paradigmaticamente, con-figura¸c˜oes combinatorias finitas de s´ımbolos). Segundo G¨odel, esta compo-nente espec´ıfica tem que ser abandonada se se quiser obter uma extens˜ao bem sucedida do Programa de Hilbert. Duas extens˜oes deste tipo estavam a ser consideradas desde os anos trinta: a adi¸c˜ao da l´ogica intuicionista (ver o final da Sec¸c˜ao 4) ou duma teoria construtiva de ordinais (devida a Gerhard Gentzen). G¨odel prop˜oe uma terceira via: a adi¸c˜ao da no¸c˜ao (primitiva) de funcional comput´avel de tipo finito sobre os n´umeros naturais. ´E, do ponto de vista matem´atico, uma novidade mas G¨odel pretende ir mais longe. Nas p´aginas iniciais do artigo, G¨odel tenta dolorosamente persuadir o leitor de que a nova no¸c˜ao n˜ao pressup˜oe – em termos de evidˆencia epistemol´ogica – a no¸c˜ao de demonstra¸c˜ao intuicionista, ainda que acabe por afirmar que “ambos os conceitos [funcionais e demonstra¸c˜oes intuicionistas] s˜ao, dentro de certas fronteiras, como conceitos fundamentais, mutuamente substitu´ıveis”.39

G¨odel d´a uma interpreta¸c˜ao, dita funcional, da teoria da aritm´etica in-tuicionista numa teoria (essencialmente) equacional T de termos de v´arios tipos. A teoria ´e muito semelhante a uma teoria finitista,40

excepto pelo facto da linguagem n˜ao ter apenas vari´aveis sobre objectos “concretos” (n´umeros naturais) mas tamb´em sobre entidades abstractas, viz. fun¸c˜oes de

natu-39

Usei o adjectivo ‘dolorosamente’ porque mais tarde G¨odel concorda em deixar traduzir o seu artigo para o inglˆes mas a vers˜ao acaba por sofrer in´umeras vicissitudes (por causa das hesita¸c˜oes intelectuais de G¨odel), acabando por n˜ao ter a sua permiss˜ao para publica¸c˜ao. No seu esp´olio liter´ario foram encontradas provas tipogr´aficas corrigidas da vers˜ao inglesa, hoje dispon´ıveis em [28].

40

(20)

rais para naturais, funcionais de fun¸c˜oes de naturais para naturais para os n´umeros naturais, etc. H´a pois, para al´em dos termos do tipo b´asico dos n´umeros naturais, termos de tipo funcional.

Os termos de tipo funcional correspondem precisamente a funcionais com-put´aveis de tipo finito. Um caso paradigm´atico ´e o seguinte. SeP :NN

7→NN

e h : N 7→ N s˜ao fun¸c˜oes comput´aveis e n ∈ N, ent˜ao o funcional Q

dado por Q(P, h, n) = Pn(h) tamb´em ´e comput´avel (onde Pn denota a opera¸c˜aoP iteradanvezes). A interpreta¸c˜ao de G¨odel associa a cada f´ormula

F(w) do c´alculo de predicados da aritm´etica uma combina¸c˜ao proposicional

FD(Z, X, w) de equa¸c˜oes entre termos de T, ondeZ eX s˜ao sequˆencias fini-tas de vari´aveis cujo n´umero e tipos dependem da estrutura de F(w). Para definir a interpreta¸c˜ao ´e conveniente e intuitivo associar `as f´ormulas F(w) uma f´ormula FD(w) da formaFD(w) =ZXF

D(Z, X, w). CasoF(w) seja uma f´ormula at´omica ent˜ao FD(w) e FD(w) s˜ao F(w), i.e., Z e X s˜ao as sequˆencias vazias. Nos restantes casos define-se a transforma¸c˜ao de acordo com a tabela:

(F ∧G)D Z, UX, V(FD(Z, X, w)GD(U , V , s)) (∀yF(y))D Y y, XFD(Y(y), X, w, y)

(∃yF(y))D y, ZXF

D(Z, X, w, y) (F →G)D Y , RZ, V(F

D(Z, Y(Z, V), w)→GD(R(Z), V , s))

onde se sup˜oe que GD(s) ´e ∃U∀V GD(U , V , s) (omiti os casos da disjun¸c˜ao e da nega¸c˜ao). O teorema fundamental diz que se a f´ormula fechada F se deduz na aritm´etica intuicionista ent˜ao existem termos t da linguagem deT

tais que FD(t, X) se deduz em T. Observe-se que se F ´e a f´ormula ‘0 = 1’ ent˜ao FD ´e tamb´em ‘0 = 1’. Dado que a demonstra¸c˜ao do teorema funda-mental ´e construtiva, conclui-se que duma dedu¸c˜ao de ‘0 = 1’ na aritm´etica intuicionista se obt´em uma dedu¸c˜ao de ‘0 = 1’ em T. Isto mostra a con-sistˆencia da aritm´etica intuicionista em rela¸c˜ao `a teoria “equacional”T. Em virtude da interpreta¸c˜ao negativa de G¨odel-Gentzen (cf. final da Sec¸c˜ao 4), obt´em-se mesmo a consistˆencia da aritm´etica cl´assica em rela¸c˜ao aT.

Os termos cuja existˆencia o teorema fundamental garante encerram, por assim dizer, informa¸c˜ao computacional sobre a dedu¸c˜ao do teorema F. Por exemplo, o termo cuja existˆencia ´e garantida pelo teorema fundamental para uma dedu¸c˜ao intuicionista de∀w∃xF(w, x), ondeF ´e uma f´ormula sem quan-tificadores, ´e essencialmente um “programa” duma fun¸c˜ao f : N N que

(21)

desde que F seja uma f´ormula sem quantificadores, as f´ormulas ∃xF(w, x) e ¬∀x¬F(w, x) tˆem a mesma interpreta¸c˜ao. Admita-se que se tem uma dedu¸c˜ao de∀w∃xF(w, x) na aritm´eticacl´assica. Ora, pela interpreta¸c˜ao ne-gativa, ∀w¬∀x¬F(w, x) ´e um teorema da aritm´etica intuicionista. Como esta f´ormula tem a mesma interpreta¸c˜ao Dialectica do que ∀w∃xF(w, x), ´e poss´ıvel extrair um termo t (um “programa”) que computa uma fun¸c˜ao f

que satisfaz F(n, f(n)) para todon. Esta ´e uma das propriedades da inter-preta¸c˜ao Dialectica que est´a na origem dum recente e bem sucedido m´etodo para extrair informa¸c˜ao computacional de demonstra¸c˜oescl´assicasda an´alise matem´atica (cf. [35]).

7

Notas finais

As publica¸c˜oes de G¨odel em vida s˜ao essencialmente as que discutimos. G¨odel tamb´em tem um artigo de fundo (de cariz filos´ofico) sobre a l´ogica matem´atica de Bertrand Russell, uma publica¸c˜ao duma palestra por ocasi˜ao da conferˆencia sobre problemas da matem´atica no ˆambito das comemora¸c˜oes do bicenten´ario da Universidade de Princeton em 1946 (apenas publicada em 1965 na colectˆanea The Undecidable [4]) e duas pequenas notas a prop´osito do trabalho dos l´ogicos Clifford Spector e Abraham Robinson.41

Do ponto de vista matem´atico, destaca-se a palestra de Princeton pois nela G¨odel define informalmente um novo modelo interno da teoria dos conjuntos: o modelo

HOD dos conjuntos hereditariamente definidos por meio de ordinais.42

Na sua ´ultima carta a von Neumman a 20 de Mar¸co de 1956 (cf. p. 373-377 de [30]), quando este j´a se encontrava muito doente, G¨odel antecipa a formula¸c˜ao do problema P =N P. Wilfried Sieg comenta43

que “face `a mortalidade hu-mana, G¨odel preferiu levantar e discutir quest˜oes matem´aticas eternas”.

References

[1] J. Avigad e S. Feferman. G¨odel’s functional (“Dialectica”) interpreta-tion. In S. R. Buss, organizador, Handbook of proof theory, volume 137, pages 337–405. North Holland, Amsterdam, 1998.

41

Esta ´ultima nota est´a traduzida para portuguˆes na contribui¸c˜ao de A. J. Franco de Oliveira neste n´umero do Boletim.

42

Consulte-se [37] para terminologia e explica¸c˜oes. 43

(22)

[2] Paul Benacerraf e Hilary Putnam, organizadores. Philosophy of Math-ematics: Selected Readings. Prentice-Hall, 1964. Segunda edi¸c˜ao em 1983.

[3] Paul Bernays. Hilbert, David. In Paul Edwards, organizador, The En-cyclopedia of Philosophy. Macmillan and the Free Press, 1967.

[4] Martin Davis, organizador. The Undecidable. Raven Press, New York, 1965.

[5] John Dawson Jr. Discussion of the foundations of mathematics. History and Philosophy of Logic, 5:111–129, 1984.

[6] John Dawson Jr. Logical Dilemmas: the Life and Work of Kurt G¨odel. A K Peters, Wellesley, Massachusetts, 1997.

[7] Burton Dreben e Warren Goldfarb. The Decision Problem: Solvable Classes of Quantificational Formulas. Addison-Wesley, 1979.

[8] Solomon Feferman. Kurt G¨odel: conviction and caution. In S. G. Shanker, organizador, G¨odel’s Theorem in Focus, pages 96–114. Rout-ledge, 1988. Primeiramente publicado em 1984 na revista Philosophia Naturalis.

[9] Fernando Ferreira. Teoria dos conjuntos: uma vista. Boletim da So-ciedade Portuguesa da Matem´atica, 38:29–47, 1998. Vers˜ao corrigida

em http://www.ciul.ul.pt/~ferferr/vistacorr.pdf.

[10] Kurt G¨odel. Die Vollst¨andigkeit der Axiome des logischen Funktio-nenkalk¨uls. Monatshefte f¨ur Mathematik und Physik, 37:349–360, 1930. Traduzido para inglˆes com o t´ıtulo “On the completeness of the calculus of logic” em [27].

(23)

[12] Kurt G¨odel. Ein Spezialfall des Entscheidungsproblems der theoretis-chen Logik. Ergebnisse eines mathematischen Kolloquiums, 2:27–28, 1932. Traduzido para inglˆes com o t´ıtulo “A special case of the decision problem for theoretical logic” em [27].

[13] Kurt G¨odel. Eine Eigenschaft der Realisierungen des Aus-sagenkalk¨uls. Ergebnisse eines mathematischen Kolloquiums, 3:20–21, 1932. Traduzido para inglˆes com o t´ıtulo “A property of the realizations of the propositional calculus” em [27].

[14] Kurt G¨odel. Uber Vollst¨andigkeit und Widerspruchsfreiheit.¨ Ergeb-nisse eines mathematischen Kolloquiums, 3:12–13, 1932. Traduzido para inglˆes com o t´ıtulo “On completeness and consistency” em [27].

[15] Kurt G¨odel. Zum intuitionistishen Aussagenkalk¨ul. Anzeiger der Akademie der Wissenschaften in Wien, 69:65–66, 1932. Traduzido para inglˆes com o t´ıtulo “On the intuitionistic propositional calculus” em [27].

[16] Kurt G¨odel. Zur intuitionistischen Arithmetik und Zahlentheorie. Ergeb-nisse eines mathematischen Kolloquiums, 4:34–38, 1932. Traduzido para inglˆes com o t´ıtulo “On intuitionistic arithmetic and number theory” em [27] e para portuguˆes com o t´ıtulo “Acerca da aritm´etica e da teoria in-tuicionista dos n´umeros” em [31].

[17] Kurt G¨odel. Eine Interpretation des intuitionistischen Aus-sagenkalk¨uls. Ergebnisse eines mathematischen Kolloquiums, 4:39–40, 1933. Traduzido para inglˆes com o t´ıtulo “An interpretation of the in-tuitionistic propositional calculus” em [27].

[18] Kurt G¨odel. ¨Uber die L¨ange von Beweisen. Ergebnisse eines mathema-tischen Kolloquiums, 7:23–24, 1933. Traduzido para inglˆes com o t´ıtulo “On the length of proofs” em [27] e para portuguˆes com o t´ıtulo “Acerca do comprimento das demonstra¸c˜oes” em [31].

[19] Kurt G¨odel. ¨Uber Unabh¨angigkeitsbeweise im Aussagenkalk¨ul. Ergeb-nisse eines mathematischen Kolloquiums, 4:9–10, 1933. Traduzido para inglˆes com o t´ıtulo “On independence proofs in the propositional calcu-lus” em [27].

(24)

Traduzido para inglˆes com o t´ıtulo “On the decision problem for the functional calculus of logic” em [27].

[21] Kurt G¨odel. Zum intuitionistishen Aussagenkalk¨ul. Ergebnisse eines mathematischen Kolloquiums, 4:40, 1933. Reimpress˜ao de [15] com co-ment´ario adicional.

[22] Kurt G¨odel. The consistency of the axiom of choice and the generalized continuum hypothesis.Proceedings of the National Academy of Sciences, U.S.A., 24:556–557, 1938. Tamb´em em [28].

[23] Kurt G¨odel. Consistency proof for the generalized continuum hypothe-sis. Proceedings of the National Academy of Sciences, U.S.A., 25:220– 224, 1939. Tamb´em em [28].

[24] Kurt G¨odel. The Consistency of the Axiom of Choice and of the Gener-alized Continuum Hypothesis with the Axioms of Set Theory, volume 3 of Annals of Mathematics Studies. Princeton University Press, 1940. Tamb´em em [28].

[25] Kurt G¨odel. What is Cantor’s continuum problem? American Mathe-matical Monthly, 54:515–525, 1947. Errata, 55, 151. Uma vers˜ao revista e alargada foi publicada em [2]. Esta vers˜ao encontra-se traduzida para portugˆues com o t´ıtulo “O que ´e o problema do cont´ınuo de Cantor?” em [31]. Tamb´em publicado em [28].

[26] Kurt G¨odel. ¨Uber eine bisher noch nicht ben¨utze Erweiterung des finiten Standpunktes. Dialectica, 12:80–87, 1958. Traduzido para inglˆes com o t´ıtulo “On a hitherto unutilized extension of the finitary standpoint” em [28] e para portugˆues, neste volume do Boletim, com o t´ıtulo “Acerca duma extens˜ao at´e agora n˜ao utilizada do ponto de vista finitista”.

[27] Kurt G¨odel. Collected Works, volume I. Organizado por Solomon Fe-ferman et al., Oxford University Press, 1986.

[28] Kurt G¨odel. Collected Works, volume II. Organizado por Solomon Feferman et al., Oxford University Press, 1990.

(25)

[30] Kurt G¨odel. Collected Works, volume V. Organizado por Solomon Feferman et al., Oxford University Press, 2003.

[31] Kurt G¨odel et al. O Teorema de G¨odel e a Hip´otese do Cont´ınuo. Or-ganizado por Manuel Louren¸co, Funda¸c˜ao Calouste Gulbenkian, 1979.

[32] Warren Goldfarb. The G¨odel class with identity is unsolvable. Bulletin of the American Mathematical Society, 10:113–115, 1984.

[33] Giorgi Japaridze e Dick de Jongh. The logic of provability. In S. R. Buss, organizador, Handbook of Proof Theory, volume 137, pages 475– 546. North-Holland, Amsterdam, 1998.

[34] Stephen Kleene. An addendum to “The work of K¨urt G¨odel”. The Journal of Symbolic Logic, 41:613, 1978.

[35] U. Kohlenbach e P. Oliva. Proof mining: a systematic way of analysing proofs in mathematics. Proceedings of the Steklov Institute of Mathe-matics, 242:136–164, 2003.

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[37] Kenneth Kunen. Set Theory. North-Holland, 1980.

[38] Andrzej Mostowski. Sentences Undecidable in Formalized Arithmetic: an Exposition of the Theory of Kurt G¨odel. North-Holland, 1952.

[39] Pavel Pudl´ak. The lengths of proofs. In S. R. Buss, organizador, Hand-book of Proof Theory, volume 137, pages 547–637. North-Holland, Am-sterdam, 1998.

[40] Wolfgang Rautenberg. A Concise Introduction to Mathematical Logic. Springer-Verlag, 2005. Segunda edi¸c˜ao.

[41] Thoralf Skolem. Einige Bemerkungen zur axiomatischen Begr¨undung der Mengenlehre. InMatematikerkongressen i Helsingfors, 4-7 Juli 1922, pages 217–232. Akademiska Bokhandeln, Hels´ınquia, 1923. Traduzido para inglˆes em [42].

(26)

[43] Hao Wang. Some facts about Kurt G¨odel. The Journal of Symbolic Logic, 46:653–659, 1981.

Referências

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