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A ADEQUADA OCUPAÇÃO DOS CARGOS PÚBLICOS SEGUNDO MICHAEL WALZER

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A ADEQUADA OCUPAÇÃO DOS CARGOS PÚBLICOS SEGUNDO MICHAEL WALZER: ANÁLISE NO CONTEXTO BRASILEIRO

Alan José de Oliveira Teixeira1

RESUMO

A ocupação dos cargos públicos e os critérios adotados para tal fim são debatidos desde a Idade Antiga. Hoje, a realização de certames tem se consolidado como critério predominante. Todavia, observa-se, no século XXI, um profundo desvio de finalidade nos critérios e na procedimentalidade adotados pelos concursos públicos no Brasil. Assim, pretendeu-se uma incursão na igualdade complexa como fator de otimização nesse campo, tendo em vista a teoria de justiça proposta pelo comunitarista Michael Walzer e sua compatibilidade com a Constituição Federal de 1988.

Palavras-chave: Cargos públicos. Certames públicos. Direito Constitucional. Igualdade complexa. Michael Walzer.

1 INTRODUÇÃO

1 Graduando em Direito pelo UNICURITIBA. Membro da Red Iberoamericana Juvenil de Derecho Administrativo – RIJDA (2019). Foi membro do grupo de pesquisa “A Justiça Política e o Direito Eleitoral no Estado Democrático de Direito”, sob orientação do Prof. Dr. Roosevelt Arraes. Orcid iD: <https://orcid.org/0000-0002-0604-4149>.

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Os critérios de ocupação dos cargos públicos são alvos de debates jurídicos e políticos no mundo, desde a Idade Antiga. Rotatividade e hereditariedade, dentre os critérios empregados ao longo da história, foram alguns dos mais utilizados.

Atualmente, tem-se consolidado, como critério predominante para o preenchimento dos cargos, nos Estados democráticos contemporâneos, a realização de concursos públicos. No Brasil, há resquícios da ideia de concorrência pública nas legislações imperiais, mas foi a Constituição de 1934 o marco histórico de sua obrigatoriedade.

Outrossim, a Constituição Federal de 1988 possui previsão expressa de sua realização no art. 37, inc. II. O certame público, que possui viés originariamente pluralista, é uma tentativa de promover a igualdade simples na seara dos cargos públicos.

Todavia, observa-se, no século XXI, um profundo desvio de finalidade – desvirtuamento de institutos jurídicos ou dos propósitos de adoção pelos Estados – nos critérios e na procedimentalidade dos concursos públicos no Brasil, que servem como verdadeiros filtros e desconsideram o princípio democrático e, especialmente, a relevância da atividade pública.

Assim, faz-se necessária a incursão na igualdade complexa como fator de otimização na ocupação dos cargos públicos, tendo em vista a teoria de justiça proposta pelo comunitarista Michael Walzer, à luz das ideias de qualificação e relevância.

Estudou-se a filosofia de Michael Walzer no âmbito dos certames brasileiros, com o intuito de investigar critérios que otimizem e legitimem o concurso como instrumento pluralista e democrático na seara da igualdade complexa. As pesquisas se desenvolveram em referenciais bibliográficos, tais como literatura especializada, jurisprudência, precedentes e textos jurídico-normativos.

Primeiramente, investigou-se minuciosamente a previsão constitucional, abordando as particularidades brasileiras e, posteriormente, problematizou-se a questão da concorrência pública no Brasil. A partir disso, buscou-se definir a proposta de justiça distributiva de Michael Walzer, que apresenta o conceito de igualdade complexa. Após, expôs-se os critérios de qualificação e relevância no provimento dos cargos públicos, utilizando como paradigma decisão do Supremo Tribunal Federal. Por fim, teceu-se considerações a respeito dos critérios de concorrência nos certames públicos, expondo seu elo com o neoconstitucionalismo e os valores fundamentais; e, em seguida, apresentou-se as considerações finais.

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2 CERTAME PÚBLICO NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 E O PROBLEMA NA DEFINIÇÃO DE CRITÉRIOS PARA OCUPAÇÃO DOS CARGOS PÚBLICOS

Um olhar histórico permite constatar que o provimento dos cargos públicos nas diferentes sociedades foi feito por meio de diversos critérios ao longo da história, dentre os quais: sorteio, compra e venda, herança, arrendamento, livre nomeação absoluta, livre nomeação relativa, eleição e concurso (MAIA; QUEIROZ, 2007, p. 3).

No Brasil, a legislação imperial buscou timidamente traçar os primeiros contornos de um processo que se pretendia imparcial para a admissão de cidadãos em cargos públicos. Todavia, o marco histórico se deu com a Constituição de 1934, que trouxe o princípio do concurso público expressamente no texto constitucional (MAIA; QUEIROZ, 2007, p. 8).

Hoje, o Estado brasileiro é regido pela Constituição Federal de 1988, também conhecida como Constituição Cidadã, pois, entre outras coisas, reservou os artigos 37 e seguintes para tratar do regime jurídico de Direito Administrativo, o que abarca a ocupação dos cargos públicos, cuja possibilidade é aberta, em regra, a todos os cidadãos.

Assim, o referido texto constitucional buscou conferir um caráter democrático à forma de acesso aos cargos, empregos e funções públicas, adotando o regime de concurso para esse fim. Democrático, porquanto todos os cidadãos, assim como os estrangeiros na forma da lei, têm amplo acesso ao certame, desde que cumpridos os requisitos legais, hoje postos pelos editais – os quais fazem lei entre os concursandos.

Na esteira de Celso Antônio Bandeira de Mello (2014, p. 285), o que a Constituição Federal de 1988 visou primando pela acessibilidade foi “[...] ensejar a todos iguais oportunidades de disputar cargos ou empregos na Administração direta e indireta”.

Convencionou-se, no presente trabalho, a indistinção entre concurso público e processo seletivo, haja vista que este cada vez mais se confunde com aquele, além de que há incerteza na significação de processo seletivo público (MELLO, 2014, p. 285). Diante disso, resta-se a necessidade de conceituar concurso público, além de expor suas finalidades originais.

Para Michael Walzer (2003, p. 179), filósofo estadunidense, a ideia de concurso público atual estabelece um tipo de igualdade simples na esfera dos cargos públicos, tratando-se, pois, de um funcionalismo público universal. Portanto, “os cargos devem ser conquistados em concorrência pública” (WALZER, 2003, p. 179), cujo escopo é a meritocracia perfeita. Assim define o papel dos certames:

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De fato, contudo, esse resultado feliz exige atuação concreta do Estado: aplicação de exames, definição de critérios para formação e diplomação, regulamentação dos métodos de seleção e recrutamento. Só o estado pode combater as consequências particularizantes da iniciativa individual, do poder do mercado e dos privilégios empresariais, e garantir a todos os cidadãos oportunidades iguais de atingir os padrões universais (WALZER, 2003. p. 179).

Márcio Maia e Ronaldo de Queiroz (2007, p. 6) realizam abordagem do concurso público como fruto da França de Napoleão, no embate com seus opositores, com posterior generalização. Em uma ideia de subsidiariedade, concebem que o concurso público:

[...] sobressai-se como o melhor processo de recrutamento de agentes públicos e o menos inconveniente, na medida em que não constitui um sistema meramente aleatório como o sorteio; não trata o cargo público como objeto mercantil ou de sucessão hereditária, como o arrendamento, a compra e venda e a herança; não adota como critério de escolha do agente público a valoração puramente discricionária ou de natureza eminentemente político-econômica, como a livre nomeação e a eleição.

Na mesma linha, vale expor o conceito levantado por Fabrício Motta (2010, p. 4), que entende o certame público como um “[...] procedimento administrativo indispensável à eficácia do direito fundamental de disputar, em igualdade de condições, os cargos e empregos públicos.” A finalidade desse procedimento, ainda na linha do autor supracitado, é “[...] identificar os mais aptos, mediante critérios meritórios objetivos, para ocupar os cargos e empregos públicos com vocação de permanência.” (MOTTA, 2010, p. 8).

Em que pese o concurso, dentro dessa lógica preliminar, aparente um critério louvável ao provimento dos cargos públicos, percebe-se, na contemporaneidade, uma banalização de tal critério no que se refere ao conteúdo – para ser fiel à terminologia constitucional – das provas (e títulos).

Todos os conceitos e a evolução constitucional apresentados apontam para um escopo claro: o concurso público visa à seleção dos mais qualificados para o exercício da função pública. Tal teste seletivo se generalizou tanto no acesso à educação superior pública, como no acesso aos cargos públicos (MAIA; QUEIROZ, 2007, p. 22).

O impasse objetivamente trabalhado no presente trabalho pode ser visualizado nos editais dos certames que regem o procedimento, mas o problema descortina-se ainda mais claramente nas provas escritas.

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A título de exemplificação, no ano de 2017, o Ministério Público de Minas Gerais publicou edital de concurso público para Promotor de Justiça Substituto. Da prova preambular, constata-se a cobrança de questão versando sobre a ineficaz Teoria da Graxa ou

Teoria do Vampiro, que versa sobre corrupção em seu aspecto positivo. Veja-se:

QUESTÃO 9. Sobre a teorização constitucional:

I. O fenômeno da constitucionalização simbólica com a padronização de um simbolismo jurídico invariavelmente fomenta o surgimento do Estado Vampiro. II. A teoria da graxa sobre rodas valoriza a corrupção como um aspecto positivo, com a possibilidade de implemento do crescimento econômico.

III. A teoria discursiva do direito procura equacionar o discurso de fundamentação e o de aplicação do direito, de modo a colocar no primeiro o ponto final de equilíbrio do sistema dentro da solução dos conflitos.

IV. A concepção de justiça formatada a partir do véu da ignorância rompe o vínculo de equidade entre os atores de um discurso jurídico (MINISTÉRIO PÚBLICO DE MINAS GERAIS, 2017).

Vê-se, pois, inúmeras críticas a questões desse gênero, haja vista a inexistência de dialeticidade entre o conteúdo avaliado e a aptidão necessária para o exercício do cargo concorrido. Isso porque, ao contextualizá-la, não se percebe sua relevância em um concurso de Promotor de Justiça. Some-se que a teoria em apreço é doutrina isolada e pouco estudada

no Direito Penal2.

Em Procedimento de Controle Administrativo perante o Conselho Nacional do Ministério Público, o Relator Conselheiro Valter Shuenquener de Araújo determinou a anulação da questão em apreço, em sede de liminar. Segundo sustentou, “a Comissão do Concurso ingressou em campo que não guarda nenhuma base sólida e profundidade teórica relevante para ser cobrada em concurso para ingresso em carreira do Ministério Público” (CONSELHO NACIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO, 2017, p. 4). Afirmou ainda que a Banca “discorreu sobre teorias desconhecidas no meio jurídico, na medida em que não possuem embasamento na legislação, em doutrina consagrada ou em súmulas ou jurisprudências dos Tribunais Superiores” (CONSELHO NACIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO, 2017, p. 4) e fez referência à Resolução CNMP nº 14/2006, que veda prova

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STRECK, Lenio Luiz. A concursocracia, a Teoria da Graxa e os testículos despedaçados. Consultor Jurídico, São Paulo, abr. 2017. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2017-abr-06/senso-incomum-concursocracia-teoria-graxa-testiculos-despedacados>. Acesso em: 07 out. 2019.

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preambular formulada com base em entendimentos doutrinários divergentes ou jurisprudência não consolidada dos tribunais.

Outro exemplo recente foi a previsão, em edital para concurso público na Polícia Militar do Paraná, do que seria masculinidade, critério que faria parte do perfil profissiográfico do futuro agente. Seria dizer que o cadete deveria ter a capacidade de “não se impressionar com cenas violentas, suportar vulgaridades, não se emocionar facilmente, tampouco demonstrar interesse em histórias românticas e de amor” (PARANÁ, 2017, p 21).

Tendo isso em vista, constata-se que determinados concursos públicos servem hoje como verdadeiros filtros, e o seu planejamento é incoerente com os fins democráticos expressos na Constituição Federal de 1988. Por isso, é necessário ler o pluralismo democrático que deve residir nos certames públicos à luz da igualdade complexa, a fim de otimizar os critérios de ocupação dos cargos públicos, em uma proposta de justiça distributiva em Michael Walzer.

3 JUSTIÇA DISTRIBUTIVA, IGUALDADE SIMPLES E IGUALDADE COMPLEXA: MONOPÓLIO E PREDOMÍNIO

Antes de explanar a justiça complexa de Walzer, é pertinente comparar e distinguir as acepções de justiça distributiva entre alguns teóricos da justiça.

A noção de justiça distributiva remonta a Aristóteles, que entende essa vertente da teoria do justo como a distribuição, entre os membros da comunidade política, das vantagens, riquezas e honras (TORRES, 1995, p. 99). Esse é com certeza um conceito basilar de justiça distributiva, de onde os estudiosos que sucederam ao Estagirita deitaram cuidadosas observações.

John Rawls (1997), em sua Teoria da Justiça, procura traçar uma doutrina imparcial, fundamentada na justiça social e na justiça distributiva. Segundo Castilho (2009, p. 96), atendo à doutrina de Rawls, a identificação da justiça na forma supramencionada está atrelada às “[...] instituições sociais elementares da sociedade, na hipotética e idealizada escolha consensual levada a efeito na Posição Original, engendrada por indivíduos tomados apenas na sua condição de ser humano racional.”

Objetivamente, Robert Dahl (2012, p. 258) concebe que “[...] a justiça distributiva requer uma distribuição justa de recursos cruciais – poder, riqueza, renda, educação, acesso ao conhecimento, oportunidades de desenvolvimento pessoal e valor próprio e outros”.

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Foco do presente estudo, Michael Walzer desenvolve uma teoria dos bens. O norte-americano analisa a distribuição dos bens sociais na sociedade, mas, além da perspectiva da igualdade simples, propõe uma teoria da igualde complexa.

Sustenta uma definição de justiça distributiva como circunstância em que “[...] as pessoas concebem e criam bens, que então distribuem entre si” (WALZER, 2003, p. 6). Walzer ainda estuda seis proposições da teoria dos bens, sendo este o caminho para explicar o pluralismo das possibilidades distributivas.

Primeiramente, assume que “[...] 1. Todos os bens de que trata a justiça distributiva são bens sociais. Não são e não podem ser avaliados de maneira idiossincrática” (WALZER, 2003, p. 6). Ou seja, os bens, sejam eles econômicos ou políticos, são postos em mesmo plano, no plano social.

O cientista social alega que “[...] 2. Homens e mulheres assumem identidades concretas devido ao modo como concebem e criam, e depois possuem e empregam os bens sociais” (WALZER, 2003, p. 7). Depreende-se desta máxima que os indivíduos são protagonistas no processo de distribuição dos bens sociais, influenciados por seus históricos de transações. O comunitarista sintetiza:

3. Não existe conjunto concebível de bens fundamentais ou essenciais em todos os mundos morais e materiais – senão tal conjunto deveria ser concebido de maneira tão abstrata que teria pouca utilidade ao se pensar em determinadas distribuições. [...] 4. Mas é o significado dos bens que define sua movimentação. Os critérios e os acordos distributivos não são intrínsecos ao bem em si, mas ao bem social. Se entendermos o que ele é, o que significa para aquele para quem é um bem, entenderemos como, por quem e por quais motivos deve ser distribuído (WALZER, 2003, p. 8).

Do supratranscrito infere-se que nem todos os bens sociais devem ser distribuídos. Além disso, os bens sociais fundamentais devem ser observados dentro das particularidades de cada sociedade. Não existe, por si só, um ideal abstrato de bem social fundamental. O elemento historicidade pode ser extraído da proposição a seguir: “[...] 5. Os significados sociais são históricos em caráter; portanto, as distribuições, justas e injustas, mudam com o tempo” (WALZER, 2003, p. 9).

Por derradeiro, a sexta proposição: “6. Quando os significados são diferentes, as distribuições devem ser autônomas. Todo bem social ou conjunto de bens sociais constitui,

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por assim dizer, uma esfera distributiva dentro da qual só são apropriados certos critérios e acordos” (WALZER, 2003, p. 10).

Aqui, constata-se a parte central de toda a teoria walzeriana e o preciso elo com os certames públicos: as esferas distributivas são, em regra, autônomas. Antecipando uma indagação futura, diz-se que a esfera econômica, por exemplo, não deve influenciar critérios e acordos em outra esfera distributiva. A igualdade complexa, como se analisará nos tópicos seguintes, pretende evitar a extrapolação das esferas de distribuição.

O esforço de compreensão da teoria de justiça de Walzer enseja o entendimento dos conceitos de predomínio e de monopólio. O que pode ser predominante e monopolizado é o bem. Walzer (2003, p. 11) esclarece em sua obra: “Chamo um bem de predominante se os indivíduos que o possuem, por tê-lo, podem comandar uma vasta série de outros bens. É monopolizado sempre que apenas uma pessoa, monarca no mundo dos valores – ou um grupo, oligarcas – o mantém com êxito contra todos os rivais.”

A predominância, segundo o teórico, relaciona-se à ideia de usar os bens sociais sem as limitações dos significados intrínsecos da esfera (influência) (WALZER, 2003, p. 11). O monopólio utiliza-se da predominância para controlar os bens sociais. E se tal situação não perpetua o estado das coisas, aumenta a desigualdade social. E assim,

[...] tudo o que é bom passa às mãos daqueles que têm o que há de melhor. Basta possuir o melhor para que o resto venha a reboque. Ou, para trocar de metáfora, o bem predominante é convertido em outro bem, em muitos outros, segundo o que quase sempre parece um processo natural, mas é, na verdade, mágico, uma espécie de alquimia social (WALZER, 2003, p. 12).

Em suma, existem bens sociais que são predominantes em sua esfera de justiça. Tais bens, pela força, são monopolizáveis. Tal monopólio pode converter o bem social predominante em outros bens fora de sua esfera originária (própria), incidindo em outras esferas da vida. Isso permite, em termos práticos, conversões em prestígio, oportunidade e poder (TAVARES, 2009, p. 7220).

Daí surge o conflito social, pois o grupo monopolista – aqueles que detêm o bem predominante – deseja manter a conversão dos bens sociais nesse sentido, ao passo que outros grupos sociais procuram lutar por uma nova configuração na conversão dos bens sociais (TAVARES, 2009, p. 7220).

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Uma das formas de conter essa conversão é por meio da igualdade simples, que se projeta no problema do monopólio, haja vista que essa concepção de igualdade sustenta a multiplicidade por meio do processo de conversão, estendendo-se a todos os bens sociais (WALZER, 2003, p. 16). Nessa perspectiva, todos deveriam ter acesso a tudo: nenhum bem poderia ser monopolizado se todos fossem predominantes.

Michael Walzer (2003, p. 16) entende que o regime de igualdade simples é instável por conta da volatilidade do mercado e da economia, o que implica um círculo vicioso do processo de desigualdade, pois esta assume nova forma, com novos bens predominantes.

Assim, o professor propõe a igualdade complexa, que, diferentemente do que foi acima assegurado com relação à igualdade simples, projeta-se no problema do predomínio, haja vista a necessidade de “[...] analisar o que significaria estreitar o âmbito dentro do qual determinados bens são conversíveis e defender a autonomia das esferas distributivas” (WALZER, 2003, p. 20).

4 IGUALDADE COMPLEXA EM MICHAEL WALZER: OS CRITÉRIOS DE QUALIFICAÇÃO E RELEVÂNCIA NO PROVIMENTO DOS CARGOS PÚBLICOS

Em apertada síntese, Walzer propõe como possível solução ao impasse da desigualdade evitar o predomínio do bem, ao invés do monopólio (TAVARES, 2009, p. 7220), conforme exposto no item anterior. Visa, pois, a evitar a falsa solução de um sistema igualitário absoluto (TAVARES, 2009, p. 7220). Difere-se, ainda, o regime de igualdade complexa da tirania. A igualdade complexa é

[...] O contrário da tirania. Define um conjunto de relações de modo que torne impossível o predomínio. Em termos formais, a igualdade complexa significa que a situação de nenhum cidadão em uma esfera ou com relação a um bem social pode definir sua situação em qualquer outra esfera, com relação a qualquer outro bem. Assim, pode-se preferir o cidadão X ao cidadão Y para cargos políticos e, então, os dois serão desiguais na esfera política. Mas não serão desiguais em geral, contanto que o cargo de X não lhe conceda vantagens sobre Y em qualquer outra esfera – atendimento médico superior, acesso a escolas melhores para os filhos, oportunidades empresariais etc. Contanto que o cargo não seja um bem predominante, que em geral não seja conversível, os detentores de cargos políticos permanecerão, ou pelos menos podem permanecer, em relação de igualdade com as pessoas que são governadas por eles (WALZER, 2003, p. 23-24).

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Ou seja, o princípio basilar do regime de igualdade citado é a separação das diferentes esferas sociais, impedindo contaminações que possam afetar as posições em outras esferas (ESTÊVÃO, 2002, p. 110). Contrapõe-se, portanto, à tirania social: “[...] substitui a tirania social pela qual um grupo utiliza o seu monopólio de um bem para controlar o acesso a outros bens ou para transformar o seu sentido social” (ESTÊVÃO, 2002, p. 110).

Miller (1995 citado por ESTÊVÃO, 2002, p. 110) percebe tal noção de justiça como uma cidadania igual, pois “[...] quanto mais bens sociais houver menos existirá a probabilidade de os indivíduos poderem ser ‘ordenados socialmente na base de sua performance numa esfera apenas’”.

Consoante o descrito no segundo item deste texto, o acesso aos cargos públicos é hoje universalizado e plural, especialmente no Brasil. As visões precedentes de trabalho foram, aos poucos, substituídas pelo funcionalismo público, estabelecendo uma espécie de igualdade simples (WALZER, 2003, p. 179).

Michael Walzer, a despeito disso, defende a observância das peculiaridades de cada cargo público, dispensando generalizações oriundas de um funcionalismo público universal. Para o filósofo, há cargos que exigem formação demorada ou qualidades especiais, de sorte que nem todos podem ser médicos, engenheiros, diretores de hospital, assim como nem todos podem trabalhar nas fábricas mais bem-sucedidas ou agradáveis (WALZER, 2003, p. 182).

Defende, além do exposto, uma visão global dos processos de seleção operacionalizados para o provimento dos cargos públicos, pois deve-se impor limites às prerrogativas dos qualificados, sem acabar com o seu monopólio. O autor continua:

Quaisquer que sejam as qualidades que resolvamos exigir – conhecimentos de latim, ou a capacidade de passar num exame, fazer um discurso, ou fazer os melhores cálculos de custo/benefício – devemos fazer questão de que não se tornem a base de reivindicações tirânicas de poder e privilégios. Os detentores de cargos devem ser rigidamente mantidos fiéis às finalidades do cargo. Assim como exigimos comedimento, também exigimos humildade. Se esses dois requisitos fossem devidamente entendidos e postos em prática, a distribuição de cargos avultaria menos no pensamento igualitário do que acontece atualmente (WALZER, 2003, p. 183).

O filósofo político sustenta um sistema misto para o provimento dos cargos públicos: um funcionalismo público universal e um funcionalismo público mais restrito.

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No que se refere ao funcionalismo público universal, parte-se da noção de igualdade de oportunidades, que leva à meritocracia. Todavia, há diferenças entre qualificação e mérito (e meritocracia) que impedem qualquer abstração simplificadora no sentido da distribuição dos cargos por mérito (WALZER, 2003, p. 184), pois “[...] para muitos cargos, só se exigem qualificações mínimas; um número bem grande de candidatos pode realizar bem o serviço, e nenhuma formação adicional os habilitaria a realizá-lo melhor” (WALZER, 2003, p. 184).

Acerca da diferença entre mérito e qualificação supramencionada, Walzer (2003, p. 185) deduz: “[...] O mérito implica um tipo bem restrito de merecimento, tal que o título precede a seleção, ao passo que a qualificação é uma ideia muito mais vaga” (WALZER, 2003, p. 185). Por conseguinte, o cargo não pode ser merecido.

O funcionalismo público universal, consoante se infere da obra em apreço, implica um exame universal para o provimento dos cargos públicos (WALZER, 2003, p. 189). Assim:

Se considerássemos todos os cargos como prêmios e distribuíssemos (e redistribuíssemos) tanto os títulos quanto os postos específicos com base no mérito, a estrutura social resultante seria a meritocracia. A distribuição desse tipo, com esse nome, é sempre defendida pelas pessoas que pretendem, creio, garantir consideração somente aos qualificados, e não cargos aos que merecem. Porém, supondo-se que existem algumas pessoas comprometidas com a criação de uma meritocracia restrita, vale parar um pouco para analisar os méritos filosóficos e práticos dessa ideia. Não há como fundar uma meritocracia, a não ser exclusivamente com base no histórico dos candidatos. Daí o vínculo íntimo entre a meritocracia e os exames, pois o exame produz um registro simples e objetivo. O funcionalismo público universal requer um exame universal para o funcionalismo público (WALZER, 2003, p. 189).

Destaque-se, Walzer parece ser adepto de uma ideia além dos testes e provas no concurso público, com vistas a tornar a seleção para os cargos mais democrática e coerente, tendo em conta o funcionalismo público universal que propõe.

Os concursos públicos – transpondo parte da teoria walzeriana para o aspecto basilar deste estudo – restam restritos a avaliarem de modo equitativo e a pautarem tal avaliação restritivamente ao aspecto da qualidade e da relevância (WALZER, 2003, p. 195), muito embora a igualdade sempre seja aproximada.

As qualidades supramencionadas compreendem as qualificações, que são “[...] qualidades precisas ou importantes para determinado cargo” (WALZER, 2003, p. 197). A acepção de importância é, claramente, passível de infindáveis debates, mas há que se admitir

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os limites de um processo seletivo público (WALZER, 2003, p. 197). Precisa-se, pois, objetivamente, definir quais posturas, valores, conhecimentos um cargo requer (WALZER, 2003, p. 197). As qualidades importantes, nesse sentido, “[...] são inerentes ao exercício do cargo, abstraído da experiência” (WALZER, 2003, p. 197-198).

Na esteira da crítica contemporânea aos concursos públicos – lembre-se da teoria da graxa e da masculinidade –, Walzer (2003, p. 199) tece considerações sobre o atual estado de coisas:

Não passam de maneiras convencionais de reduzir o número de candidatos; e, se os candidatos tiverem oportunidades iguais de se preparar para esses concursos, os exames não são obrigatoriamente questionáveis. Porém, à medida que seu uso impeça as promoções na hierarquia dos cargos com base na experiência e no desempenho, deve-se resistir a eles, pois o que queremos é o melhor desempenho no emprego, e não no exame.

Por último, a ideia de relevância possui uma clara dificuldade prática. Afinal de contas, como é possível definir critérios objetivos de relevância nos mais diversos processos de seleção pública?

Existem casos que servem de ilustração e norte para a definição de critérios relevantes ou não às seleções realizadas por meio de certame público. Walzer (2003, p. 199)

afirma que no caso do nepotismo fica claro: o parentesco não é critério relevante de seleção.

No âmbito brasileiro também é possível traçar paralelos de qualificação e relevância no que toca ao provimento dos cargos públicos. Referência é a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário nº 898.450, em que se discutiu a relevância do tamanho de uma tatuagem.

5 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E O TAMANHO DA TATUAGEM

O caso da tatuagem que chegou ao plenário do Supremo Tribunal Federal versou sobre uma cláusula disposta no edital que disciplinou o certame público para Soldado da Polícia Militar do Estado de São Paulo. A referida disposição proibia a ostentação de tatuagens que extrapolassem os limites de tamanho definidos pelo Estado, além das restrições à cor e à imagem atentatória à moral e aos bons costumes.

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O Recurso Extraordinário nº 898.450/SP foi julgado pelo plenário do Supremo, em agosto de 2016, e foi fixada a seguinte tese: “Editais de concurso público não podem estabelecer restrição a pessoas com tatuagem, salvo situações excepcionais em razão de

conteúdo que viole valores constitucionais”3

.

Em determinadas passagens do voto do Relator, Ministro Fux, verificam-se questões diretamente relacionadas a este estudo, dentre elas, a questão fundamental de otimização e maximização do pluralismo democrático para o acesso a cargos públicos: a igualdade complexa e os critérios de qualificação e relevância.

Do acórdão que reconheceu a repercussão geral da questão constitucional comentada, extrai-se trecho que contém em seu plano de fundo a ideia de importância e qualificação:

Uma genérica alegação de que o edital é a lei do concurso não pode, em hipótese alguma, implicar ofensa ao texto constitucional, mormente em uma circunstância em que eventual exigência editalícia não se revelar proporcional quando em cotejo com as atribuições a serem desempenhadas no cargo a ser provido4.

Outrossim, o voto proferido em agosto de 2016, no plenário do Supremo Tribunal Federal, tornou a ideia walzeriana mais prática, o que serve de parâmetro a casos semelhantes: “[...] assim, são inadmissíveis, porquanto inconstitucionais, restrições ofensivas aos direitos fundamentais, à proporcionalidade ou que se revelem descabidas para o pleno exercício da

função pública objeto do certame”5. Em suma, “[...] para o acesso a cargos públicos devem

estar estritamente relacionados com a natureza e as atribuições das funções a serem

desempenhadas”6

.

Como se vê, o provimento de cargos públicos na seara brasileira deve adotar a relevância e a qualificação como critérios de justiça distributiva, sobretudo após a questão constitucional posta. Por fim, concluiu o Ministro Fux:

Assim, sem prejuízo de a presença de uma tatuagem não ter aprioristicamente correlação alguma com a capacidade de um cidadão de ocupar um cargo na

3 STF. RE 898.450/SP. Rel. Min. Luiz Fux, 17 de agosto de 2016, p. 83. Disponível em: <http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=311915149&ext=.pdf>. Acesso em: 10 out. 2019. 4

STF. RE 898.450 RG/SP. Rel. Min. Luiz Fux, 27 de agosto de 2015, p. 7. Disponível em: <http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=307689283&ext=.pdf>. Acesso em: 10 out. 2019. 5 STF. RE 898.450/SP. Rel. Min. Luiz Fux, 17 de agosto de 2016, p. 18. Disponível em: <http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=311915149&ext=.pdf>. Acesso em: 10 out. 2019. 6 STF. RE 898.450/SP. Rel. Min. Luiz Fux, 17 de agosto de 2016, p. 18. Disponível em: <http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=311915149&ext=.pdf>. Acesso em: 10 out. 2019.

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399 FID ES, Na ta l, V . 1 0, n . 2 , jul ./no v. 2 01 9.

Administração, é cediço que alguns tipos de pigmentações podem simbolizar ideias, valores e representações inaceitáveis sob uma ótica plural e republicana e serem,

pour cause capazes de impossibilitar o desempenho de uma determinada função

pública 7.

Desse modo, conforme supratranscrito, o STF admitiu, teoricamente, a possibilidade de adoção de critérios que visem a evitar a ofensa a valores fundamentais da Constituição Federal de 1988, como seria no caso de a tatuagem incorporar discursos de ódio, racistas etc. Tal postulado permite a observação de possível caráter comunitarista da Constituição Federal de 1988, porquanto tal vertente filosófica admite a incorporação de soluções jurídicas na proteção de direitos transindividuais (TAVARES, 2010, p. 5460).

Além disso, percebe-se a necessidade de se adotar a justiça complexa na seara dos cargos públicos pátrios, visto que tal perspectiva de justiça permite o acesso democrático e pluralístico dos cidadãos aos certames públicos. Além de que se deve, hoje, vislumbrar não meramente o melhor desempenho na prova – apenas meio – mas selecionar com base no ideal e no mais apropriado ao exercício da função pública – social e pessoal (WALZER, 2003, p. 205).

5.1 Critérios democráticos

Michael Walzer, ao tratar dos critérios de importância na concorrência pública, consoante o posicionamento da corte constitucional consubstanciado no Recurso Extraordinário em tela, restringe-se a investigar o que não se trata de um critério relevante. Assim é a situação de nepotismo. O Supremo, da mesma forma, declarou a irrelevância do tamanho da tatuagem para o exercício do cargo de policial militar.

A corte não foi minuciosa, mas foi um pouco mais além de Walzer: os critérios que visem à proteção dos direitos e garantias fundamentais são relevantes e sua consideração é legítima na atual ordem constitucional. Consequentemente, um candidato a cargo público cuja tatuagem transmita um imaginário flagrantemente contrário aos valores constitucionais pode ser eliminado do certame.

Há ainda que se observar a lei na construção do entendimento de relevância. Assim como só a lei pode prever exame psicotécnico para o candidato estar apto a exercer o cargo

7 STF. RE 898.450/SP. Rel. Min. Luiz Fux, 17 de agosto de 2016, p. 29. Disponível em: <http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=311915149&ext=.pdf>. Acesso em: 10 out. 2019.

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400 FID ES, Na ta l, V . 1 0, n . 2 , jul ./no v. 2 01 9.

público8, só a lei pode definir o que é ou não relevante ao exercício deste (MELLO, 2014, p.

282). Tal leitura decorre do art. 39, § 3º, da Constituição Federal de 1988.

É o caso do Estatuto dos Policiais Militares, que elenca, dentre outros critérios, a

altura como relevante ao exercício do cargo9. Os critérios devem, pois, possuir afinidade com

os valores constitucionais (MELLO, 1993, p. 22).

Vê-se, portanto, que a relevância, apesar de aparentar um conceito vago, no contexto alcançado pela presente análise, pode ser esclarecida. E a relevância não é o único conceito da igualdade complexa que fundamenta a reconfiguração dos certames públicos: os valores fundamentais da Constituição Federal de 1988 convergem com o ideal posto.

5.2 Neoconstitucionalismo e valores fundamentais na Constituição Federal de 1988

O fenômeno do constitucionalismo remonta às revoluções burguesas dos séculos XVII e XVIII, quais sejam: a Revolução Gloriosa, a Revolução Americana e a Revolução Francesa, cujas conquistas desencadearam a observância dos direitos de primeira (individuais), segunda (sociais) e terceira dimensões (transindividuais). Nesse contexto, o neoconstitucionalismo aparece como resultado da migração do plano ético para o plano jurídico, onde

[...] os valores morais compartilhados por toda a comunidade, em dado momento e lugar, materializam-se em princípios, que passam a estar abrigados na Constituição, explícita ou implicitamente. Alguns nela já se inscreviam de longa data, como a liberdade e a igualdade, sem embargo da evolução constante de seus significados. Outros, conquanto clássicos, sofreram releituras e revelaram novas sutilezas, como a democracia, a República e a separação dos Poderes. Houve, ainda, princípios cujas potencialidades só foram desenvolvidas mais recentemente, como o da dignidade da pessoa humana e o da razoabilidade (BARROSO, 2010, p. 250).

No que tange a presente análise, o princípio da isonomia e o princípio do concurso público são espectros que merecem abordagem. Viu-se que a igualdade complexa pretende restringir o predomínio dos bens dentro de sua esfera respectiva, evitando a perpetuação de

8

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula Vinculante n. 44.

9 Art. 11. Para matrícula nos cursos de formação dos estabelecimentos de ensino da Polícia Militar, além das condições relativas à nacionalidade, idade, aptidão intelectual e psicológica, altura, sexo, capacidade física, saúde, idoneidade moral, obrigações eleitorais, aprovação em testes toxicológicos e suas obrigações para com o serviço militar, exige-se ainda a apresentação, conforme o edital do concurso, de diploma de conclusão de ensino superior, reconhecido pelos sistemas de ensino federal, estadual ou do Distrito Federal.

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401 FID ES, Na ta l, V . 1 0, n . 2 , jul ./no v. 2 01 9.

desigualdades. Assim, traça-se um paralelo com o escopo deste artigo: critérios que, irrelevantes ao exercício do cargo, forem utilizados em certames públicos ferem a isonomia e o princípio do concurso público, pois permitem a influência indevida de uma esfera da justiça em outra.

Assim sendo, não se pode impedir um candidato de continuar no certame devido ao tamanho de sua tatuagem, posto que tal critério é impertinente e não se justifica, especialmente na ordem constitucional democrática brasileira, cujo objetivo é a eficiência e a economicidade – princípios que ensejam o melhor desempenho no exercício da função pública.

Esse novo atuar constitucional que, norteado por princípios, preserva as peculiaridades dos povos e, ao mesmo tempo, protege os direitos transindividuais e a atuação pública é também plenamente compatível à justiça complexa e integra o Estado Constitucional (STRECK, 2017, p. 147).

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Observou-se uma dificuldade prática de aplicação da teoria de justiça de Michael Walzer. Contudo, no campo dos cargos públicos, é possível transportar determinadas ideias de justiça distributiva desenvolvidas pelo filósofo, especialmente quanto à possível exclusão de critérios irrelevantes de qualificação, para o exercício das funções públicas no Estado brasileiro, com o objetivo de impossibilitar a conversão de determinados bens sociais de sua esfera respectiva.

Existe precedente da Corte Constitucional que permeia a ideia de qualificação e relevância na seara da igualdade complexa, porquanto se define a necessidade de existência de coerência entre os critérios de seleção para os cargos públicos e o desempenho futuro nestes.

A cobrança de matérias estranhas e irrelevantes ao exercício profissional deste fere o acesso equitativo e a pluralidade que lhe são inerentes, além de permitir o monopólio de bens sociais com consequente conversão destes em outras esferas sociais, propiciando um cenário de desigualdade social, política e econômica.

O mesmo se aplica a critérios estranhos nos estatutos profissionais, notadamente ausente de base legal específica, conforme se viu no que diz respeito à altura dos policiais militares.

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402 FID ES, Na ta l, V . 1 0, n . 2 , jul ./no v. 2 01 9.

A partir de Michael Walzer, é possível considerar que as adoções dos questionáveis critérios trabalhados ao longo do texto permitem considerar que há nesses casos uma influência indevida de uma esfera em outra: no campo dos concursos públicos, a esfera econômica e a esfera da educação poderiam ser determinantes na ocupação dos cargos públicos.

Uma releitura do provimento destes no Brasil é necessária, pois há a necessidade de se conformar o exercício da atividade pública à Constituição Federal de 1988 e, mais ainda, o procedimento adotado para tal fim, porquanto o princípio do concurso público pretende, em regra, selecionar democraticamente os mais qualificados e preparados. No entanto, há que se harmonizar tal escopo ao complexo critério de relevância.

Para tal fim, tendo como fundamento o julgamento do Recurso Extraordinário n. 898.450 SP pelo STF e o escopo walzeriano de impedir a influência indevida de uma esfera da justiça em outra, é plenamente razoável que a lei de regência da profissão, os estatutos, assim como o respeito aos valores constitucionais sejam levados em conta na elaboração dos editais de concurso.

REFERÊNCIAS

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PROPER PUBLIC OFFICE FILLING ACCORDING TO MICHAEL WALZER: ANALYSIS IN THE BRAZILIAN CONTEXT

ABSTRACT

The filling of public office and the criteria adopted for this purpose have been debated since the Ancient History. Today, the execution of public contests has been consolidated as an predominant criterion. However, in the 21st century, there is a profound deviation of purpose in the requirements and procedures adopted by public contests in Brazil. Thus, it was intended a foray into the complex equality as an

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405 FID ES, Na ta l, V . 1 0, n . 2 , jul ./no v. 2 01 9.

optimization factor in this field, in view of a theory of justice proposed by communitarian Michael Walzer and its compatibility with the Federal Constitution of 1988.

Keywords: Complex equality. Constitutional law. Michael Walzer. Public contest. Public office.

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