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Direitos Humanos Aplicados ao Trabalho e o Perdão das Dívidas na Oração do Pai Nosso

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Resumo: discussão da questão dos direitos humanos aplicados às

relações de trabalho em paralelo com a oração do Pai-Nosso em relação ao perdão das dívidas. Entendida apenas no sentido moral/espiritual esta petição tem sido desconsiderada na esfera da práxis socioeconômica. Este aspecto será aqui considerado. O perdão das dívidas aponta para a necessidade que o ser humano tem de viver numa perspectiva do não-endividamento. A oração do Pai-Nosso se coloca como meio de resistência para que não faltem as condições mínimas de vida plena a qualquer trabalhador(a), assim que não precise contrair dívidas. Orar o Pai-Nosso nesta perspectiva é colocar-se conscientemente numa postura em que a opressão causada pelo endividamento seja superada pelo respeito aos direitos mais caros ao ser humano. A literatura sagrada configura-se, aqui, como importante ferramenta de resistência à opressão a fim de que importantes paradigmas relativos aos direitos laborais do ser humano possam ser respeitados.

Palavras-chave: Pai Nosso, dívidas, perdão, direitos de trabalho,

Novo Testamento

Matheus Guimarães Guerra Gama

DIREITOS HUMANOS APLICADOS AO TRABALHO E O PERDÃO DAS DÍVIDAS NA ORAÇÃO DO PAI NOSSO

I

niciamos esta reflexão com um trecho do artigo de Maria Áurea Baroni Cecato (2007, p. 351, grifo nosso) acerca dos direitos humanos do trabalhador:

Ao longo da história, o trabalhador tem se revelado parte do mais numeroso grupo de pessoas vulneráveis ao desrespeito dos direitos humanos. Responsável pelo trabalho mais árduo da produção de bens

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que toda a Humanidade consome, ‘é o menos contemplado com o direito de consumir’. É, ainda, o maior alijado do acesso aos meios de produção, o que o sujeita às ordens dos que detêm esse acesso. Dependente do capital, oferece seu tempo e sua energia em troca de ‘salários que ele não negocia’, apenas acata.

Com os destaques apontados pretendemos discutir a questão dos direitos humanos aplicados às relações de trabalho e o texto bíblico que apresenta a oração litúrgica de Jesus expressa no evangelho de Mateus em seu capítulo seis. A Nova Versão Internacional da Bíblia (NVI) traz o texto da seguinte forma:

Vocês, orem assim: Pai nosso,que estás nos céus! Santificado seja o teu nome. Venha o teu Reino; seja feita a tua vontade,assim na terra como no céu. Dá-nos hoje o nosso pão de cada dia.Perdoa as nossas dívidas, assim como perdoamos aos nossos devedores.E não nos deixes cair emtentação,mas livra-nos do mal,porque teu é o Reino, o poder e a glória para sempre. Amém. Pois se perdoarem as ofensas uns dos outros, o Pai celestial também lhes perdoará.Mas se não perdoarem uns aos outros, o Pai celestial não lhes perdoará as ofensas (BÍBLIA, 2002, p. 771).

Esta é a conhecida e proclamada oração do Pai Nosso, à qual ma-nifesta desejos e petições de seus interlocutores diante da contemplação e do reconhecimento da paternidade, soberania e santidade divinas, frente à incapacidade humana de prover a satisfação de suas próprias necessidades. Uma das petições presentes na oração, mais precisamente a quinta petição, refere-se ao perdão das dívidas. Muitas vezes entendida apenas no sentido moral/espiritual esta petição tem sido desconsiderada na esfera da práxis social, principalmente em sua vertente econômica. Partilhamos, entretanto, da leitura de Haroldo Reimer e Ivoni Richter Reimer que, a partir de uma melhor tradução do termo grego que encontramos na forma de “dívidas”, ou seguindo algumas outras versões, “ofensas”, lançam novos olhares no entendimento que se deve ter desta expressão, sobretudo neste contexto. Em Tempos de Graça: o jubileu e as tradições jubilares na Bíblia, obra dos referidos autores, encontramos o seguinte:

Os termos gregos e aramaicos são claros e evidenciam o conteúdo das dívidas. Na versão de Mateus encontram-se apenas as duas palavras

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gregas ofeilémata/”dívidas” e ofeilétais/”devedores”, “devedoras”. Esse termo é comumente usado para caracterizar dívidas monetárias, pecuniárias, de ordem econômica. Nesse sentido, os termos também aparecem na parábola do credor incompassivo (Mt. 18,23-25), que elucida o Pai-Nosso. A temática e a realidade da dívida econômica, oriunda de empréstimos, nos colocam o pano de fundo da oração de Jesus (REIMER; RICHTER REIMER, 1999, p. 129).

Fica evidente que a utilização da expressão na oração não anula o perdão das dívidas espirituais, mas não há dúvidas de que o aspecto econô-mico-social deve ser considerado:

Para a palavra ofeilémata deve ser constado, no Pai-Nosso original aramaico, a palavra hob/hobâ. Essa palavra tem três significados bá-sicos e interligados: o empréstimo que deve ser devolvido (a dívida), o compromisso moral perante pessoas e o pecado diante de Deus e das pessoas. Implica, portanto, vários níveis numa relação que se origina duma dívida material, econômica (REIMER; RICHTER REIMER, 1999, p. 129).

Este enfoque nos dá condições de associar o texto bíblico com a questão dos direitos humanos no trabalho, uma vez que é desejo de Deus que o homem desfrute de uma vida de não-endividamento, uma vida hon-rada e digna. Ora, quando o trabalhador tem retirado de si o direito a estas categorias, ainda que minimamente vivenciadas, seus direitos enquanto trabalhador e principalmente enquanto ser humano estão sendo expressados e diretamente violados.

O perdão das dívidas aponta para a necessidade que o ser humano tem de viver numa perspectiva do não-endividamento. Esta é uma quali-dade necessária na perspectiva ontológica. O endividado está preso, está acorrentado, está privado de sua plena liberdade de atuação. O endivida-do é um escravo. Esta realidade é assim hoje e já o era na época de Jesus. Lockmann (1990, p. 12), em um artigo intitulado Perdoa-nos as nossas dívidas’: uma meditação sobre a oração: uma forma de luta e resistência à opressão, apresenta que:

Segundo um estudo literário de comparação de linguagem, podemos

afirmar que a expressão afeilônti (= devedor) era do conhecimento geral do povo, pois designava alguém marcado, um possível

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escra-vo. Ser devedor era motivo para alguém ser posto como escravo, numa sociedade escravagista como a romana (LOCKMANN, 1990, p. 12).

TRABALHO ESCRAVO NO BRASIL: UMA REALIDADE PRESENTE

A partir da realidade levantada por Lockmann no tocante à prática pecuniária encontrada no primeiro século da era cristã, torna-se passível de questionamento a necessidade e a relevância desta questão em nossos círculos de reflexão. Entendendo ser este tema – escravidão – algo superado na História recente do nosso país, basta contemplar a assinatura da deno-minada Lei Áurea no ano de 1888, podemos concluir que tal discussão é desprovida de sentido e, assim, infrutífera.

Entretanto, ao contemplar a realidade trabalhista que vigora na prática atual de nossa nação, vislumbramos rapidamente a urgência desta questão. Em uma das publicações do escritório brasileiro da Organização Internacional do Trabalho – OIT – intituada “Trabalho escravo no Brasil do século XXI”, encontramos um refinado estudo sobre o trabalho escravo em nosso país até o ano de 2004. No capítulo dedicado a deflagar a situação atual em solo pátrio identifica-se esta “nova escravatura brasileira”:

A assinatura da Lei Áurea, em 13 de maio de 1888, representou o fim do direito de propriedade de uma pessoa sobre a outra, acaban-do com a possibilidade de possuir legalmente um escravo no Brasil. No entanto, persistiram situações que mantêm o trabalhador sem possibilidade de se desligar de seus patrões. Há fazendeiros que, para realizar derrubadas de matas nativas para formação de pastos, produ-zir carvão para a indústria siderúrgica, preparar o solo para plantio de sementes, algodão e soja, entre outras atividades agropecuárias, contratam mão-de-obra utilizando os contratadores de empreitada, os chamados “gatos”. Eles aliciam os trabalhadores, servindo de fachada para que os fazendeiros não sejam responsabilizados pelo crime. Esses gatos recrutam pessoas em regiões distantes do local da prestação de serviços ou em pensões localizadas nas cidades próximas. Na primeira abordagem, mostram-se agradáveis, portadores de boas oportuni-dades de trabalho. Oferecem serviço em fazendas, com garantia de salário, de alojamento e comida. Para seduzir o trabalhador, oferecem “adiantamentos” para a família e garantia de transporte gratuito até

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o local do trabalho (TRABALHO ESCRAVO NO BRASIL DO SÉCULO XXI, 2007, p. 21).

À primeira vista a oferta de trabalho parece ser muito boa. Boas condições de trabalho, penduricalhos vantajosos e estabilidade para toda a família são substituíddos, no entanto, pela desconfortável situação de endividamento, devidamente registrado em anotação, mesmo antes do trabalho ser iniciado:

O transporte é realizado por ônibus em péssimas condições de con-servação ou por caminhões improvisados sem qualquer segurança. Ao chegarem ao local do serviço, são surpreendidos com situações completamente diferentes das prometidas. Para começar, o gato lhes informa que já estão devendo. O adiantamento, o transporte e as despesas com alimentação na viagem já foram anotados em um “caderno” de dívidas que ficará de posse do gato. Além disso, o tra-balhador percebe que o custo de todos os instrumentos que precisar para o trabalho – foices, facões, motosserras, entre outros – também será anotado no caderno de dívidas, bem como botas, luvas, chapéus e roupas. Finalmente, despesas com os improvisados alojamentos e com a precária alimentação serão anotados, tudo a preço muito acima dos praticados no comércio (TRABALHO ESCRAVO NO BRASIL DO SÉCULO XXI, 2007, p. 22).

O trabalho aparentemente vantajoso revela-se como um verdadeiro “senhor” que acorrenta o trabalhador, que o expõe, que retira-lhe todas as energias e que o condena a uma vida degradante e vil. O trabalhador passa de operário a devedor no instante em que decide aceitar a “oferta”. Em vez de trabalhar para oferecer condições de sustento e satisfação para os seus, vê-se literalmente obrigado a executar suas funções tão-somente para pagar aquilo que deve. Trabalha, portanto, apenas para saldar sua dívida, que, conforme o interesse do empregador, nunca se encerra; na maioria das vezes sequer é diminuída. O “novo” escravo brasileiro trabalha, mas não usufrui; produz, mas não toma parte na consecução do realizado; tem direito a receber, mas vê este mesmo direito esvair-se pela tamanha dívida necessária a que se vê apreendido. Necessária porque é a única maneira de garantir o mínimo para que sua família não desapareça. Enfim, torna-se escravo porque é devedor.

Diante do exposto não é possível negar a ocorrência hodierna do trabalho escravo e o conseqüente estado de endividamento em que muitos

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se encontram. Urge, portanto, que esforços continuados em torno do tema permaneçam para que uma importante parte dos Direitos Humanos seja preservada e garantida.

É notório que políticas públicas têm sido empreendidas para combater tal prática, visto que em março de 2003, o atual presidente, Luiz Inácio Lula da Silva, lançou o Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo e instituiu, em agosto do mesmo ano, a Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo. A extinção completa deste cenário, no entanto, passa, em nosso entender, pelo reexame do texto bíblico ora em questão neste momento. Para corroborar este pensamento destacamos que a problemática maior que temos de enfrentar não é a prática da escravatura em si; é sobre o pretenso direito que alguém tem de dominar e escravizar o outro que devemos nos debruçar. Isto posto, o faremos exatamente na perspectiva bíblica, detidamente na quinta petição da oração do Pai Nosso e na sua relação com as tradições jubilares encontradas na Bíblia.

ESCRAVIDÃO À ÉPOCA DO PAI NOSSO

O evangelista Mateus atribui a Jesus as palavras expressas na Oração do Pai Nosso e na crítica moderna não há indicativos suficientes que nos impeçam de tomá-la desta forma. Ao submeter à análise o primeiro século d.C., percebemos que sua conjuntura social, política e econômica não se apresentava tão diferente do que enfrentamos no tocante à ocorrência da escravidão fruto de endividamento. E ao prounciá-la (a oração do Pai Nosso) Jesus pretendeu, alinhado com a esperança de libertação presente nas tradições jubilares, denunciar e posicionar-se contrariamente à pratica do endividamento que conduz à escravidão. O número de escravos na Palestina do primero século era grande e uma das principais razões para tanto se constituia precisamente pelo endividar-se. Ivoni Richter Reimer nos esclarece isto ao tratar do sistema político imposto pelo Império Ro-mano àquela região:

Tratava-se de um sistema escravagista que se alimentava de várias fontes, entre elas o endividamento. Junto com isso, o sistema político romano era mantido pela sua política de taxação e arrecadação de inúmeros impostos. Nem todas as pessoas, porém, podiam pagá-los. E, assim, á-pagá-los. E, assim, crescia o processo de endividamento e aumentava o número de escravas e escravos (RICHTER REIMER, 2006, p. 138).

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Além disto, Jesus também se posiciona contra as lideranças religiosas judaicas que se apresentavam coniventes com tal exploração, como fica evidente no mesmo artigo de Richter Reimer (2006, p. 138):

Mas para que isso funcionasse era necessário que o sistema romano tanto em sua expressão social como política e econômica, andasse de mãos dadas com os poderosos da terra, incluindo algumas elites religiosas. Eram os colaboradores. A existência e a conseqüencia disso chocava-se profundamente com as afirmações tradicionais teológicas do Jubileu, rea vivadas renovadamente pela fé de pessoas emprobecidas. Pelo conteúdo da petição pelo perdão das dívidas concluimos que Jesus compartilhava desta fé no Jubileu. E, atualizando esta prática de remissão de dívidas, a qual ocorria ao final de cada sétimo ano, conforme expresso no Código Deuteronômico (Dt. 15,1-11) da Bíblia, ele insta a seus ouvintes a que se torne algo constante na vida. O ensinamento contido aí sugere que a própria relação com Deus, em uma perspectiva correta e salutar, não deve prescindir desta realidade. No entendimento de Jesus nem credor nem devedor poderiam apresentar-se condignamente na presença de Deus enquanto ligados a tal situação. A dívida e conseqüente vida de empobrecimento por ela causada não permitem ao ser humano uma existência plena:

Falar de dívidas, portanto, é falar de empobrecimento, de falta de con-dições para vida em abundância. Os maiores fatores para o crescente empobrecimento da população no tempo de Jesus eram as dívidas, os impostos e as guerras. A dívida devido a empréstimo sempre acrescenta juros; o mesmo vale para a dívida por causa de impostos. Isso significa sempre aumento de dívida. A existência da dívida e a impossbilidade de pagar a dívida no prazo combinado ocasionam uma série de ame-aças concretas e reais: tortura ou prisão da pessoa devedora e/ou de membros da sua família; geralmente filhas e filhos. A dominação e os mecanismos de opressão, inclusive psicológica, decorrentes da dívida são muitos e marcam a história de milhares de crianças, mulheres e homens empobrecidos dentro do Império Romano, também na Pa-lestina. Assim, a dívida econômica não tem efeitos apenas econômicos para pessoas credoras e devedoras, mas também envolve outros níveis de relação (RICHTER REIMER, 2006, p. 140).

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É, portanto, a partir do aspecto econômico, mas englobado outros possíveis níveis de relação, que a oração do Pai Nosso em sua quinta pe-tição se nos apresenta. Em primeiro lugar, conforme exposto no início deste artigo, o termo que surge na construção desta petição “ofeilémata” aponta inicialmente para o empréstimo que deve ser pago, mas sugere também a preocupação moral perante todos, além do pecado contra Deus e contra os semelhantes. Isto se evidencia na relação de reciprocidade exigida no ensinamento de Jesus. Há, entretanto, um segundo aspecto que também merece destaque. A realidade da dívida traz à tona uma transgressão moral fruto do compromisso assumido quando da tomada de um empréstimo. Este é o setindo preciso de transgressão presente em Mateus 6,14-15. E a transgressão pelo não cumprimento do compromis-so alimenta seguidamente incontáveis outros procescompromis-sos de transgressão. Ambos, devedor e credor, pela manifestação do perdão da dívida podem sentir-se desobrigados e libertos de tamanha culpa moral.

Nada há de mais pertinente e relevante ao se considerar, direitos hu-manos aplicados ao trabalho, do que trazer para a reflexão a experiência de pessoas que já há muito tempo experimentaram a situação do endividamento e enfrentaram a força de um sistema que, à semelhança do atual, tentava a todo instante diminuir a liberdade, a criatividade e as demais potencialidades humanas utilizando-se do endividamento econômico e moral.

A ESCRAVIDÃO NO ENDIVIDAMENTO

Retomando os conceitos de Cecato vemos que na raiz do desrespeito aos direitos do trabalhador está a causa potencial para o endividamento. Em primeiro lugar, a constatação de que o trabalhador que mais se desgasta para a produção de bens de consumo é o que menos tem condições para o consumo. Em segundo lugar, e como desdobramento lógico, tal operário não dispõe de condições para consumir o que ele produziu em virtude de sua não-participação na configuração do ordenado. O trabalhador, de fato, não negocia seus vencimentos, apenas se submete a aceitá-los ou não. E diante da necessidade individual e familiar vê-se obrigado a todas as condições impostas por esta situação.

Sem poder real de consumo e vencimentos que inviabilizam a satisfação de todas as suas necessidades, resta ao trabalhador apenas uma possibilidade: a dívida.

Outro ponto apresentado no trabalho de Maria Áurea Cecato é a questão do desemprego, identificado como um dos fatores adversos à

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concre-tização dos direitos humanos do trabalhador. Depois de narrar os caminhos percorridos ao longo da História no tocante ao surgimento e efetivação dos direitos humanos de primeira, segunda e terceira gerações, ela nos apresenta uma perigosa mudança de paradigma que ataca frontalmente o direito do trabalhador. Pelos direitos de primeira geração (civis e políticos) adota-se a premissa de que a faculdade de trabalhar é um dos primeiros direitos do homem. Cecato (2007, p. 353) nos diz que “o contrato é a figura jurídica que garante a manifestação de sua própria vontade e representa, ao mesmo tempo, a liberdade e o respeito que lhe é devido a partir de então, enquanto cidadão”. Em seguida temos os direitos econômicos, sociais e culturais (se-gunda geração) que irão efetivar a adoção dos direitos laborais, ancorados nos de primeira geração, os quais garantirão a autonomia do trabalhador in-dividual e coletivamente. Finalmente, os direitos de terceira geração também se referem aos trabalhadores “tanto porque consideram a indispensabilidade de meio ambiente saudável de trabalho, como porque ampliam os direitos coletivos, mas, sobretudo, porque definem que a pessoa humana é o sujeito central do desenvolvimento” (CECATO, 2007, p. 357).

Diante do exposto concluímos que privar o trabalhador de seus direitos (inclusive através do desemprego) é negá-lo enquanto sujeito livre, autônomo e dotado de capacidade e potencialidades para desenvolver-se e desenvolver o meio no qual está inserido. Nesta configuração o trabalhador perde sua dignidade e se torna escravo das condicionantes econômico-político-sócio-culturais que o cercam. Esta é a luta dos que pretendem assegurar os direitos humanos do trabalhador: romper com o processo que mantém o homem preso ao sistema econômico, impedindo-o de ter o suficiente para sua manutenção e satisfação, condicionando-o a consumir sem ter como fazê-lo, e a aceitar todo tipo de exploração (às vezes nem isto é possível em face do desemprego) a fim de salvaguardar seu emprego e a garantia de sua subsistência.

Entretanto, mesmo aceitando esta realidade passivamente o traba-lhador não consegue ter todas as suas necessidades satisfeitas e incorre, via de regra, no acúmulo de dívidas. Tal recurso pecuniário assola a condição humana e a partir da perspectiva da oração de Jesus se constitui em uma afronta para com Deus.

Ainda no estudo acerca do trabalho escravo no Brasil lemos o se-guinte relato:

A forma mais encontrada [da escravidão provocada pelo endividamento] no país é a da servidão, ou ‘peonagem’, por dívida. Nela, a pessoa empenha sua própria capacidade de trabalho ou a de pessoas sob sua

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responsabilida-de (esposa, filhos, pais) para saldar uma conta. E isso acontece sem que o valor do serviço executado seja aplicado no abatimento da conta de forma razoável ou que a duração e a natureza do serviço estejam claramente definidas. A nova escravidão é tão vantajosa para os empresários quanto a da época do Brasil Colônia e do Império, pelo menos do ponto de vista financeiro e operacional (TRABALHO ESCRAVO NO BRASIL DO SÉCULO XXI, 2007, p. 33).

Destarte, diante desta realidade, torna-se imprescindível a criação de con-dições para que a prática do acúmulo de dívidas pecuniárias seja abolida dentro das relações humanas, das quais as relações de trabalho. Se esta realidade advém, contudo, da pouca importância quanto à preservação dos direitos laborais, o que, de fato, necessita ser atacado é exatamente este sistema. A oração do Pai-Nosso se coloca como meio de resistência para que não se faltem as condições mínimas de vida plena a qualquer trabalhador a ponto de fazê-lo contrair dívidas. E orar a oração do Pai-Nosso nesta perspectiva é colocar-se conscientemente diante da questão a fim de que a opressão causada pelo endividamento seja superada pelo respeito aos direitos mais caros ao ser humano.

A literatura sagrada configura-se, portanto, neste tocante, como elevada ferramenta de resistência à opressão a fim de que novos paradigmas relativos aos direitos laborais do homem possam existir e serem respeitados. Com isto, as relações sociais e de trabalho seriam profundamente fortificadas e valorizadas e a sociedade brasileira caminharia em direção a um Estado mais livre, mais democrático e mais soberano:

A percepção das dívidas, presente no Pai-Nosso, faz parte de uma tradição bíblica que quer superar as relações humanas de dependên-cia. Escravidão, perda de terra, desintegração familiar, fome, doença, são estágios de um processo de empobrecimento que se origina de endividamentos. Essa é a constatação que perpassa os mais distintos blocos literários na Bíblia (2 Rs 4,1; Pv 22,7; Am 2,6; Is 5,8; Hc 2,6). A dívida com suas conseqüências sócio-políticas coloca em risco uma relação construtiva e justa entre pessoas; ameaça e inviabiliza a relação com Deus; impossibilita a existência de um Estado livre, democrático e soberano (REIMER; RICHTER REIMER, 1999, p. 130). É preciso garantir o respeito aos direitos humanos e a Sagrada Escritura tem mecanismos para clarear os caminhos que deverão ser percorridos para que isto se torne realidade em todas as esferas da vida e da sociedade. A vida sem dívidas.

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Referências

BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada: nova versão internacional. São Paulo: Vida, 2002. BOFF, Leonardo. O Pai-nosso: a oração da libertação integral. 4.ed. Petrópolis: Vozes, 1984. CECATO, Maria Áurea Baroni. Direitos humanos do trabalhador: para além do paradigma da declaração de 1998 da O.I.T. In: SILVEIRA, Rosa Maria Godoy et al. Educação em direitos humanos: fundamentos teórico-metodológicos. João Pessoa: Universitária, 2007. p.351-372.

COUTINHO, Aldacy Rachid. Educação e trabalho: uma questão de direitos humanos. In: SILVEIRA, Rosa Maria Godoy et al. Educação em direitos humanos: fundamentos teórico-metodológicos. João Pessoa: Editora Universitária, 2007. p.373-396.

JEREMIAS, Joachim. Estudos no Novo Testamento. Tradução de Itamir Neves de Souza e João Rezende Costa. São Paulo: Ed. Academia Cristã, 2006.

LOCKMANN, Paulo. Perdoa-nos as nossas dívidas: uma meditação sobre a oração: uma forma de luta e resistência à opressão. Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana, São Paulo, n. 5-6, p. 7-13, 1990/1.

REIMER, Haroldo; RICHTER REIMER, Ivoni. Tempos de graça: o jubileu e as tradições jubilares na Bíblia. São Leopoldo: Sinodal; CEBI; Paulus, 1999.

RICHTER REIMER, Ivoni (Org.). Economia no mundo bíblico: enfoques sociais, históricos e teológicos. São Leopoldo: CEBI; Sinodal, 2006.

RICHTER REIMER, Ivoni (Org.). Como fazer trabalhos acadêmicos. Goiânia: Ed. da UCG; São Leopoldo: Oikos, 2007.

TRABALHO ESCRAVO NO BRASIL DO SÉCULO XXI. ISBN: 92-2-819328-X; 978-92-2-819328-2. Brasília: OIT, 2007.

Disponível em: <http://www.oitbrasil.org.br/info/downloadfile.php?fileId=300>. Acesso em: 14 out. 2009.

Abstract: Discussion of human rights applied to labor relations in parallel with the

Lord’s prayer related to the forgiveness of debts. Understood only in the moral/spiritual sense, this petition has been overlooked in the sphere of socio-economic praxis. That aspect will be considered here. Forgiveness of debts points to the need that humans have to live in a perspective of non-indebtedness. The Lord’s Prayer stands as a means of resistance so that no worker lacks the minimum conditions of full life and does not need to run up debts. In this perspective, praying the Our Father is putting oneself consciously in a posture in which the oppression caused by debt is surpassed by the respect for the rights which are most dear to humans. The sacred literature is con-figured here as an important tool of resistance to oppression in order that important paradigms related to labor rights of human beings can be respected.

Key words: Lord’s prayer, debts, forgiveness, labor rights, New Testament MATHEUS GUIMARÃES GUERRA GAMA

Mestrando em Ciências da Religião na Pontifícia Universidade Católica de Goiás. Professor de Novo Testamento na Faculdade Teológica Batista de Brasília. Pastor Batista. Coordenador do Ministério com Juventude da Igreja Memorial Batista de Brasília. E-mail: matheusguerra@gmail.com

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