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UMA DISCUSSÃO HISTORIOGRÁFICA SOBRE A ESCRAVIDÃO NEGRA NO BRASIL A PARTIR DA NARRATIVA LITERÁRIA DE “PAI JOÃO”

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Academic year: 2020

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UMA DISCUSSÃO HISTORIOGRÁFICA SOBRE A ESCRAVIDÃO

NEGRA NO BRASIL A PARTIR DA NARRATIVA LITERÁRIA DE

“PAI JOÃO”

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Cristiane Azeredo de Oliveira Santos2 Rachel Romano dos Santos3

Resumo: O artigo baseia-se no texto “Outras histórias de Pai João: conflitos

raciais, protesto escravo e irreverência sexual na poesia popular, 1880 – 1950”,

escrito pela historiadora Martha Abreu, tendo em vista discutir a escravidão negra no Brasil a partir do uso de narrativas literárias como fonte histórica. Pretendemos uma reflexão sobre esse texto, alinhando a abordagem da autora à historiografia da década de 1980 que versa sobre o tema e cujo foco recai na visão dos escravos negros como sujeitos históricos, apesar da inegável violência e opressão impostas pelo sistema.

Palavras-chave: Escravidão Negra – Historiografia – Narrativa Literária –

Negociação – Conflito.

1O artigo integra um trabalho proposto na disciplina obrigatória “Percursos e enunciações

históricas e historiográficas da escravidão negra no Brasil”, que integra o Curso de Pós-Graduação em Ensino de História da África, nível especialização, promovido pelo Colégio Pedro II.

2 Servidora técnica-administrativa do Colégio Pedro II. Graduação em História pela UFRJ e

estudante do Curso de Pós-Graduação Lato Sensu de Ensino de História da África do Colégio Pedro II. E-mail: crissantos1982@hotmail.com.

3 Professora de História da rede particular de ensino. Graduação em História pela UFRJ, Mestre

em História Social pelo PPGHIS / UFRJ. Estudante da pós-graduação Lato Sensu de Ensino de História da África do Colégio Pedro II. E-mail: romano.rachel@hotmail.com.

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O presente texto, elaborado e escrito a quatro mãos, parte da análise da

obra “Outras histórias de Pai João: conflitos raciais, protesto escravo e

irreverência sexual na poesia popular, 1880 - 1950” (2004), da historiadora Martha

Abreu4, tendo em vista refletir sobre as novas perspectivas historiográficas acerca

da “Escravidão negra no Brasil”. Nosso foco recai na utilização, pela autora, da literatura como fonte histórica e, em especial, na literatura sobre a personagem “Pai João”, como testemunho de relações socioculturais construídas pelo e no sistema escravista. Ainda, com base na obra, pretendemos discutir, resumidamente, como a historiografia brasileira do século XX (re)pensou a escravidão de africanos e seus descendentes no âmbito da sociedade brasileira.

O texto de Martha Abreu, Outras Histórias de Pai João, tem como foco a análise dos discursos literários sobre “Pai João”, personagem presente em várias poesias, canções e contos registrados por folcloristas de narrativas orais, entre 1880 e 1950. A partir da análise dessas fontes literárias, cujas histórias buscam recuperar os micro enredos cotidianos da população negra e abolicionista, a autora explora as possibilidades de atuação dos negros e mestiços, escravos e libertos nesse período.

Cabe aqui uma reflexão sobre as estratégias metodológicas da autora para a análise das narrativas literárias como fonte histórica. As relações entre literatura e história integram um campo de debates teóricos, apresentando-se no bojo de uma série de constatações relativamente consensuais, que caracterizam a nossa contemporaneidade na transição do século XX para o XXI: a crise dos

4 O referido texto foi publicado na íntegra na Revista Afro-Ásia, número 31, no ano de 2004,

vinculada a Editora da Universidade Federal da Bahia (UFBA), e integra uma pesquisa maior financiada pelo CNPq.

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paradigmas de explicação da realidade, o fim das crenças nas verdades absolutas legitimadoras da ordem social e, por fim, a interdisciplinaridade. Diante dessa perspectiva, podemos afirmar que a História e a Literatura são formas distintas, porém, próximas, de representar a realidade e de lhe atribuir/desvelar sentidos, e se pode dizer que estão mais próximas do que nunca.

Segundo Sandra Pesavento (2003) o entendimento da História como narrativa do passado vincula-se ao conceito de representação, que materializa a ideia de uma substituição, ou ainda, de presentificação de uma ausência. Assim, nos sistemas de representação, construídos pelos homens para atribuir significados ao mundo, aos quais se associa o imaginário social, as narrativas históricas e literárias teriam o seu lugar como formas ou modalidades discursivas que tem sempre como referência o real, mesmo que seja para negá-lo, ultrapassá-lo ou transfigurá-lo. Entretanto, a História é regida pela relação que se

estabelece com seu objeto, e seu objetivo reside em narrar o

vivenciado/acontecido, buscando proximidades possíveis com o passado. Esse aspecto sublinha uma diferença substancial entre a História e a Literatura. Enquanto a primeira se constrói e reconstrói, continuamente, como campo de conhecimento e disciplinar, de acordo com abordagens teóricas e procedimentos metodológicos, a segunda aponta para formas de expressão artística das sociedades humanas, que desvelam marcas de diferentes tempos, e, por isso, podem ser utilizadas como testemunhos históricos.

Nesse sentido, torna-se importante destacar o fato de que a produção da obra literária está associada ao seu tempo, refletindo em suas narrativas angústias e sonhos de agentes sociais contemporâneos a sua criação, e

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mesclando elementos de ficção às percepções e vivências possíveis das realidades existentes no momento da criação. Como as narrativas literárias lidam com ações sonhadas, com sentimentos compartilhados, com intermediações entre o real e as aspirações coletivas, elas constituem fragmentos do mundo e delatam, sob caminhos diferentes do historiador, diversos contextos histórico-sociais a cada tempo.

As premissas acima mencionadas podem ser observadas nos inúmeros versos, contos e cantos referentes ao Pai João. Os anseios, desejos e expectativas são aspectos analíticos cruciais no que diz respeito ao entendimento dos relatos. Por sua vez, a temporalidade da narrativa evidencia os (res)sentimentos que perpassavam a visão de mundo e as ações dos sujeitos históricos que construíram tais relatos.

O historiador Jacques Le Goff (1976, pp. 71–76) ao definir alguns conceitos de história das mentalidades esclarece que é nas profundezas do cotidiano que se capta o estilo de uma época e que os documentos literários e artísticos são fontes privilegiadas quando consideradas como histórias das representações dos fenômenos objetivos. Ou seja, se consideradas como histórias das representações da realidade, as fontes literárias podem e devem ser utilizadas como fontes históricas. Assim podemos compreender que as narrativas literárias dizem respeito a um fenômeno estético, portanto, a uma possibilidade de registro do movimento que realiza o homem na sua historicidade, suas inquietações e visões de mundo. Isso tem permitido aos estudiosos assumir as narrativas literárias como territórios de pesquisa.

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No que se refere ao texto de Martha Abreu, sua estrutura revela-se enquanto modelo característico da academia de História, possuindo enorme quantidade de informações nas notas de rodapé, citações de fontes e fontes secundárias, bem como uma bibliografia discutida e franca. Como ponto de partida, a autora trabalha os conceitos das três escolas historiográficas e suas diferentes visões acerca das relações raciais e sociais entre os personagens da escravidão no Brasil.

Nesse sentido, o sociólogo Gilberto Freyre figura como representante da primeira geração de estudiosos sobre o tema, no âmbito do qual enfatiza-se a leitura acerca da benevolência senhorial e das relações harmoniosas sociais e culturais/sexuais que foram criadas entre negros escravos e elites proprietárias. A segunda geração representa a abordagem combatente da leitura freyriana, enunciada por Roger Bastide e Florestan Fernandes que propuseram um entendimento da escravidão negra fundamentada, primordialmente, em métodos opressivos e/ou práticas de violência implacáveis. Por fim, temos a abordagem de João José Reis (1989), Eduardo Silva (1989), Sidney Chalhoub (1990), Silvia Lara (1995) e Robert Slenes (1991) que, no geral, evidenciaram a existência de relações sociais menos rígidas e estáticas entre senhores e escravos, dentro de uma proposição histórica que sublinhou a presença de negociações, adequações e conflitos como estratégias de resistência e luta dos negros na defesa de suas matrizes identitárias.

Como fonte primária, a historiadora buscou revisar os contos, cantos e poesias transcritas pelos próprios folcloristas, na tentativa de evidenciar elementos e indícios que comprovem “o lado Zumbi” (ABREU, 2004, p.257) da

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personalidade de Pai João, ou seja, uma personalidade rebelde e inconformada do negro personagem e dos negros escravos que viveram no período tratado, a saber, finais do século XIX. No que se refere às fontes secundárias, Martha Abreu utiliza as leituras de diferentes folcloristas, indo desde Arthur Ramos (1935), que apreende os contos de Pai João como evidências da resignação da personagem, até Théo Brandão, autor que escreve em 1949 e elabora uma leitura acerca de um Pai José astuto e resistente diante da escravidão.

O texto foi dividido em cinco partes, cujos temas muitas vezes se entrelaçam e retomam uns aos outros. Na primeira parte, “Pai João na avaliação dos folcloristas” (ABREU, 2004, p.239), a autora faz um levantamento dos folcloristas que analisaram a personagem, bem como suas principais conclusões opinativas. Ao longo dessa apresentação, Martha Abreu retorna aos contos e cantos, reproduzindo-os na ortografia e construção originais, revisando as avaliações e interpretações dos folcloristas citados. No segundo segmento do texto, intitulado “Mas quem (e quando?) cantava ou contava as histórias de Pai João?” (ABREU, 2004, p. 250), a autora apresenta as hipóteses dadas até então pelos folcloristas, bem como aquelas de Arthur Ramos (1935) e Câmara Cascudo (1984) acerca da origem étnica, cultural e regional dos cantos e contos sobre a referida personagem literária. Em especial, recorre a autores mais recentes como Edison Carneiro (1957) e Théo Brandão (1949), cujas obras foram publicadas na metade do século XX.

Na terceira parte do artigo, “Os possíveis amores entre negros e sinhás” (ABREU, 2004, p.258), foram discutidos, especificamente, os contos em que a personagem “Pai João” narra suas relações amorosas com sua senhora,

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ocupando muitas vezes o lugar do senhor em sua propriedade, invertendo os papeis sociais envolvidos na trama. No breve e quarto segmento do texto, Martha Abreu vai tratar das “Dimensões de Pai João” (ABREU, 2004, p.264), em que vai mapear as possíveis origens do estilo de letra, grafia, escrita e ritmo que compõem os registros das histórias de Pai João, bem como sua circulação no país e seus sentidos vinculados ao contexto abolicionista em que se inseria. Por fim, o quinto segmento, “Um parente próximo norte-americano” (ABREU, 2004, p.269), a autora realiza algumas comparações entre o Pai João no Brasil e personagens similares presentes na literatura estadunidense e caribenha.

Ao justificar a necessidade de reavaliação dos contos, cantos e poesias de Pai João, a autora parte do título de um dos capítulos da obra Negociação e conflito (1989) de Eduardo Silva e João José Reis, “Entre zumbi e Pai João”, questionando a ausência de estudos sobre o segundo personagem do título. Para Martha Abreu, se Zumbi fora desmistificado e humanizado pela historiografia diversas vezes, visando a construção da imagem e memória de uma personalidade menos mítica, heroica ou mesmo demonizada; era preciso fazer o mesmo pela figura de Pai João. Isso porque, ao contrário do rebelde guerreiro Zumbi, os folcloristas consagraram a figura de Pai João como um negro resignado, medroso, sofredor e submisso à dominação cristã, senhorial e branca.

Pai João – ou Pai José, ou Pai Francisco, além de outros nomes que este

personagem recebeu nas diferentes partes e em diferentes épocas do Brasil –

não deve ser mais compreendido nos moldes da antiga historiografia freyriana, na qual a ideia de benevolência da escravidão implicou na existência de relações raciais harmoniosas e de submissão do escravo no Brasil. Nem mesmo pode ser

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enquadrado nos moldes da escola sociológica de Florestan Fernandes e Roger Bastide, que propunha uma visão da escravidão mantida estritamente às custas de uma dominação violenta e implacável. Porquanto a revisão do “Folclore de Pai João” (Ramos, 1935) deve garantir sua entrada nas novas leituras culturais e políticas que enfatizam a resistência, rebeldia, conflito, dominação, subversão e negociação no cotidiano dos escravos negros no Brasil até o século XIX.

Assim, o texto de Martha Abreu propõe uma revisão e reversão crítica da figura literária de Pai João. Ao invés de um ingênuo e submisso Pai João, trata-se de sublinhar a diversidade de possibilidades na interpretação do caráter de Pai João nos contos, cantos e poesias do século XIX, principalmente, no que se refere aos elementos que compõe uma identidade satírica, rebelde e astuta. Em especial, a autora se vale do argumento revisionista em que esses contos foram transcritos pelos folcloristas, período de intenso debate, luta e avanços políticos dos negros e mestiços pelas razões abolicionistas, situação que garante o tom e a intenção por trás das palavras agregadas ao personagem Pai João.

Dessa forma, a autora defende que a revisão do “Folclore de Pai João” (Ramos, 1935) deve garantir seu alinhamento nas novas leituras culturais e políticas que vêm buscando desconstruir as abordagens historiográficas tradicionais acerca do papel do negro na sociedade escravista, em especial, durante os debates abolicionistas nos finais do século XIX. Este alinhamento é percebido no esforço em enfatizar a voz, exigências e demandas da população negra, mestiça, escrava e liberta no país a partir das fontes utilizadas pela autora. A imagem consagrada sobre a personagem literária “Pai João” é originária dos escritos e análises dos folcloristas brasileiros entre 1880 e 1950. A maioria

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dos folcloristas concluiu que a personagem “Pai João” revelava um sujeito submisso, ingênuo, fiel e agradecido pelas benevolências do seu senhor; relação oposta a figura mítica e heroica de Zumbi dos Palmares. No entanto, a autora observa que os mesmos folcloristas muitas vezes sinalizaram expressões satíricas e irônicas desta personagem nas narrativas orais, podendo revelar uma “espécie de simbólica ‘vingança do negro’” (ABREU, 2004, p. 238), conforme Arthur Ramos, capaz de revelar uma inédita rebeldia a condição de escravidão.

Em nova leitura e análise feita das narrativas sobre Pai João, a autora pôde confirmar as evidências de ironias, sátiras, resistência, ambição, audácia e inteligência da personagem. Foi a partir desses indícios de atuação social que Martha Abreu levantou suas hipóteses de uma personagem, que foi representativa dos homens negros e idosos do século XIX, fortificada e resistente à dominação branca senhorial, enquadrando a revisão sobre a figura do Pai João nas tendências historiográficas da negociação negra e mestiça nas dinâmicas cotidianas da escravidão no Brasil.

A autora, ainda, investiga a origem das canções sobre o Pai João, encontrando forte tendência nas tradições africanas do lundu, baseando-se nos estudos do estilo feitos por Rossini Tavares de Lima, na década de 1940. Sua investigação perpassa outras tantas hipóteses de diversos autores, em especial, os folcloristas, para saber as raízes deste tipo de literatura no Brasil. Apesar dos claros indícios da natureza africana e afro-brasileira, houve quem dissesse tratar-se de uma síntetratar-se cultural de batratar-se portuguesa e estribilho afro-brasileiro, conforme Mario de Andrade (1963), ou quem nem mesmo reconhecesse tais

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composições como produzidas por pessoas negras, conforme Câmara Cascudo (1984) e Edison Carneiro (1957), apesar do foco da narrativa nas letras.

Por fim, Martha Abreu realiza uma interessantíssima comparação entre personagens similares ao Pai João brasileiro nas literaturas norte americana e caribenha, em especial, Uncle Tom (1972), Uncle Remus (1880) e Sambo (1986). Os quatro personagens se aproximariam em sua consagração folclorista enquanto resignadas, sofridas e ingênuas, além de seus contos terem sido transformados em literatura infantil no século XX; mas se afastariam no quesito protagonismo das histórias contadas. Nesse sentido, Pai João e Sambo seriam os personagens épicos e heróis de seus próprios enredos narrados oralmente no passado, além de bastante satíricos e irônicos no seu modo de falar. No entanto, para a autora, Pai João se destaca dos demais, pois tendo sido criado por negros e mestiços, escravos ou libertos, evidenciaria maior resistência e resiliência do que seus parentes norte-americanos, que estiveram sob a influência de escritores brancos, ainda quando abolicionistas.

O texto de Martha Abreu contribui para a reflexão historiográfica recente ─ já desenvolvida e trabalhada por Sidney Chalhoub (1990), João José Reis (1989), Robert Slenes (1991), Silvia Lara (1995) dentre outros, que colocam o negro, escravo ou forro no centro dos estudos sobre escravidão, relativizando a submissão dos cativos e a implacável dominação branca. Nesse sentido, enfatizamos a relevância dessa abordagem de estudiosos sobre o tema em pauta, ao perceberem a construção histórica de um campo de negociação do africano e afro-brasileiro junto a comunidade branca e senhorial, ainda que limitado pela violência inata e inseparável do regime escravista.

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Em nossa leitura, acreditamos ser bastante relevante recuperar as narrativas folclóricas do personagem literário de Pai João, na tentativa de relê-lo a partir da nova abordagem historiográfica acima apresentada, centralizando sua análise na personalidade e resistência dos homens negros, a quem aquele representava nos contos, cantos e poesias. Nesse sentido, podemos ampliar o entendimento sobre o processo de negociações, conflitos e adequações que marcaram, individual e/ou coletivamente, as lutas da população negra por espaços na sociedade brasileira, considerando os tempos da escravidão e o da pós-abolição.

Como contribuição para as reflexões sociais atuais, é necessário relativizar as consagradas versões das elites políticas e econômicas do país acerca da escravidão e do negro, questionando o seu lugar de autoridade. Para além da escrita do passado elaborada a partir de paradigmas eurocêntricos e cientificistas do século XIX, nossa formação como Estado-Nação teve a contribuição de negros, índios e imigrantes pobres que, com muito labor, fizeram história e construíram uma identidade múltipla de Brasil de maneira tão forte e participativa quanto o elemento branco português. Este, nas narrativas canônicas da nação brasileira, é superdimensionado em detrimento do “Outro”.

Segundo Manoel Salgado (1988), ao definir a Nação brasileira enquanto representação da civilização no Novo Mundo, esta mesma historiografia definiu aqueles que internamente ficariam excluídos deste projeto por não serem portadores da noção de civilização: índios e negros. As principais instituições tradicionais responsáveis por definir e justificar uma identidade cultural genuinamente brasileira, como por exemplo o Instituto Histórico e Geográfico

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Brasileiro (IHGB), hierarquizavam os seres humanos entre grupos superiores e inferiores, legitimando à luz da teorias racistas e evolucionistas do Oitocentos a hegemonia dos brancos, enquanto as restantes, negra e indígena, trouxeram meras contribuições pontuais.

No entanto, podemos perceber que os brancos nunca foram maioria numérica no país, sempre superados pela quantidade de negros escravizados e ou indígenas da terra. Nesse sentido, afirmar a superioridade branca por outros vieses acabou por confirmar a predominância de uma cultura portuguesa arrebatadora, autoritária e vigorosa, que impediu a legitimação das culturas de povos não brancos. Diante dessa perspectiva, podemos observar o silenciamento histórico dessas minorias e de outros grupos sociais que, apesar de serem representativos numérica e culturalmente, não estavam inseridos dentro dos ideais e padrões imaginados e elaborados para a formação da nação brasileira.

As novas leituras sobre escravidão africana, propostas pelos historiadores a partir da década de 1980, que enfatizam a posição dos cativos enquanto sujeitos políticos nas relações cotidianas com o senhorio, geraram o questionamento da visão consagrada acerca da predominância cultural branca. A nova historiografia passa, então, a problematizar a passividade dos escravizados, apresentando um novo olhar para aqueles que até então tinham sido silenciados nas narrativas canônicas do passado nacional brasileiro. Nesse sentido, o reconhecimento maior da ação e participação cultural afro-brasileira na formação da identidade nacional abre a possibilidade para a recuperação crítica das demandas afro-referenciadas, tendo em vista a luta e a resistência em prol da

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construção de uma sociedade mais educada, democrática, representativa, plural, que seja capaz de respeitar e integrar o Outro.

Referências bibliográficas

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SALGADO, Manoel. Nação e Civilização nos Trópicos: IHGB e o Projeto de uma História Nacional. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, 1(1) 1988.

A historiographical discussion on the black slavery in Brazil

through the literary narrative of “Pai João”

Abstract: The article is based on a text entitled “Outras histórias de Pai João:

conflitos raciais, protesto escravo e irreverência sexual na poesia popular, 1880 – 1950”, written by the historian Martha Abreu, in order to address the black slavery in Brazil through the use of literary narratives as a historical source. The authors

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aims at offering some discussion upon the aforementioned text, regarding the historiographical approaches of the 1980s onward which encompass the theme of slavery connected to the relevant vision of the slaves as historical subjects, despite the undeniable violence and the oppression imposed by the system.

Keywords: Black Slavery – Historiography - Literary Narrative – Negotiation –

Conflict.

Recebido em 14/06/2016. Aprovado em 15/07/2016.

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