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O PROCESSO DE REORGANIZAÇÃO DA PROPRIEDADE DA TERRA: CABOCLOS E A TENTATIVA DE PROTEGER SEU SUSTENTO (1876 e 1879)

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O PROCESSO DE REORGANIZAÇÃO DA PROPRIEDADE DA TERRA: CABOCLOS E A TENTATIVA DE PROTEGER SEU SUSTENTO (1876 e 1879)

Kalinka de Oliveira Schmitz (Universidade do Vale do Rio dos Sinos/Doutoranda)

Resumo

O projeto de colonização das terras sul-rio-grandenses é um tema muito estudado, dado o impacto dele no desenvolvimento estadual. Como consequência do aquecimento do mercado da terra pela especulação para a criação de núcleos coloniais, além da aplicação da Lei de Terras de 1850, o Estado acompanhou um intenso processo de reorganização agrária durante a segunda metade do século XIX e as primeiras décadas do século XX. Ocorre que o processo de privatização agrária, conforme se expande, afeta também populações que já viviam na terra desde muito tempo; os caboclos, sem condições de regularizar suas posses, foram sendo prejudicados e marginalizados desse processo. O interesse em terras, dada a sua rápida valorização, era aumentado ainda mais em regiões com presença de ervais; é o caso do município de Santo Antonio da Palmeira, onde havia grande presença de ervais públicos em seu território. Em sua maioria encontrados em espaços públicos, eram fonte de renda para caboclos que possuíam suas posses nas proximidades. Assim, a privatização da terra impactaria em grande medida esse grupo; como forma de impedir ou ao menos retardar esse processo, são criados dois abaixo-assinados (1876 e 1879), por moradores de duas regiões desse município, endereçado às autoridades políticas, sobre os motivos que tais áreas deveriam permanecer públicas, utilizando ainda, argumentos econômicos e geopolíticos como embasamento de seus pedidos. Analisaremos então, essas estratégias utilizadas pelos caboclos para defenderem as áreas ocupadas dos interesses de grandes proprietários atraídos pela valorização da terra.

Palavras-chave: Privatização da terra; caboclos; abaixo-assinados. Financiamento: Bolsista CAPES.

Introdução

Ao longo do século XX e ainda atualmente, podemos observar o surgimento e luta de diversos grupos em busca da propriedade da terra e/ou da defesa das terras ocupadas. Com diferentes trajetórias, que culminam na necessidade de se organizar como grupo para pleitear uma terra, para chamar de sua, e tirar dela o sustento para si e sua família, enfrentam a resistência daqueles que estão ocupando as terras requeridas, ou que possuem interesse em não permitir que as terras sejam destinadas àqueles que lutam por ela. Para além das ações dos interessados, o governo

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desempenha papel importante nesses casos; acionado para mediar e decidir sobre a área em discussão – juntamente com a justiça –, pode ser influenciado por diversos fatores e pressões na tomada da decisão.

Os problemas de acesso à terra e, principalmente, a proeminência de algumas regiões nas disputas pela terra, em comparação à outras, tem sua origem nos séculos anteriores, principalmente no século XIX. É nesse período que a questão agrária no Rio Grande do Sul sofreu as maiores alterações, até então, resultado de legislações agrárias, movimento de imigração e colonização, que acabaram impactando em grande medida as populações que já viviam no Estado.

Isso porque, a segunda metade do século XIX é marcada, no Rio Grande do Sul, como um período de mudanças no que diz respeito à propriedade da terra. É nesse período que surge a primeira legislação agrária do Brasil, transformando a terra em um bem capitalizável e definindo os meios pelos quais era legal a aquisição de propriedades. Para a Lei de Terras de 1850, a terra só poderia ser adquirida por meio da compra, doação ou herança1, ficando criminalizadas as ações de apossamento, que ocorriam até então. Para as áreas já ocupadas, quando tal lei fora criada e promulgada, seriam legitimadas aquelas em que se comprovassem ocupação mansa e pacífica, com moradia habitual e cultura efetiva2.

Anteriormente à Lei de Terras de 1850, havia um vazio sobre a regulamentação da propriedade da terra, abrindo espaço para que propriedades fossem formadas através do apossamento de áreas. Não havendo instrumento legal por escrito, e havendo a necessidade de se regular tal questão, acabavam surgindo acordos verbais e orientações a serem seguidas, para o reconhecimento dos apossamentos.

Ainda, há de se destacar que, mesmo durante o período em que vigia, no Brasil, a lei sesmarial portuguesa, tal legislação não abrangia todas as formas de ocupação da terra; surgia, então, esses entendimentos verbais, que com o passar do tempo, se imbuíam de caráter legal; um costume regulatório de questões pertinentes à

1 BRASIL. Lei nº 601, de 18 de setembro de 1850. In: Coletânea da Legislação das Terras Públicas do

Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 1961.

2 BRASIL. Artigo 5º. Lei nº 601, de 18 de setembro de 1850. In: Coletânea da Legislação das Terras

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população do mundo rural brasileiro, tal como havia na Inglaterra, antes das leis de cercamento, como estuda E. P. Thompson (1998).

O costume, de acordo com Thompson, é caracterizado por não possuir versão escrita e, por isso, possuir diferenças entre as regiões de um mesmo país. Ao mesmo tempo em que ele reconhecia os direitos costumeiros dos habitantes pobres de cada região, poderia, também, criar empecilhos ao exercício de tais direitos comuns. Nesse cenário, haveria alguma ordem e garantia de acesso da população pobre a produtos essenciais, como a fontes de água, madeira e campos para seus animais.

Tal dependência dessa população a áreas de uso comuns fez com que, ao se iniciar o processo efetivo de privatização com o cercamentos delas, as pessoas que viviam ali fossem profundamente afetadas. Impactada por mudanças extremamente prejudiciais ao seu modo de vida, a população pobre se revoltou, dando início a vários conflitos entre diferentes grupos com interesses distintos. À parte desse grupo que foi prejudicado no processo, os proprietários de tais áreas saíram ganhando com o avanço de um capitalismo agrário, vetor de mudanças na realidade rural vivida até então.

O cenário pré-capitalização implica na forma como essas populações rurais foram impactadas. Os camponeses franceses sofreram, também, alterações no modo de trabalhar a terra e o entendimento de propriedade (BLOCH, 2001); contudo, por trabalharem a terra de forma particular até as colheitas, e depois abrir para uso comunitário, para a alimentação de animais, conforme estuda Marc Bloch, o impacto do capitalismo agrário, que havia sido total na Inglaterra estudada por Thompson, foi, na França, impossível. Tal diferença ocorre, pois, os camponeses ingleses foram descartados por não terem nenhum vínculo com a terra utilizada, ao contrário dos franceses, que possuíam arranjos agrários distintos.

Dito isso, é evidente que as alterações ocorridas no Brasil são particulares das condições aqui encontradas. No Rio Grande do Sul, o processo de capitalização do espaço agrário impactou em diferentes medidas a população livre e pobre. Ao mesmo tempo em que buscavam meios de defender seus direitos de uso e/ou permanência em terras devolutas ou de uso comum, posteriormente, durante a República,

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criaram-se projetos que visavam a incorporação dos caboclos em projetos públicos de colonização, como maneira de impedir uma constante marginalização e movimentação desse grupo.

Ainda que a criação e organização de movimentos sociais de luta pela terra, como conhecemos hoje, surja ao longo do século XX, veremos, neste trabalho, que já no século XIX era possível observar movimentações incipientes de moradores pobres na defesa da terra de onde tiravam o ganha pão. Além do claro propósito de manter o direito de viver e explorar as terras em questão, os moradores partícipes dos abaixo-assinados que serão analisados, demonstram certo conhecimento das leis e seus subterfúgios para, ao menos, retardar o avanço da privatização agrária, bem como noções de questões socioeconômicas, que são usadas para embasar seus pedidos.

A Lei de Terras de 1850 e a colonização no Rio Grande do Sul

Os problemas envolvendo diferentes interesses quanto ao uso e propriedade da terra no Planalto rio-grandense remontam, ainda, ao primeiro momento de apropriação efetiva da terra na região, a partir da década de 1820. Enquanto em um primeiro momento essa apropriação foi majoritariamente das áreas de campo, para serem usadas na criação de gado, na segunda fase, de acordo com Zarth (1997), o movimento de apropriação passou a abarcar também áreas de matas e, consequentemente, abarcou os ervais existentes na região.

Ocorre que os ervais “eram considerados públicos e assim administrativos e explorados ao longo do século XIX pela municipalidade” (Zarth, 1997, p. 39); levando isso em consideração, o avanço de latifundiários, criadores de gado, sobre zonas de mata e de ervais fez eclodir diversos conflitos entre as partes interessadas nos ervais. Nesses primeiros movimentos de reorganização agrária na região, não havia ainda legislação específica sobre a questão de terras, o que fazia com que houvesse uma grande bagunça e insegurança quanto à situação das terras, como defender seus interesses ou regularizar tais posses. Além da inexistência de legislação agrária no Brasil desde o fim da lei sesmarial – decorrente da independência brasileira frente à

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Portugal –, a balança pendia para os interesses latifundiários, por conta de suas redes de relações, geralmente próximas a pessoas influentes dentro dos órgãos que cuidavam de tais questões, e, ainda, do poder econômico que acompanhava a posição social desses interessados.

Em contraposição a esses indivíduos, detentores de poder econômico e social, se encontravam pequenos posseiros, homens livres pobres, que viviam de apossamentos ilegais e da extração da erva-mate para tirar o sustento para si e sua família. Pessoas que não possuíam os atributos dos seus concorrentes pela terra, nem social e nem econômicos, mas que, mesmo assim, procuravam meios para defender as terras que lhes garantiam o sustento.

Enfrentaram, para além do interesse dos latifundiários em terras para expandir a criação de gado, o aumento do interesse pelas áreas de mata que poderiam ser utilizadas para a criação de núcleos coloniais, um cenário que cada vez se aproximava mais da região. A colonização, que avançava em direção à essa região, se tornava uma boa fonte de renda para aqueles que investissem em tal nicho de negócios, por ser de baixo risco e constante valorização do preço por m². Para adentrar nos negócios de venda de lotes de terras, os latifundiários precisariam de terras mais propícias à agricultura do que os campos usados para a pecuária; é então que voltam sua atenção para áreas de matas, mais férteis que a maior parte das terras apossadas, até então. Esse interesse é concomitante ao interesse da exploração da erva-mate, importante produto para a economia local, e que era importante fonte de renda para a população livre pobre.

Junto a esses interesses de expansão, por parte dos latifundiários – grande parte resultado de apossamento –, ocorre a criação da Lei de Terras de 1850, primeira legislação voltada para o campo no país e imagem do avanço do capitalismo agrário no Brasil. Os impactos dessa legislação puderam ser observados em terras rio-grandenses quando o interesse de fazendeiros se volta para a região de matas do Planalto, antes deixada em segundo plano, nas sombras do interesse pelas áreas de campo.

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Ocorre que, no Planalto, havia diversas áreas de uso comum, marcadamente, áreas cobertas por ervais, quer eram importante parte da renda de pequenos posseiros extrativistas que viviam nas áreas de mata. O avanço da privatização de áreas de uso comum, contendo ervais, prejudicava a subsistência desse grupo, uma vez que, quando determinada área era privatizada, era cerceada a eles sua fonte de renda, além de serem expulsos das áreas que viviam desde muito tempo (CHRISTILLINO, 2008).

Nos anos subsequentes à criação da Lei de Terras, Cruz Alta – município do qual Palmeira se emancipa em 1874 – passa a trabalhar para que algum núcleo colonial fosse criado em suas terras. Com a capitalização da terra, havia o interesse de particulares em conseguir lucros provenientes do mercado, que seria aberto para atender as necessidades da expansão da colonização. Por seu turno, a municipalidade pleiteava por colonos para sanar os problemas de abastecimento de alimentos, visto a pouca oferta de alimentos básicos, como milho, feijão e mandioca (NEUMANN, 2016). A constante defesa da necessidade e importância de contar com colonos tinha como consequência direta a desqualificação do elemento nacional: o pequeno posseiro, considerado como incapaz de trabalhar a terra e prover o município de alimentos.

Tal busca por colonos, e a desconsideração pelo elemento nacional que vivia no município é observada também em Palmeira, a partir de 1874. O jovem município possuía problemas de organização da sua estrutura fundiária, com predominância de posses ainda não legitimadas e de ervateiros. Os ervateiros, ainda que vivessem em apossamentos ilegais e não tivessem produção de alimentos relevantes para o mercado local, possuíam importante papel econômico, através da extração de grandes quantidades de erva-mate, que eram destinadas para o mercado local e para exportação, contando ainda com o pagamento de taxas para a municipalidade, a fim de ter a permissão para a exploração do produto.

Por contar com certa organização da sua estrutura fundiária, Cruz Alta não teve sua organização fundiária muito alterada, com as Colônias não impactando tanto, negativamente, os interessados na propriedade da terra, pelo contrário, os

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proprietários de terras observaram a valorização de suas terras com a criação de colônias próximas. O mesmo não pode ser dito sobre esse processo em Palmeira.

Enquanto em Cruz Alta, que possuía um panorama fundiário mais organizado, a preparação para o recebimento da colonização ocorreu com o apoio público, fazendo com que os fazendeiros observassem a valorização de suas terras. Em Palmeira, por seu turno, devido à desorganização observada, o processo de alterações fundiárias foi mais conturbado. Para que a criação de núcleos coloniais fosse viabilizada, foi necessário promover uma desocupação das áreas visadas, desalojando o lavrador nacional e o ervateiro (NEUMANN, 2016), para, só então, criar as Colônias. Tal processo desencadeou conflitos e movimentos de resistência às mudanças, o que, de acordo com Neumann, acabou por afastar os pretendentes colonos.

Para se conseguir o acesso à terra nesse cenário caótico, era necessário fazer uso da força e violência, incluídas aí a influência militar e ou burocrática daqueles interessados. Neumann ainda destaca que tal cenário conflituoso não passava despercebido por pessoas externas que, porventura, passassem por Palmeira a serviço; um exemplo disso é a percepção registrada por Maximiliano Beschoren, agrimensor que passou pela região realizando trabalhos entre 1877 e 1880 e entre 1882 e 1884 – inclusive sendo citado em um dos documentos que analisaremos –, que destaca que a região permitia viver muito bem ali, desde que se isolasse de intrigas, caso contrário, não seria possível viver em paz ali (BESCHOREN, 1989 apud NEUMANN, 2016).

O avanço da privatização e a movimentação para a defesa da terra de uso comum

Ainda que a legislação de 1850 fosse voltada, principalmente, para o processo de privatização (capitalização) das terras, ela atendia, também, sobre outras possibilidades envolvendo a terra. Exemplo disso é que, ainda que respaldasse o processo de privatização de terras, a legislação também garantia, através do inciso 4

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do artigo 5º, que campos de uso comum seriam assim conservados em toda a sua extensão, enquanto não fosse criada lei que se contrapusesse a essa determinação3.

Partindo desse trecho da legislação, quando medições começaram a se aproximar de áreas públicas, onde havia apossamentos de caboclos – na região de Campo Novo –, estes se organizaram em um abaixo-assinado, no qual lembravam que tais áreas pertenciam ao poder municipal, devendo, por isso, continuar como tal. Argumentou-se, ainda, que, ao manter tal área como de uso comum, a câmara municipal não sairia no prejuízo, por continuar a receber o pagamento de taxas pelo direito de explorar a erva-mate ali encontrada; o que não ocorreria com a privatização desse espaço. A manutenção do status de área de uso comum, ainda, descartaria a necessidade de parte da população de se deslocar em busca de novo lugar para se assentar.

Caso o processo de privatização dessa área avançasse, famílias que viviam a mais de 20 anos na área seriam forçadas a se retirarem e procurarem novas terras para se assentarem. O impacto, porém, não seria sentido apenas nas famílias que seriam expulsas. Junto aos valores pagos à municipalidade, pelo direito de explorar os ervais públicos, os ervateiros alegavam que das áreas em questão eram fabricadas milhares de arrobas do produto para exportação4, que ocupavam importante lugar na economia municipal da época.

A privatização das áreas que continham os ervais seria prejudicial então, tanto para a população, diretamente afetada, quanto para o município de Palmeira. Ainda que no documento se fale que 3 mil almas viveriam na área, o abaixo-assinado conta com apenas 41 assinaturas, todos com sobrenomes luso-brasileiros. A diferença entre esses dois números pode ser explicada como um reflexo da grande porcentagem de analfabetos na população pobre da época; outro fator que também pode ter inibido as assinaturas era a possibilidade de alguma retaliação contra aqueles que assinassem. De qualquer maneira, esse documento se torna interessante a partir da consideração

3 BRASIL. Inciso 4, Artigo 5º. Lei nº 601, de 18 de setembro de 1850. In: Coletânea da Legislação das

Terras Pública do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 1961.

4 AHRS. Abaixo-assinado dos residentes de Campo Novo. Fundo de Autoridades Municipais, Palmeira

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de que, justamente por ser uma população majoritariamente analfabeta, recorreram aos órgãos competentes com um abaixo assinado, usando como embasamento parte da Lei de Terras de 1850, que discorria sobre a situação de terras como a que eles ocupavam, ou extraíam a erva-mate.

Enquanto o primeiro abaixo-assinado é do ano de 1876, o segundo documento data de três anos depois, 1879. Neste segundo abaixo-assinado, também de uma região do município de Palmeira, ocorre a defesa do erval público, fonte de renda para as famílias, alvo de processos de privatização. Logo, podemos considerar que o processo de reconfiguração agrária estava ocorrendo, ou buscando ocorrer, de maneira uniforme no novo município, e não como algum caso isolado, que só seria acompanhado muito tempo depois. Ou ainda, o segundo abaixo-assinado pode ser entendido como a expansão do processo de privatização, que se inicia na região habitada pelos requerentes do primeiro abaixo-assinado analisado neste texto, exemplificando uma expansão gradual da reestruturação da propriedade da terra num município possuidor de um cenário agrário caótico.

O segundo abaixo-assinado que analisaremos é do ano de 1879, em outra região, mas ainda do município de Palmeira, e envolve pequenos agricultores e ervateiros, que temiam perder suas posses e o direito de usufruir de ervais públicos. A área em questão havia sido doada pelo imperador, em 1861, para uso comum da população, que já ocupava tais terras.

Beschoren, com passagem a trabalho por Palmeira, já citada, esteve envolvido nesse caso. Foi contratado por José Joaquim Cordeiro para realizar a medição de sua posse5. Contudo, tal posse abarcava, justamente, terras que continham ervais, prejudicando, então, a sobrevivência de pessoas que dependiam da renda obtida através da extração desse produto; outro agravante destacado pelos caboclos, que tentavam defender suas posses e seu direito de extrair erva-mate, era o de que a referida posse havia iniciado em 1863 apenas, muitos anos após o limite permitido pela Lei de Terras para que apossamentos pudessem ser regularizados.

5 AHRS. Abaixo-assinado dos moradores do novo município de Santo Antonio da Palmeira ao

Imperador do Brasil. Fundo de Autoridades Municipais, Palmeira das Missões. 1879. Fls. 72-78. Caixa 43. Maço 97.

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Esse documento apresenta maiores nuances e agravantes que o primeiro; além da posse, que estaria sendo regularizada, surgir após o limite imposto pela legislação para legalização de apossamentos e do envolvimento de um importante agrimensor, que trabalhou no Rio Grande do Sul, autoridades municipais estavam envolvidas como interessadas no processo de privatização da terra.

Isso porque José Joaquim Cordeiro, contratante do agrimensor, havia vendido tal área para o juiz comissário local, que estava realizando a legitimação, e não havia a presença de um juiz ad hoc para o acompanhamento do trabalho e a certificação de que o mesmo estava ocorrendo conforme a legislação previa. A falta de atenção para o cumprimento das letras da lei estava entre os principais pontos destacados pelos assinantes do documento contestatório de tal processo, que alegavam conflito de interesse por parte do juiz comissário, envolvendo assuntos pessoais com assuntos que deveria atender, por ocupar tal cargo público.

Enquanto o primeiro abaixo-assinado era enviado para o poder municipal, este, devido ao envolvimento do juiz do lugar, fora remetido para o Imperador D. Pedro II, que havia destinado tal área para uso comum. Alegavam que, caso o imperador não agisse em favor dos posseiros que usufruíam da área comum, “se verá os pobres súditos na dura necessidade de mendigar o pão para suas famílias no País estranho ao Patrício que os viu nascer”6. Com tal exposição, entramos em contato, então, com um argumento geopolítico que se junta aos argumentos sobre a importância econômica dos ervateiros que trabalhavam em áreas em risco de serem privatizadas. Aventar a possibilidade de migrar para o país vizinho, em busca de meios para alimentar suas famílias, demonstra certo conhecimento sobre os problemas e instabilidades fronteiriças que sofria o Estado brasileiro, no sul do império. A população, que pode ser considerada em sua maioria analfabeta – não domina as letras, mas não significa desatenção com o contexto maior em que viviam –, demonstrava conhecimento com os reflexos que ainda existiam após a Guerra do Paraguai e que, ainda, afligiam o governo brasileiro.

6 AHRS. Abaixo-assinado dos moradores do novo município de Santo Antonio da Palmeira ao

Imperador do Brasil. Fundo de Autoridades Municipais, Palmeira das Missões. 1879. Fls. 72-78. Caixa 43. Maço 97.

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Por ter sido uma doação do Imperador, e por estar o juiz comissário do município envolvido no caso, o abaixo-assinado é enviado diretamente para D. Pedro II. No conteúdo do documento, reafirmam que a área, que seria incorporada a medições que estavam ocorrendo, era de domínio público, uma vez que o Imperador doou tais áreas com ervais para os fabricantes de erva-mate. Tal área contaria, então, com apossamentos antigos e alguns com formação mais recentes, mas calcados na prerrogativa que tais terras eram de uso público. Como resposta, foi enviado à Câmara Municipal um documento, onde se reafirmava a concessão das terras pelo Imperador aos ervateiros, impedindo com isso a incorporação delas em medições particulares.

Considerações finais

Os caboclos, mesmo tendo sua sobrevivência ameaçada por interesses de pessoas que possuíam maior poder econômico e social, não aceitaram passivamente o avanço de uma situação que lhes prejudicaria.

Movimentações em busca da defesa do direito pela terra, portanto, não são um acontecimento do século XX, onde presenciamos uma explosão de tais movimentos. Ainda que de maneiras diferentes, em sua organização e seu modo de agir, as populações afetadas por mudanças na configuração da propriedade da terra sempre buscaram formas de defender o seu pedaço de terra, de onde conseguiam/ conseguem seu ganha pão.

O exemplo disso são os casos estudados nesse artigo, onde grupos se organizaram para defender as terras e os ervais que utilizavam; ainda no século XIX, antes do movimento colonizatório chegar na região, mas já influenciando as movimentações realizadas pela privatização da terra. Além de utilizarem abaixo-assinados como forma de protestos e defesa de seus interesses, algo muito interessante, se considerarmos que boa parte da população livre pobre no Rio Grande do Sul era analfabeta; ainda encontramos usos de argumentos econômicos e geopolíticos, numa maneira de lembrar às autoridades a importância da população ervateira ao município e para o país.

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REFERÊNCIAS

BLOCH, Marc. A terra e seus homens: agricultura e vida rural nos séculos XVII e XVIII. Bauru, São Paulo: Edusc, 2001.

CHRISTILLINO, Cristiano Luís. O Mato Rebelde: a resistência do homem livre e pobre frente ao avanço da colonização no Rio Grande do Sul. Revista Coletâneas

do nosso tempo, Rondonópolis, v. 8, ano VII, n. 8, p. 87-111, 2008.

Coletânea da Legislação das Terras Públicas do Rio Grande do Sul. Porto

Alegre, 1961.

NEUMANN, Rosane Marcia. Uma Alemanha em miniatura: o projeto de imigração e colonização étnico particular da Colonizadora Meyer no Noroeste do Rio Grande do Sul (1897-1932). São Leopoldo: Oikos; Editora Unisinos. 2016.

THOMPSON, E. P. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

ZARTH, Paulo. História agrária do Planalto gaúcho 1850-1920. Ijuí: Editora Unijuí, 1997.

FONTES

AHRS. Abaixo-assinado dos residentes de Campo Novo. Fundo de Autoridades Municipais, Palmeira das Missões. 06/07/1876. Caixa. 43. Maço 97.

AHRS. Abaixo-assinado dos moradores do novo município de Santo Antonio da Palmeira ao Imperador do Brasil. Fundo de Autoridades Municipais, Palmeira das Missões. 1879. Caixa 43. Maço 97.

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