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Gente de todas as cores: imagens do Brasil na obra de Gomes de Amorim

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Academic year: 2021

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Autor(es):

Ribeiro, Maria Aparecida

Publicado por:

Universidade Católica Portuguesa, Departamento de Letras

URL

persistente:

URI:http://hdl.handle.net/10316.2/23813

Accessed :

10-Jul-2021 10:25:26

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GENTE DE TODAS AS CORES:

IMAGENS DO BRASIL NA OBRA DE

GOMES DE AMORIM

MARIA APARECIDA RIBEIRO

1- PAISAGENS E LENTES

Quando em 1837, em Belém do Pará, havia há pouco chegado ao fimI um dos mais importantes movimentos contra os privilégios da aristocracia agrária - a Cabanagem - aportava na baía de Guajará um menino de dez anos, nascido em A veromar. "Depois de uma viagem a que não faltaram a fome, a sede, as calmas e as tormentas" (Amorim,1858: VI), os olhos da criança deviam ter-se deparado com uma paisagem grandiosa. Afinal, estava na Amazónia; e na Amazónia dos meados do século XIX, quando a actividade predatória e os interesses internacionais, apesar de já actuantes, ainda não haviam feito dela o espectro que é hoje. Mas a exuberância da Natureza parece não ter sido a primeira impressão do menino de Averomar. À paisagem natural de Belém sobrepôs-se a paisagem humana.

Levado para o cais da alfândega, viu-se ele (como o escritor afirmaria anos mais tarde) rodeado "de uma multidão de gente de todas as cores" (Amorim, 1858: VII), onde homens brancos, de branco vestidos, o avaliavam como mercadoria, em meio a brincadeiras de negros escravos. Recusado como refugo por uns, olhado com piedade por outros, o menino Francisco Gomes de Amorim encontrou finalmente quem o acariciasse e escolhesse para trabalhar consigo. Seguindo este patrão, um "excelente e honrado homem" (Amorim, 1858: XIII), ele iniciaria um percurso de que lhe ficariam na memória variadíssimas e ricas imagens do Brasil. Se algumas seriam registadas de forma autobiográfica já no prólogo do primeiro livro de poesias publicado - Cantos Matutinos (1858) - e nalgumas composições que esta obra reúne, outras apareceriam no

1 No Pará, tenninou em 1836, embora se prolongasse pelo Alto Amazonas até

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texto ou em notas do seu teatro e do seu romance: Ódio de Raça (1854), O Cedro Vermelho (1856), Escravatura Branca, acabada por publicar com o título Aleijões Sociais (1870), Os Selvagens (1875), Remorso Vivo (1876).2

Um rápido exame desses títulos e das personagens dessas obras indicia, por um lado, que as retinas da criança de dez anos fixaram "a multidão de gente de várias cores" vista naquele seu primeiro contacto com o Brasil; por outro, deixa entrever uma certa face social, comum, aliás, à segunda geração romântica portuguesa.

Merecem esses textos um estudo, pois, para além de o Gomes de Amorim escritor ter sido obliterado pelo Gomes de Amorim biógrafo de Garrett, somente a peça Fígados de Tigre recebeu um olhar mais atento. Como diz Óscar Lopes (1997: 283), a sua obra aguarda um investigador que a tome "mais largamente legível". E é verdade. Apesar de vários estudiosos chamarem a atenção para o interesse da sua obra e até de o escritor ter sido considerado um dos raros exemplos da literatura exótica em Portugal (Cidade, 1927: 2), ele nunca recebeu um estudo mais acurado, quer de forma geral - que estabelecesse as relações entre a sua produção, incluindo os textos jornalísticos, e o Romantismo português - quer de forma particular - onde a recriação da sua experiência brasileira tivesse um tratamento crítico.3

O compulsar da obra de Gomes de Amorim revela nomes conhecidos. Na maioria das vezes, o de Garrett; mas também os de Ferdinand Denis, Gonçalves Dias, Pedro II, Araújo Porto Alegre, Varnhagen.

O mestre, protector e amigo é permanentemente lembrado -afinal, à leitura do Camões "se devem não só os Cantos Matutinos", como todos os outros "modestos opúsculos" (Amorim, 1858: XV). Ódio

2 Estas são as datas da representação das peças. As edições são posteriores: Ódio

de Raça (1869); O Cedro Vermelho (1874). Aleij(jes Sociais, ao que parece, não foi

encenada até à data da sua publicação.

3 Ao escrever sobre o exotismo em Portugal na época romântica, José-Augusto França, por exemplo, considera que Gomes de Amorim é, em Portugal, no século XIX, o único caso de experiência de emigração expressso literariamente, mas nem por isso se detém na sua obra, preferindo olhar com atenção a inacabada Helena de Garrett (cf. França, 1997: 180). Também no seu O Romantismo em PortuRal, França, apesar das muitas referências que faz a Gomes de Amorim, não lhe confere especial atenção. O Dicionário do Romantismo Literário PortuRuês (Buescu, 1997) cita o nome de Amorim em muitas de suas entradas, embora o verbete que lhe é dedicado trate apenas de um aspecto da sua obra.

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de Raça, segundo o próprio autor, nasceu do incentivo de Garrett, quando este mostrou ao discípulo um projecto de lei do Marquês de Sá da Bandeira para extinguir a escravidão dos domínios portugueses e Amorim contou-lhe como viviam os escravos no Brasil. Escrita em 1854, e representada no mesmo ano no Teatro de D. Maria II, a peça, ao ser publicada, ganhou uma epígrafe que talvez na própria génese da obra tivesse exercido o seu papel de "palavra autoritária" (Bakthine, 1979: 151): "lci, comme en bien d'autres endroits, une question de race devint une question de haine." (Amorim,1869: 4)4. A autoridade, no caso, é a de Ferdinand Denis5, que comenta o facto de os europeus exigirem uma pureza de origem, mas, ao mesmo tempo, irem ajudando a aumentar o número de mulatos. Denis, por sua vez, vai buscar o testemunho de um outro viajante - Debret - que polariza a rivalidade entre "o orgulho americano do mulato" e o "brio português do brasileiro branco" (Denis, 1980:158).

O magistério de Gonçalves Dias, de quem foi amigo e com quem se correspondeu, é invocado inúmeras vezes por Gomes de Amorim nas notas e comentários que faz aos seus textos. São normalmente questões relativas à língua tupi e às lendas indígenas, para as quais ele busca o testemunho do poeta de "l-Juca-Pirama", manifestando às vezes a sua discordância. Varnhagen, embora com menos destaque e mais restrições, também é citado.

Há ainda que acrescentar uma dedicatória em Frutos de Vário Sabor ao Barão de Santo Ângelo (Araújo Porto Alegre) e outra em O Cedro Vermelho a Pedro II, cuja visita a Portugal em 1871 Gomes de Amorim apresenta sob a visão triunfante que Eça e Ramalh06 lhe

4 Embora Amorim não cite, estas palavras foram extraídas do livro Brasil e o "lei" refere-se a este país.

5 Nesse ponto G. de A. emparelha com os brasileiros. Vejam-se as palavras de Macedo: "Citar o nome de M. Ferdinand Denis é citar uma autoridade" (Macedo, J. M. & outros: 1851, 443). Diga-se também que a miscigenação racial era algo que horrorizava os franceses. O Conde de Gobineau, cônsul da França no Rio de Janeiro e amigo de Pedro II, ao escrever A Diversidade Moral e Intelectual das Raças (\856), previa a extinção do povo brasileiro, dentro de duzentos anos, em função da mistura racial. Agassiz, leitura que Amorim cita em suas notas, também fala da deterioração decorrente do amálgama de raças e vê no Brasil, mais que em qualquer outro lugar, a miscigenação produzindo um tipo "indefinido, híbrido, deficiente em energia física e mental".

6 Enquanto nas Farpas Pedro II aparece, figura romântica que era - da

vestimenta aos gostos e preocupações culturais - , como objecto de sátira (cf.Ribeiro, 1995), Amorim diz que o Imperador tem "a virtude e o saber" (Amorim, 1876: 13).

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haviam negado.

Penetramos num círculo que passa por Paris, Lisboa e Rio de Janeiro e pelo qual trafegam as ideias que iriam impulsionar o Romantismo em Portugal e no Brasil. Mais precisamente pelo Institut Historique, pela Real Academia das Ciências, pelo Instituto Histórico e Geográfico7•

Dialogando com figuras que estimularam e presidiram a fundação da literatura brasileira, participando do Romantismo português quando este já ia a meio e mantendo contactos com espaços culturais consagrados, como teria Gomes de Amorim pintado o Brasil? Que contornos deu a essas imagens de "gente de todas as cores" com quem lidou nos oito anos em que lá esteve? Como entreteceu a sua vivência amazónica e o seu referencial literário? Terá mantido o ponto de vista do viajante, o que leva alguns críticos a verem nele o iniciador da literatura exótica em Portugal? Ou por vezes falará o morador?

2- A NATUREZA

As primeiras composições poéticas de Gomes de Amorim incluem um poema canhestro sobre o rio Amazonas e outro sobre a floresta virgem, que, do tema aos motivos, das imagens à enumeração fastidiosa, não fogem ao lugar-comum. Além de Os Selvagens, que, por ser narrativa, enseja descrições pormenorizadas, somente num dos seus textos dramáticos que têm por cenário a Amazónia - O Cedro

7 Esta rede de relações pode ser assim exemplificada: em Paris, Porto Alegre pintou o retrato de Garrett (Cândido,51975: v. 2,.13 e 32). Também lá, Denis, esteve em tanta sintonia com Garrett (ou este com ele) que lhes ficou difícil explicar a génese dos dois Camões (Amorim, 1881: t. 1, 368-369). Garrett é o nome invocado por Gonçalves Dias, ex-estudante da Coimbra dos anos 40, quando fala da renovação da linguagem teatral (cf. o prólogo de L. de Mend., Dias, 1959 :690) e da necessidade de "dar um novo jeito à frase antiga", adequando às necessidades de expressão do Brasil a língua portuguesa (Dias, 1959: 824). Não fosse isso bastante, Garrett também é referido pelo poeta, juntamente com Herculano, como alguém que aposta na literatura brasileira, ao contrário da "canalha literária de Portugal" (Dias, 1959: 808). Denis correspondeu-se com Pedro II. Foi o imperador que proporcionou a estada de Porto Alegre em Paris, assim como, posteriormente, as viagens de Gonçalves Dias e as de Varnhagen à Europa. Varnhagen manteve relações com Denis, que iniciou uma biografia de Gonçalves Dias (Rouanet, 1991: 247). Este, por sua vez, busca respaldo etnográfico no seu quase biógrafo e se corresponde com Gomes de Amorim que conheceu em Portugal. Porto Alegre foi amigo de Gonçalves Dias, tendo fundado com ele e Gonçalves de Magalhães a revista Guanabara. E o circuito não pára aí.

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Vermelho - é que aparecem cuidados do autor quanto ao enquadramento da paisagem natural. Aí, toma-se verdadeira e exageradamente minucioso, querendo reproduzir a Natureza em todos os detalhes8, para que o "espectador seja transportado sem violência,

apenas levantado o pano do teatro, ao lugar onde se vai passar a acção" (Amorim, 1874: v.2, 19), mantendo-se, assim, a ilusão teatral. A exuberância das margens do lago Cumuru aparece em cena com as árvores mais variadas, sempre cobertas de flores e frutos, que a didascália indica ao pormenor e que, na apresentação da peça (1856), foi concretizada por Rambois e Cinatti. Até a iluminação foi cuidada por Amorim, para dar a ideia do sol na Amazónia e da sua dificuldade em penetrar na floresta (cf. Amorim, 1874: v.2, 177). Completando o Brasil que não cabe no palco, estão as notas, que mostram uma vocação para viajante-naturalista, também estimulada no leitor (cf.

Amorim, 1874: v.l, 5-19), e incompatível com a do dramaturgo romântico.

Nessas notas, Amorim completa - imaginando que o seu teatro venha a ser lido - o que não pôde ser dito em cena9• A variedade e a

origem de cada espécie da flora e da fauna é exaustivamente descrita. O escritor faz questão de citar os diferentes nomes por que a planta ou o animal é conhecido, sua designação botânica ou zoológica, sua utilidade, o que sobre eles se escreveu, e de dar a sua opinião pessoal sobre o sabor desta ou daquela fruta, como o fizeram muitos dos nossos viajantes e cronistas. Discute com os brasileiros e os que estiveram no Brasil a sua experiência, fazendo questão de mostrar-se algumas vezes mais conhecedor da Amazónia que os nativos, como acontece, por exemplo, com relação ao Dicionário de Botânica Brasileira, coordenado e redigido em grande parte sobre os manuscritos do Dr. Arruda Câmara. Ele encarna o Cary Cuapára - o branco sabedor, como o chamaram os tapuias de Alenquer (Amorim, 1869: 301) - e corrige os da terra (como Varnhagen e Moraes), os portugueses e os estrangeiros.

Aliás, esta atitude exigente com relação às notícias dadas pelos viajantes em todos os seus relatos começa a ser cada vez mais comum à medida que o cientificismo ganha espaço no século XIX (cf.

8 É curioso notar nas indicações para o cenário e para os figurinos a preocupação já naturalista do autor, apesar de tennos dúvidas se os objectos mencionados (rede, cesto etc.) foram colocados no palco ou pintados à maneira romântica.

9Como ele próprio declara nas notas, "tentou-se dar uma ideia da paisagem", já que o drama não contempla a descrição (Amorim, 1874: v.2, 10).

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Rouanet, 1991: 100-101).

Curiosa nesse contexto vem a ser a nota sobre a mangueira, pois, também nela se pode observar o diálogo que o escritor manteve com Garrett. Em função do sucesso que esta árvore vinda da Índia obteve no Brasil, Amorim cita o verso de Camões - "melhor tomado em terreno alheio" (cf. Amorim, 1874: v.2, 38 e Lus., C. IX, est. 58). A mesma citação aparece em Helena, embora aqui não importe quem primeiro teve a ideia, mas a presença intertextual da Ilha dos Amores e a diferença com que os dois escritores a incitam em suas obras.

Já Garrett inscreve o verso de Os Lusíadas com relação à melancia, mas não sem antes o narrador dizer: "degenerou da Europa, curcubitando tortuosa e aleijada" (Garrett, 1984: 275). Assim, a apropriação das palavras de Camões injecta no texto garrettiano a ironia e instaura, juntamente com outras observações, uma tonalidade joco-séria na pintura da mesa onde é oferecido o jantar a De Brissac

(cf. Ribeiro, 1997: 120-121), ao contrário do que acontece com a nota de Amorim que apenas reforça a visão edénica.

O recorte feito por ambos os escritores aponta, porém, para uma outra leitura: a do Caramuru de Santa Rita Durão (o qual também recolhe no seu poema a imagem da Ilha dos Amores - e de forma ainda mais plena e próxima da que figura n'Os Lusíadas, em função do seu orgulho da terra natal).

Embora o poema brasileiro não seja considerado literariamente dos melhores por Garrett no seu Bosquejo, a cena de Moema - a índia que desapareceu no mar quando perseguia a nado a embarcação de seu amado - impressionou-o a ponto de o escritor lamentar que Durão não tivesse explorado mais detidamente o episódio. Mas o que o autor das Viagens na Minha Terra retira do Caramuru é apenas o nome da selvagem desprezada, que lhe soa pitoresco: Moema. Vem ela a ser a índia feiticeira de Helena e a destinatária da carta de JacarepaguálO, que recebe os epítetos "Caju da minha vida, banana da minha alma, beija-flor de meus pensamentos, ouro preto da minha saudade", em "O Brasileiro em Lisboa" (Garrett, 1984: v.2,

144-145t.

Os olhares de Garrett e de Amorim incidem sobre outros lugares do poema a respeito do descobrimento da Bahia: o tom ufanista e o

10 Outra personagem do poema de Durão.

11 Este gosto pelos nomes de origem tupi, que soam pitorescos aos ouvidos

europeus, que até os tomam objecto de comicidade, pode ser visto em outros autores.

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motivo da flor de maracujá, à qual são dedicadas quatro estrofes do . Caramuru (c. VII, est. XXXVII-XL). É verdade que em Durão a menção ao maracujá vem na esteira do ufanismo de Botelho de Oliveira e de Itaparica, que também se valem da enumeração da flora e da fauna para mostrarem a bondade da terra, numa leitura brasileira da Ilha dos Amores. Também é verdade que a muitos cronistas e poetas encantou a flor de maracujá. Mas é o conjunto desses elementos que nos levam a incluir o ex-agostiniano como o interlocutor de Amorim e de Garrett. O ufanismo é satirizado por Garrett na mencionada descrição da mesa de jantar de Brissac. Gomes de Amorim coloca-o (e aplaude-o) na boca das personagens brasileiras dos seus dramas, como se verá mais adiante. As quatro estrofes sobre a flor da paixão transformam-se em Garrett num capítulo inteiro ("A Passiflora"), onde De Brissac, botânico, identifica o H do pistilo com a inicial não da "impudica Helena que abrasou Tróia", mas da "virtuosa [ ... ] que nos revelou a cruz do Salvador" e que a personagem pretende seja o modelo da sua Helena, da sua filha adoptiva (Garrett, 1984: 230), cujo nome dá à flor. Em Gomes de Amorim os martírios são objecto de extensa nota na qual o escritor transcreve o que dela disseram o Padre Simão de Vasconcelos (que talvez tenha servido de base a Durão) e Mme Agassiz, na sua Voyage au Brésil. Acrescente-se que essa nota vem a ser um complemento da didascália do primeiro acto de O Cedro Vermelho, a qual, por sua vez, guarda alguma semelhança com a paisagem divisada pelo cavalo de De Brissac, no capítulo de abertura de Helena.

No olhar que os dois escritores lançam sobre a natureza do Brasil, apenas o de Gomes de Amorim entidade autoral que assina as "Notas" é marcado por deslumbramento semelhante ao dos cronistas e viajantes dos séculos XVI e XVII. Cores, formas, aromas, sabores, tudo o encanta:

[. .. ] o viajante, assombrado e como que preso de tudo que o cerca, sente vagos desejos de terminar ali as suas peregrinações. atar à rede à sombra do tejupar da índia. e esperar. tranquilo e feliz. que o sono o faça esquecer de que teve outra pátria. (Amorim. 1874: v. 2. 35)

E se assoma o medo, inspirado por este ou aquele animal, reage, tratando a questão com ironia ou contando um caso em que a valentia dos da terra sai vitoriosa. O balanço geral, no entanto, com relação à paisagem é mostrar os seus prós e contras, numa atitude realista. Já as personagens portuguesas de O Cedro Vermelho e de Ódio de Raça

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reafirmam a visão do paraíso pintada pelos cronistas, mas pela via irónica, como o narrador garrettiano de Helena, que, aliás, encontra pares em textos de Camilo Castelo Branco e de Pinheiro Chagas.

A mesma atitude de deslumbramento e ironia tomada pelo autor das "Notas", muitas vezes transformado em narrador de casos, pode ser vista no narrador das Viagens pelo Interior do Brasil, publicadas por Gomes de Amorim em Artes e Letras (Lisboa, 1872 e 1873). Aí dá ele ainda maior vazão ao seu pendor descritivo, ora divulgando alguns casos contados nas "Notas", ora colocando diante do leitor outros acontecimentos autobiográficos de paisagem amazónica, sem a preocupação de mostrar-se mais sabedor que outros estudiosos e viajantes.

3- A PAISAGEM SOCIAL

As ideias de Gomes de Amorim sobre teatro, as suas intenções ao escrever seus dramas, podem ser lidas também nas copiosas notas e nos prefácios. Em Ódio de Raça, movem-no ideias abolicionistas e em Aleijões Sociais a denúncia da escravatura branca que se mascarava de emigração, enquanto em O Cedro Vermelho as "recordações da mocidade" vivida no Brasil compõem "um quadro imperfeito" de costumes (Amorim, 1874: v. 1. 10).

Se é verdade que essa intenção motiva nessa última peça um acto inteiramente dedicado à festa de São Tomé, não se pode dizer que, nas outras obras dramáticas, as falas das personagens deixem de fornecer pistas sobre a paisagem social. Entre outros exemplos, os tratamentos "marinheiro" e "bicudinho" dados pela tapuia Marta ao caixeiro, o arremedo da pronúncia "Vraga" feito pelo mulato e algumas observações mais explícitas quanto à presença dos portugueses recém-chegados indiciam, em Ódio de Raça, um contencioso que ultrapassa a proposta de abordar o problema da escravidão dos africanos: o da rivalidade entre os da terra - de origem indígena, africana, ou portuguesa - e os acabados de vir da recente ex-metrópole. Cazuza chega mesmo a cantar uma melodia popular na época: "Marinheiro, pé de chumbo,! calcanhar de frigideira,! quem te deu a confiança! de casar com brasileira?" Revela essa cantiga a causa fundamental da tensão já referida entre os da

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, h d 12 .

terra e OS recem-c ega OS portugueses: a economia ou, para usar uma expressão conhecida, a "árvore das patacas", que bem podia ser a mão de uma sinhá moça.

Embora de forma rápida, as falas e as atitudes das personagens dos dramas que têm por cenário a Amazónia registam procedimentos legais no século XIX brasileiro (como os pedidos de licença para dar açoites nos escravos); crenças populares (como no Curupira, na Mãe d'Água, em Jurupari); o costume de tomar café a qualquer hora do dia e o hábito do cachimbo de taquari para as senhoras, canções da época, romances, e uma melopeia cantada pelos pretos carregadores de Belém.

O mesmo não se poderá dizer de Aleijões Sociais, onde o tema principal é o problema da escravatura branca, e só em alguns actos há notações sobre a vida no Rio de Janeiro em meados do século XIX, assim mesmo algumas delas equivocadas. Gomes de Amorim retrata fielmente as actividades das pretas e mulatas que iam ao mercado vender os produtos das chácaras e das casas de seus senhores, mas "troca as tintas" ao mencionar o que era objecto de comércio: a vivência amazónica, que lhe valera contornos realistas e documentais em Ódio de Raças e n' O Cedro Vermelho, engana-o e o escritor romântico generaliza, inaugurando um c1ichê que vale para a sua obra como imagem do Brasil: transpõe peixes, frutas e comidas típicas do Norte, para a cena carioca. O mercado que ele pinta, com papagaios, macacos de diferentes espécies, cupuaçus, biribás, embora tenha por pano de fundo a baía de Guanabara, seus barcos e luzes, trapiches e guindastes, e a ilha das Cobras, não é no Rio de Janeiro, mas em Belém do Pará, com sua "gente de todas as cores", imagem à qual, aliás, ele volta a recorrer (cf. Amorim, 1870: 232), como que tendo necessidade de fixar permanentemente a sua primeira visão do Brasil.

Procurando suprir a voz de um narrador que o teatro romântico não contempla, as didascálias das peças amazónicas oferecem o maior número possível de indicações. Não escapam detalhes como o material das paredes e das coberturas das casas, a qualidade e as cores dos tecidos das roupas, os ornamentos das orelhas, braços e pés, e a própria cor da pele de cada uma das personagens. As "Notas" - que, no caso de O Cedro Vermelho, formam um grosso volume à parte

-12 Sobre as relações entre brasileiros e portugueses no século XIX, leia-se Ribeiro, 1994.

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alargam estas informações 13, constituindo-se num verdadeiro estudo etnográfico e sociológico. Por elas vai-se tendo noção dos modos de viagem pelos rios da Amazónia, da variedade e da utilidade de cada um dos objectos dos índios, das diferenças entre as várias tribos, de práticas agrícolas e de pesca - como a queimada e o timbó - , de como se fabricava o guaraná e se retirava o látex da seringueira, do auxílio que os urubus prestavam à limpeza urbana, das canções e das festas populares na região do Pará quando Gomes de Amorim lá residiu, das múltiplas utilidades da mandioca e maneiras de preparar o açaí (de acordo com a condição social de seu consumidor), dos diferentes usos da rede - que tanto servia para o sono como para meio de transporte das sinhás e sinhazinhas em suas visitas, como ainda para o enterro dos escravos. São ainda as "Notas" que o autor aproveita para fornecer elementos históricos e económicos - como por exemplo sobre o café, a cana-de-açúcar e a seringueira. Insatisfeito com o simples registo impessoal, o escritor volta e meia deixa vir à tona o biográfico que, algumas vezes, se transforma em interessantes e não curtas narrativas. Nestas, chamam a atenção o da caça ao gado e o da Viara, ambos protagonizados por Gomes de Amorim.

Neste último caso, além de mostrar a atenção às variações linguísticas e ao registo delas, firma a sua tendência indianista, pelo valor que atribui não só às qualidades físicas e psíquicas do selvagem, mas também à cultura indígena.

O mais interessante na obra de Gomes de Amorim sobre a paisagem social é o diálogo que se trava sobre o nome da Viara entre o narrador da narrativa contida na nota e o empregado da fazenda do drama: revela esse diálogo uma tensão entre o assimilar ou o rejeitar os hábitos da terra presente em toda a obra do escritor. Enquanto o narrador, porque de um caso que não se pretende ficcional, mostra um Gomes de Amorim abrasileirado, que assume a crença no mito indígena (cf. Amorim, 1869: 210-265), a personagem (que não deixa de guardar com o dramaturgo alguns traços biográficos) lança um olhar incrédulo às observações da tapuia, revelando um Gomes de Amorim que tenta manter a sua identidade portuguesa.

13 Alegando que a peça já é de si "demasiado pungente", Amorim absteve-se de colocar notas nas quais provaria as denúncias feitas em Aleijijes Sociais.

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3.1- O negro, o mulato e o abolicionismo

O contacto com a sociedade paraense logo revelou, ainda que de forma pouco nítida, ao então menino Gomes de Amorim as bases vigentes desde a colonização - o latifúndio e a escravatura - , mas também os novos dados que a extinção do tráfico negreiro (embora o Brasil dela fizesse letra morta) 14 introduzira: a imigração e o trabalho "assalariado", em função dos quais ele próprio fora levado ao Pará. A volta para Portugal, as leituras, as conversas com Garrett avivaram-lhe a experiência, fizeram-no repensá-la e estimularam-avivaram-lhe a criação literária.

A leitura de Ódio de Raça mostrará o branco Roberto senhor de engenho e sua filha, ambos brasileiros; o branco português recém-chegado, caixeiro e sobrinho do senhor; três escravos - um negro e dois mulatos; uma tapuia, isto é, uma índia aculturada, que trabalha na fazenda (possivelmente sob um regime de escravidão). Mas não será essa divisão racial aliada à divisão de trabalho que irá corresponder ao antagonismo proposto no título: este irá desenvolver-se em tomo do mulato que odeia o negro, tão escravo quanto ele, e o branco, senhor. Baseia-se - e isto é muito importante - na mistura de raças condenada por Denis.

O negro, Pai Cazuza ou José, trabalhador e inteligente, odeia o mulato pelas regalias que este recebe de Roberto (motivadas por um afecto instintivo do branco com relação Domingos, que afinal é seu filho, embora ambos o ignorem). Cazuza diz que mulato não tem raça. E tão enquadrada no sistema escravocrata é a construção desta personagem que ela acaba por valorizar a si própria como mercadoria, da mesma maneira que o faz o seu senhor: o seu orgulho em ser cabinda vem da superioridade que os brancos dizem ter essa etnia sobre os outros negros, tomando mais caros os escravos a ela pertencentes. A alfabetização e o Cristianismo que a civilização lhe proporcionou não mudaram a condição de Cazuza; apenas foram

14 A Inglaterra fazia uma campanha abolicionista entre os restantes países do

mundo, pois, como abolira em 1807 o tráfico e, em 1833, o trabalho escravo nas Antilhas, precisava concorrer no mercado açucareiro em pé de igualdade com os outros países e não lhe interessava que estes utilizadores da mão-de-obra escrava pudessem ter uma produção mais barata. No Brasil, a extinção oficial do tráfico data de 1831, mas só em 1850, com a Lei Eusébio de Queirós é que foram adoptadas medidas rigorosas. Gomes de Amorim regista essas infrações em O Cedro Vermelho,

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usados para tomá-la mais "suave", embora este aspecto apareça quase apagado no drama, porque o Cristianismo é visto como um bem, um freio: a religião não lhe revelou a igualdade dos homens; serviu apenas para que Cazuza sublimasse a sua paixão (por um momento consciente) pela sinhazinha. A sós com a filha do patrão, ele contempla-a, mas é incapaz de tocá-la (exactamente por lembrar-se de que é cristão e escravo). Seu único momento de prazer foi trazê-la nos braços para salvá-la do incêndio ("tê-la" para depois morrer), transformando-se no herói da peça - o primeiro herói negro do teatro romântico de língua portuguesa 15. Completando este perfil, Gomes de Amorim associa à honestidade de Cazuza a coragem e a força (traço que não desenvolve). Embora de forma ténue o escravo tematiza uma ideia cara a Gomes de Amorim, fruto certamente de suas leituras de Chateaubriandl6, à qual dará maior relevo em Os Selvagens e no Remorso Vivo - o Cristianismo como instrumento de civilização.

E já que o dramaturgo não tinha assento no Conselho Ultramarino, onde deveria ser apresentado pelo marquês de Sá da Bandeira o projecto abolicionista que Garrett tinha em mãos, Cazuza fala por ele no teatro, fazendo discursos anti-escravistas. Começando por condenar a escravidão dos pretos, uma "invenção dos brancos", ele acaba por exclamar "Liberdade, tu és uma mentira ... até para os brancos" (Amorim, 1869: 40). As suas palavras contemplam não propriamente os problemas da escravidão negra no Brasil, mas o facto de ser Portugal promotor dessa monstruosidade que, na sua versão mais recente, a escravização de portugueses, atingiu o próprio Gomes de Amorim. Acicatando os liberais seus contemporâneos, "gente que fala muito em liberdade, e negoceia em escravatura", o dramaturgo faz Cazuza lembrar que o comércio chegou a ponto de atingir homens brancos, enchendo-se o Brasil de "portugueses vendidos e comprados por seus irmãos" (Amorim, 1869: 87). O discurso assume sempre um tom que apela ao sentimento, e não à razão do público (não fosse a peça romântica). Algumas denúncias que poderiam causar terror nos

15 O negro fiel, amigo da senhora, e o negro patriota, de que é paradigmática a

figura histórica de Henrique Dias, já haviam surgido em prosa e verso na literatura brasileira, mas a literatura dramática não o incorporara. Somente em 1858, Calabar, peça de Agrário de Meneses, faz do mulato um patriota contra portugueses e holandeses, e mostra a cor como motivadora da sua revolta (cf. Sayers, 1956).

16 É importante lembrar a divulgação que este autor teve em Portugal: O Génio

do Cristianismo, por exemplo, foi traduzido por Filinto Elísio pouco depois de sua

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espectadores acabam por perder a força, devido à contextualização recebida. É o caso de o Governo brasileiro ter de obrigar a pedir licença para açoitar um escravo e limitar o número de açoites a ser dado, o que faz que o senhor peça sempre mais, e acabe aplicandb o castigo que deseja. Posta na boca de Roberto, a observação não chega a enfatizar a hediondez dessa prática, porque diluída pelo efeito cómico do exagero.

No discurso de Cazuza, pode ainda ser notado o cuidado do escritor em manter-se "amigo do Brasil", como o chamou Pedro II e concentrar atenções no projecto do Marquês de Sá da Bandeira: o negro considera maus os portugueses porque o escravizaram e porque estendem esta prática aos seus próprios compatriotas; dos senhores brasileiros só diz bem.

Se o negro, cativo submisso, é pintado como herói que conquista a alforria por suas qualidades17, o mulato, seu antagonista, é o cativo

revoltado e aparece despido de quaisquer virtudes. Domingos rouba o patrão, deseja a sinhá branca, odeia os negros. E o seu ódio pelos brancos cresce ao saber que é filho do senhor. Associa-se, então, a outros mulatos igualmente bastardos para pôr em prática os seus planos. Os maus caracteres que lhe são atribuídos não se apagam, mesmo quando postas em relevo as causas da sua revolta e denunciados os males da escravidão (os senhores que usam as escravas, que tomam cativos os próprios filhos para aumentar o cabedal, que mandam açoitá-los, que os vendem a outros senhoresI8.)

Embora "desculpadas" por Cazuza, que vê nelas atitudes de quem é "filho do opróbrio e da ignomínia", as acções de Domingos reforçam junto dos espectadores o ponto de vista expresso pela tapuia Marta (sua segunda mãe), de que "os mulatos não são bons" - o que não deixa de ser um eco das palavras de Denis - apesar de ela atribuir o facto a um "castigo de Deus" e não às causas "científicas" dos autores franceses (Amorim, 1869: 148).

O abolicionismo em Ódio de Raça situa-se principalmente no discurso do negro e do mulato, no qual Gomes de Amorim concentra o desenho, embora "a medo", "das abjecções e torpezas" da

17 De notar que a alforria de nada lhe serve, como se pode ver pelas próprias palavras do negro: ele já não voltará à sua terra (porque já não tem mãe), preferindo continuar a servir os senhores brancos. Amorim não explora, no entanto, este filão da vida do negro pós-liberdade ao qual Gonçalves Dias dedicou um poema.

18 Este parece ser, para o autor, o pior problema do sistema, pois é dele que fala no prólogo, juntamente com o da separação da família.

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escravatura (Amorim, 1869: 15). O título da peça é, aliás, explicado dessa forma por Domingos:

[. .. ] A minha raça é única e por isso aborreço as outras todas. Eu sou a escória, o refugo dos homens, e sou escravo. Mas hei-de pagar-lhes em ódio e sangue tudo que lhes devo em de:,prezos. (Amorim, 1869: 32). Na visão dos brancos, melhor dizendo na perspectiva de Roberto, o senhor e de sua filha, a liberdade deixa de ser uma questão de princípio, para ser um prémio, que, assim mesmo, se não pode dar com frequência.

Roberto, apesar de não tratar maIos escravos, considera-os objectos necessários, valorizando-os como instrumentos ou animais que sustentam a sua riqueza, isto é, como bens de que é proprietário. Quando vem a saber que é pai do mulato (facto que parece tentou obliterar, pois a negra Maria lhe falara nele) não se horroriza por ter escravizado o próprio filho; mostra-se arrependido, mas não pede perdão. Tão pouco o espectador fica chocado com a reacção de Roberto: as atitudes de Domingos, pintadas como o foram, já o tomaram perfeitamente abominável.

Emília, a sinhá moça, "anjo dos escravos", que encarna a doçura necessária às personagens românticas femininas, herdeira dos bons sentimentos de sua mãe, já possuidora da "mania" de alforriar, só pede a liberdade dos escravos bons. E não se casaria "com um mulato". O senhor branco que educou Cazuza e o alfabetizou (uma reminiscência de Gomes de Amorim?) vendeu-o a Roberto. O caixeiro Manuel, bom rapaz, faz coro com a prima nos seus pedidos de liberdade para Cazuza, mas em nada contraria o sistema vigente (e nada há por parte de Gomes de Amorim que se oponha a esta visão, o que mais uma vez parece apontar como problema principal a mistura de cores). Os brancos assumem, assim, diferentes graus de bondade. Vejamos os negros.

Em O Cedro Vermelho - peça com outros objectivos que não o abolicionismo e de que se falará pormenorizadamente mais adiante, mas onde se repetem as situações da fazenda paraense, com seus escravos e tapuias, com bons senhores brancos e com o caixeiro português recém-chegado nutrindo pai;~ão pela sinhá moça - o negro João reduplica a imagem do servo fiel, sem possuir no entanto as qualidades de inteligência e honradez de Cazuza. A ele são vinculados traços grotescos - como o uso do português de preto (embora esta seja também marca documental) - que em muito lembram o de

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Spiridião de Melo e Matos, que Garrett faria personagem da sua inacabada Helena.19 Aliás esse traço surge também em Anastácia e nas outras escravas que aparecem em Aleijões Sociais. Todas elas falam português de preto e, curiosamente, acontece o que não ocorre nas peças "amazónicas": pela primeira vez, este registo é posto a ridículo, sem que se pintem qualidades que o atenuem.

Sobre a vida dos negros no cativeiro, as peças de Amorim, como, aliás, todas as outras obras abolicionistas (mesmo as brasileiras), mostram pouco mais que algumas das actividades por eles desenvolvidas nas fazendas. As próprias notas não são muito pródigas a este respeito. Por elas fica-se a saber que, como os índios, os negros também são conhecedores da natureza e de suas mezinhas; que a palavra mandinga [e a correspondente feitiçaria] e as formas de tratamento "parceiro" e "parente" eram comuns entre eles; que a maioria não tinha qualquer instrução religiosa, que esta só ocorria quando, nativos do Brasil, eram educados com a família do senhor, mas mesmo assim tomava-se-Ihes impossível - como já chamara a atenção, no século

xvrn,

Nuno Marques Pereira20 - cumprir o

preceito do descanso dominical, uma vez que o patrão os obrigava a trabalhar.

a

negro submisso e ao mesmo tempo herói que é Cazuza não tem antecedentes na literatura portuguesa, e a brasileira havia começado a dar-lhe espaço juntamente com o negro melancólico e sofredor. Dos interlocutores convocados por Gomes de Amorim ninguém lhe dera semelhante recorte. É verdade que Denis havia romanceado, a partir das informações de Rocha Pita, Aires do Casal, Beauchamp e outros, o episódio do Zumbi dos Palmares, que incluíra nas suas Scenes. Mas também é verdade que o escritor Denis costuma ser pouco referido, suplantado pela sua actividade como historiador, etnógrafo ou naturalista. Quando se lhe busca o nome é para que dê o seu aval à "natureza-quadro-a-ser-pintado" (Rouanet, 1991: 247) ou a um

19 O facto de Spiridião e Cazuza serem cabindas pode constituir mais um elemento do diálogo entre Garrett e Gomes de Amorim. A isso acresce o traje do negro barbeiro (Mestre António) descrito nas notas de O Cedro Vermelho, que guarda alguma semelhança com o de Spiridião e a comum educação "europeia" de Helena e de Matilde: se a uma não faltou a preceptora inglesa, a outra teve uma francesa por mestra de pintura. É verdade que o nome de Spiridião vem do de um brasileiro que fora colega de Garrett em Coimbra (Monteiro, 1971).

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costume mais exótic021•

Nas suas próprias criações, Gonçalves Dias abrandara a crueldade da face social da escravidão com as tintas da saudade e do exílio - caso do poema "A escrava" - ou a revelara com brevidade - caso de "Meditação". Mas traduzira e colocara em versos a canção espanhola do herói negro do romance de Vítor Hugo.22• Terá sido a partir desta lembrança que o fiel Cazuza de Ódio de Raça, como o atlético Pierrot, guarda também um amor reverencial pela filha do patrão e salva-a das chamas para entregá-la ao primo? O ódio de Pierrot-Jargal pelos brancos e a falta de carácter dos mulatos Souci e Habibrah do romance de Hugo ficam com o mulato Domingos. Este possui também aquele "orgulho americano" identificado por Debret, a que se mesclam a esperteza e a preguiça. Um olhar atencioso sobre o recorte literário dado ao negro e ao mulato por Gomes de Amorim permite, pois, observar que a vivência brasileira do autor serviu apenas para particularizar as falas "pitorescas" dos negros, pois a dimensão heróica de Cazuza, assim como o ódio entranhado de Domingos obedecem ao paradigma francês que a palavra de Denis e a personagem de Hugo ajudam a modelar.

3.2- O INDIANISMO

3.2.1- Índios de papel e índios de verdade

Representados pelos tapuias em Ódio de Raça, onde exercem papel secundário, os índios protagonizam O Cedro Vermelho e Os Selvagens. Em ambos os textos, alguns deles aparecem em estado puro e vão perdendo a identidade, à medida que contactam com os brancos. Se os tapuias surgem nas suas cores naturais em todas as obras, haverá, na pintura dos índios em estado puro - nomeadamente de Cedro Vermelho e de Bracelete de Ferro - , e dos heróis de Os Selvagens um exagero de tintas, que tomará patente o Indianismo do

21 Não se pode esquecer, porém, que a narrativa "Os Maxacalis", inserida nas Scenes, teve alguma recepção entre autores franceses e brasileiros.

22 A canção de Bug-Jargal tem passado despercebida aos estudiosos das

literaturas africanas de língua portuguesa. Sua temática - amor do negro pela branca, - foi glosada, entre outros, por Costa Alegre, nomeadamende no poema "?", cujo

excipit é "Porém brilhante e pura,! Talvez seja a manhã! Irmã da noite escura!! Serás tu minha irmã? (Alegre, 1994: 67)

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autor.

Repetindo a paisagem social de Ódio de Raça, os tapuios de O Cedro Vermelho vivem à margem da fazenda, mas, desta vez, há entre eles um mura que vai ser o responsável pelo antagonismo mobilizador da acção. Representando a visão que sempre se construiu dos da sua tribo, ele será perverso. Os seus maus caracteres substituirão os do mulato nesta obra onde o heroísmo de Pai Cazuza ficará com o juruna Cedro Vermelho ou, se preferirmos, Acaiacá Piranga, nome não explorado pelo autor23, afastado como é natural dos interesses nacionalistas dos escritores brasileiros que, como Gonçalves Dias, José de Alencar, Teixeira de Sousa, Joaquim Manuel de Macedo ou Lourenço da Silva Araújo e Amazonas, adoptaram o onomástico tupi para o baptismo das suas personagens.

Como foi referido anteriormente, para caracterizar fisicamente seu herói índio, Gomes de Amorim não poupou detalhes de indumentária, cor de pele e penteados, que traduziu, quando da impressão do texto, numa extensa didascália, onde buscou sempre o detalhe naturalista. Cedro Vermelho trará todos os contornos da excepcionalidade da sua raça (aqui restrita à tribo juruna) quando olhada sob o prisma romântico: conhecedor da natureza, sagaz, forte e destro como nenhum outro, possui ainda a honra e o cavalheirismo, além de ser ... sentimental!

Por detrás de algumas falas deste índio, ouve-se, como a de um ponto de teatro, a voz de Gonçalves Dias24• A linguagem figurada que

o selvagem utiliza, foi motivada por uma informação dada pelo poeta (cf. Amorim, 1874: v.2, 18). Como o prisioneiro de "I-Juca-Pirama", o juruna heróico descende também da tribo tupi e se orgulha disso. Filho de Bracelete de Ferro25, Cedro Vermelho, como que por "amor

23 Embora Gomes de Amorim escolhesse nomes indígenas para os mundurucus de Os Selvagens - Woipaigupi (o Lagarto), Pangip-hu (Pau d'Água), Goataçara (Peregrino) - e dominasse a língua dos nativos, conforme declara nas suas notas, não se atreveu a baptizar com um nome tupi o seu índio de teatro.

24 São de notar já nos versos de "O Desterrado" (Amorim, 21866: 29) uma resposta à "Canção do Exílio", desde a sua epígrafe. O encontro com a terra das laranjeiras aludida nos versos de Heine glosados no poema de Gonçalves Dias faz que o poeta, contrariando as palavras do brasileiro, reverta para Portugal a superioridade dos perfumes, da beleza dos campos e das flores, das noites, dos astros, da propensão ao amor. Deve, no entanto, ter por base alguma experiência do autor. Aliás, glosa semelhante também aparece em "A Floresta Virgem" (Amorim, 21866: 297-302).

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de um triste velho que ao termo fatal já chega", decide voltar ao Xingu e suceder o cacique. Antes, porém, luta com o mura traidor em campo aberto, com a mesma valentia e heroísmo, com que o tupi enfrentara os timbiras.

Gomes de Amorim idealiza tanto o seu selvagem que ultrapassa o modelo gonçalvino do "filho das selvas" e antecipa "o cavaleiro português na pele de um selvagem" de Alencar26, pois nele o Indianismo também aparece associado ao medievismo. O índio do teatro, apesar de haver recebido o baptismo (que aceita apenas por razões afectivas) e de amar a sinhá branca (sentimento que não revela), opta pela floresta e pela vida tribal: não quer levar para o Xingu a sua Ceci e chega ainda a informar ao caixeiro português, primo e pretendente de Matilde (à semelhança do que Peri faria com Álvaro), que ele é um homem digno dela27• Desta vez não é a condição de escravo ou a cor da pele o factor impeditivo, mas o próprio sentimento "anti-civilizatório" de Lourenço que, preferindo manter-se selvagem, esconde seu amor por Matilde.

Numa atitude desconstrutora da idealização do índio (que adiante se verá mais pormenorizadamente), Gomes de Amorim usa, como contraponto ao idealismo, tiradas lromcas do administrador Francisc028 dirigidas à paixão da sinhazinha por Cedro Vermelho ou, então, uma forma mais objectiva - a autocrítica de Matilde, que índio usava no braço. O nome é pomposo, mas a explicação prosaica deita por terra a idealização feita, mostrando o cacique mais próximo de Macunaíma que dos índios criados pelo Indianismo. Causa-nos estranheza esta situação, pois que Bracelete era índio em estado ainda praticamente puro. Resta-nos averiguar onde teria Gomes de Amorim ido buscar tal nome que ele parece atribuir a um índio real.

O velho pai foi criado para pôr em evidência uma sabedoria que o jovem índio ainda não podia possuir. O mesmo acontece em I-Juca-Pirama.

26 Embora a peça tenha sido revista para a impressão, a data em que foi levada ao palco é um ano anterior ao surgimento de O Guarani. Dificilmente Gomes de Amorim teria reestruturado o perfil de Cedro Vermelho, mas é possível que lhe tenha retocado esta ou aquela fala depois de conhecer o romance de Alencar e, com isso, tomado o seu juruna próximo do goitacá.

27 O amor do índio pela mulher branca já fora tematizado por Denis em "Os Maxacalis". Aí, no entanto, além do sentimento de dor pela imposssibilidade de união, aparece mais amplamente explorada a degradação a que o índio é submetiào no seu contacto com a civilização.

28 Tom irónico que se aproxima, mas ganha mais espaço e função diferente, como se verá adiante, do de Aires Gomes, com relação a Peri, no romance de Alencar. Enquanto, por exemplo, o escudeiro chama D. Cacique ao Guarani, Francisco nomeia Lourenço como "majestade augusta destes bosques" (Amorim, 1874: v. I, 172)

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reconhece o quanto de imaginação há na imagem que pintou de Lourenço. Assim, reiterando o pensamento de Ferdinand Denis que serve de epígrafe à sua primeira peça "amazónica", mas reafirmando o culto ao índio (Lourenço morre fiel à sua raça, forte, belo, leal e honrado, sem mesmo absorver o Cristianismo), Gomes de Amorim mais uma vez contraria a mistura de raças29 e encaminha o drama para a solução que lhe convém, que se relaciona com um pensamento dominante no Romantismo europeu e nas primeiras manifestações desta estética no Brasil: a acção civilizadora da Europa foi prejudicial ao Novo Mundo (fosse ela desenvolvida pelos espanhóis, "que assombraram com as suas crueldades o grande império dos incas" (Amorim, [1982]: 8), ou pelos franceses, como os pérfidos Alberto de Lacroix e Chambourg). Pela boca de Manuel Félix, o Pangip-Hu, pai de Goataçara, pode-se ouvir directamente a acusação deste crime.

Dessa forma, Gomes de Amorim fica mais próximo do pensamento de Gonçalves Dias (que mostra os prejuízos trazidos pelo contacto do branco com o selvagem30, e distancia-se das ideias

nacionalistas de Alencar (interessado em criar um romance de origem). Para ele o único bem trazido pela colonização é o Cristianismo. Este, quando vivido, quando assumido como programa de vida, toma o índio um homem quase perfeito, ideia exaustivamente desenvolvida em O Remorso Vivo, que continua Os Selvagens.

Como se disse anteriormente, nesta útima narrativa, a cobiça do civilizado destrói tribos inteiras, e mais uma vez é manifestado o culto do índio e da natureza. Enquanto desconheceram o homem branco e a sua ambição, enquanto ignoraram o valor do ouro e dos diamantes, os mundurucus viveram felizes e felizes continuariam, se Pangip-Hu tivesse conseguido manter o segredo de Arinos, isto é, se o seu filho Goataçara não o houvesse descoberto. Ao mesmo tempo, todas as qualidades atribuídas aos índios desde os cronistas, e reiteradas pelos poetas e romancistas - entre os quais o próprio Gomes de Amorim nas obras anteriores - são reafirmadas em Goataçara, que, mesmo em contacto com Paris, a capital da civilização (cf. O Remorso Vivo), é capaz de mantê-las, apoiado pelo Cristianismo que lhe foi incutido

29 Embora ache natural em função do clima, e justificável, à luz do Cristianismo,

a paixão das brancas pelos negros e índios e vice-versa, Amorim não conseguiu libertar-se do modelo literário conhecido.

30 Cf. por exemplo a "Canção do Piaga" e o canto de morte do índio tupi em "1-luca-Pirama", que se referem a essa situação.

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pelo Padre Félix. Goataçara-Romualdo é belo, inteligente, corajoso, ágil, tem ouvido para a música (o que o toma apto a aprender línguas com facilidade), mas é também caridoso e dá "a outra face" a Lacroix, assassino de Porangaba31, sua irmã.

O início da narrativa de Os Selvagens de que Goataçara é o herói, indicia a dupla temática da obra e prepara a gesta do índio cristianizado. O narrador comenta o facto de os tapajós terem aproveitado "a lição recebida dos conquistadores do Peru": "Expulsos, roubados e tratados cruelmente, expulsaram, roubaram e aniquilaram por sua vez os habitantes das regiões onde iam penetrando". Por outro lado, informa que, misturados com os tupis, os tapajós deram origem aos mundurucus, tribo de Goataçara, "de elevada estatura, bem conformados, de feições regulares, de ânimo valoroso" e a quem não se pode negar "uma grande superioridade intelectual sobre a quase totalidade dos seus vizinhos", sendo "dóceis e afectuosos quando se civilizam" (cf. Amorim, 1876: 8 e 9). Flor de Cajueiro e, principalmente, Goataçara comprovarão esta tese.

Este indianismo literário e aprendid032 de Gomes de Amorim terá na sua própria obra um contraponto realista, em duas vertentes: uma cómica e outra documental. A primeira pode ser vista nas notas, onde o autor ridiculariza alguns aspectos da vida indígena como, por exemplo, a antropofagia (cf. Amorim, 1874: v.2, 156), nas falas de personagens de O Cedro Vermelho (Francisco e Matide), como já foi observado, e em Fígados de Tigre. A segunda aparece, nas notas, onde regista as suas experiências e estudos, e na construção das personagens tapuias, isto é, dos índios aculturados, nas quais o escritor mescla ao seu olhar idealista elementos da sua vivência amazónica, colocando-se numa perspectiva mais neutra e realista.

Marta, por exemplo, personagem de Ódio de Raça, não tem a nitidez - e a simplificação - de contornos de Cedro Vermelho, do herói negro ou do mulato seu rival, mas é a única a possuir traços que documentam a situação dos índios aculturados das fazendas do Pará

31 Terá Gomes de Amorim ido buscar este nome em Iracema? É de lembrar que ele é o mesmo da lagoa onde a "virgem dos lábios de mel" costumava banhar-se e que, no ano da publicação de Os Selvagens, já haviam saído não só este romance de Alencar como a famosa crítica de Pinheiro Chagas sobre o escritor cearense.

32 Ressalte-se que, além dos traços de beleza e heroísmo, da linguagem figurada e do domínio da natureza, o selvagem de Amorim conta o tempo pelo cair das folhas ou pelo frutificar das plantas, como os de Chateaubriand e de outros autores franceses.

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do século XIX. É verdade que a tapuia fala a decantada linguagem figurada33 dos índios, mas é também quem veicula as suas superstições - o Curupira, a Mãe d'Água, Jurupari .... - ao mesmo tempo que apela para o Senhor São João, mostrando o seu contacto com o catolicismo e revelando um traço cultural do Brasil: o sincretismo religioso. Curiosamente, aquilo que é crença defendida pelo índio (embora Lourenço não fale de forças sobrenaturais menores, apenas de um poder maior) não merece comentários do autor, enquanto a fé dos tapuias e dos índios aculturados é encarada como superstição e detalhadamente examinada por Amorim num sem número de notas34•

Marta é também o exemplo vivo de um dos males que a civilização introduziu entre os índios: a aguardente. À semelhança dos discursos abolicionistas postos na boca do negro e do mestiço, Gomes de Amorim faz que a própria tapuia denuncie o mal representado pelo contacto com a civilização. Marta ora fala de forma directa ("O mato era a cidade dos tapuios antes de vir a gente do reino com a sua água forte35; agora os tapuios não podem passar sem a cidade dos brancos" - Amorim, 1869: 70), ora mescla denotação e linguagem metafórica ("nem o cipó, nem a jacitara podem estar seguros nas árvores depois que a gente branca aprendeu a andar no mato" - Amorim, 1869: 34), ora ainda utiliza exclusivamente a alusão para evidenciar o domínio dos brancos:

As áí?uas do rio preto misturam-se com as áí?uas brancas do Amazonas defronte de Santarém; e a minha senhora sabe que as áí?uas brancas não perdem a cor depois de se lhe juntarem as outras (Amorim, 1869: 72).

O uso do vocabulário tupi que proliferou nos indianistas

33 De notar que Amorim faz questão desse traço indígena que aprendeu com Gonçalves Dias, a ponto de colocar na boca de Duarte, o fazendeiro, protector de Lourenço, as seguintes palavras, que bem situadas estariam no prólogo de qualquer obra indianista: " - O meu selvagem, que se exprime quase sempre em estilo figurado, e por vezes com muita propriedade, julga-se descendente dos tupis, que tinham a faculdade da poesia e do canto" (Amorim, 1874: 1, 49). Observação semelhante pode ser vista em Alencar, como recomendação a Gonçalves de Magalhães nas Cartas sobre A Confederação dos Tamoios.

34 Excepção seja feita, conforme já referido, para a Uiara.

35 Aqui Amorim alude à acção perniciosa dos regatões (comerciantes fluviais), como ocorre em outros momentos de sua obra (cf. Amorim, 1,:41)

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brasileiros não encontrou abrigo gratuito nos textos de Gomes de Amorim. Ele só o emprega quando não há outro meio de falar das coisas da terra. Poder-se-ia dizer que tal acontece por serem obras destinadas ao teatro. Mas note-se: é justamente nelas que o escritor faz mais concessões, pois é aí que desenvolve um certo antagonismo entre nacionalismo e exotismo, estabelecido pelo revelar (falas dos da terra) e pelo estranhar (falas dos portugueses recém-chegados).

Assinale-se, no entanto, um facto: movida pelo álcool, Marta chega a expressar-se em língua indígena. mas afirma que só é capaz de fazê-lo quando a aguardente remove a barreira da censura (e aqui Amorim mais uma vez utiliza a índia para denunciar o apagamento da cultura autóctone pela dominação branca).

Os tapuias de O Cedro Vermelho não fogem muito aos contornos de Marta: supersticiosos, pouco trabalhadores e amigos da bebida. Mas nessa peça um dos seus costumes ganha relevo: aos festejos de São Tomé, santo popular entre os gentios e utilizado pelos padres na catequese por semelhança fónica entre o nome do apóstolo e o de uma entidade da mitologia indígena - Sumé36 - , é dedicada toda uma

cena. Além do registo dos cânticos da festa, das danças, comidas e bebidas nela usuais, Amorim, oferece, na didascália e nas notas, inúmeros pormenores sobre o sairé (espécie de estandarte), sobre as pessoas que o seguram e as roupagens dos que desempenham papéis na comemoração. Tão importante é este documentário que estudiosos das tradições chegam a mencioná-lo como fonte (cf. Pereira, 1989: 17 e 73). Com relação aos índios muras, também aculturados37 (e que em O Cedro Vermelho misturam-se aos tapuias que comemoram São Tomé), o dramaturgo assume uma posição diferente: trata-os como os "índios maus", não só obedecendo a uma dicotomia apropriada dos cronistas e típica do indianismo brasileiro (índios bons, aliados dos portugueses; índios maus, aqueles que não se deixam dominar), mas também seguindo uma informação histórica mais recente - a que os paraenses seus contemporâneos davam sobre a Cabanagem e na qual os muras participavam, facto que será tratado mais adiante. Mas é na boca de um mura, Brás - rival de Lourenço, o Cedro Vermelho -que o dramaturgo coloca a mais extensa fala contra a civilização -que lhes rouba as riquezas, lhes devasta as florestas, os tiraniza com o seu

36 Esse facto já foi assinalado por Manuel da Nóbrega e por outros cronistas da época colonial.

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governo, os vicia, os escraviza. Curiosamente este mura tem atrás de si um modelo real que certamente não fazia discursos contra os brancos, que talvez nem fosse mura (veja-se aí a introdução das memórias da Cabanagem), mas procurava enganá-los (cf. Amorim, 1874: v.2, 81)

Lourenço e Brás - embora antagonistas - são usados, assim como Marta, para defender a pureza do estado natural contra os males da civilização, eixo temático central em O Cedro Vermelho, segundo o próprio autor.

Apesar dessa aproximação, os índios de Gomes de Amorim dividem-se praticamente em dois grupos: o índio idealizado segundo o paradigma romântico, de que Lourenço e Goataçara são exemplos, e os índios em estado semi-selvagem ou aculturados, com que o autor conviveu, para os quais não havia paradigma literário e que ele retrata de uma forma mais circunstanciada e a realista.

3.2.2 - O indigenismo

Há que assinalar ainda em Amorim o facto de documentar e tomar parte numa discussão onde dá mostras de um indianismo não literário ou, se preferirmos, de um indigenismo. Não é esta uma atitude sem fundamento, pois o escritor nutria pelos selvagens uma real simpatia. Os seus relatos mostram-nos que, além de um conhecedor da língua indígena, Amorim buscava compreendê-los para deles obter o melhor.

Nas notas, colocando-se contra os males que a civilização traz para o selvagem e dentro do pensamento liberal que o caracterizava, o escritor denuncia ao governo brasileiro a escravização dos índios pelos brancos - em tudo igual à dos brancos pelos brancos de que ele próprio (conforme, aliás, lembra) foi objecto. Dessa escravização, diz Gomes de Amorim, são instrumentos os próprios missionários que, "com raras excepções [ ... ] levam já ao sair de Roma o exemplo e a convicção de que o Cristo que amou a pobreza não é o que se adora actualmente"(cf. Amorim, 1874: v.2, 86-87 e 98-99).

O ponto mais importante, porém, de defesa dos índios nas notas que o escritor apõe a seus textos, diz respeito ao assunto que vem a ser fulcral em sua obra - a mistura de raças. Apesar de afirmar que esta constitui uma degeneração das espécies e de verificar que a decadência atinge mesmo os índios que vivem no interior das

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florestas, o escritor coloca-se frontalmente contra aqueles que pretendem exterminar os selvagens não susceptíveis de civilizar-se, entre os quais cita nominalmente o presidente dos Estados Unidos e insinua a figura de Varnhagen38. Apesar de criticar a falta de atenção do governo brasileiro para com os índios, Gomes de Amorim acaba por atenuar o seu texto com a publicação da imagem oficial: as palavras de Joaquim Manuel de Macedo, nas suas Notions de

Chorographie du Brésil, e as informações de O Império do Brasil na Exposição Universal de 1873, que lhe foram enviadas por Araújo

Porto Alegre e pelo Barão de Japurá, cônsul do Brasil em Portugal. Na realidade, entre a sua "vivência de tapuio" e as suas leituras francesas, Gomes de Amorim fica com estas últimas e com o pensamento dominante no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, onde as ideias de Denis e dos "amigos do Brasil" tinham acolhida e ajudavam a alimentar as conversas. A sua diferença com Varnhagen passa exactamente pelos que o Visconde de Porto Seguro chama "franchinotes" e pelas teorias que ele classifica "sediças" e "pseudofilantrópicas" (Varnhagen, 1851 :387).39

Preocupado com a civilização dos índios (por aqui vê~se, mais uma vez que o escritor não se coloca contra a civilização, mas contra a forma pela qual era levada), Amorim censura o governo brasileiro por não mandar para "as proximidades dos gentios senão autoridades que soubessem bem o idioma das diversas tribos com que estivessem em contacto", pois este "seria o meio mais fácil e profícuo de os civilizar" (Amorim,1858: 301).

38 As ideias do Visconde de Porto Seguro afinal passavam como ele próprio afirma "não pelo sentimentalismo, mas pelo patriotismo [ ... ] por considerações de estado, mais que de caridade e de economia política" e tematizam a substituição da mão de obra negra pela dos índios. No "Memorial Orgânico", publicado na revista

Guanabara, assevera que melhor seria "prender à força os índios bravos para os desbravar e civilizar", pois tal medida resultaria num "aumento de braços menos perigosos que os dos negros" e que a mistura de "brancos e de índios - "em cor e em tudo" - formaria o povo, classe social que algumas províncias não possuíam"(Varnhagen, 1851: 357). Perguntando-se quem são os donos da terra, Varnhagen defende que "o Brasil pertence à civilização, pela mesma razão que a Inglaterra ficou pertencendo aos normandos quando a conquistaram" e Portugal a Afonso Henriques e a seus sucessores que o tomaram aos mouros.

39 Note-se que entre Denis e Varnhagen, apesar da amenidade das aparências, havia dissensões (cf. Rouanet, 1991). Note-se também que, numa outra vertente de pensamento, Manuel António de Almeida, então estudante de Medicina, logo de seguida à publicação do "Memorial Orgânico" colocou-se contra Varnhagen, escrevendo, no Correio Mercantil (13/12/1851), a "Civilização dos Indígenas".

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3.3- Os brancos

Dois fazendeiros, uma sinhazinha, um caixeiro, um oficial da armada portuguesa transformado em administrador de terras - assim estão divididos os brancos no teatro "amazónico" de Gomes de Amorim que, no romance Os Selvagens, de idêntico cenário, acrescenta ainda mais um fazendeiro, um padre e alguns estrangeiros.

Aleijões Sociais, porque dedicado à escravatura branca, e passado em Portugal e no Rio de Janeiro, multiplica as personagens dessa raça e distribui-lhes variados papéis sociais. Daí que eles não ganhem a marca da cor mas, antes, a de engajadores e engajados, ou, melhor dizendo, enganadores e enganados. Amorim denuncia a forma pela qual os camponeses do Minho eram aliciados, o que passavam na viagem e as mortes a bordo (desculpadas como epidemias), a ausência de passaportes e a falsificação de papéis, os maus tratos que recebiam no Brasil, o descaso das autoridades portuguesas, o jogo feito pelos malfeitores enriquecidos (que, comprando títulos e doando quantias a obras de benemerência, adquiriam também a sua tranquilidade), o casamento com brasileira como uma forma de enriquecimento. Embora não deixe de registar, ainda que de maneira ténue, o olhar lançado pelos brasileiros aos aldeões portugueses feitos ricos senhores a poder do dinheiro, a visão que o escritor tem sobre o Brasil é sempre a de terra de liberdade e de justiça.

3.3.1- Senhores

Os fazendeiros - bons - dos dois textos dramáticos são brasileiros, embora este termo pudesse não designar exactamente os nascidos no Brasil, mas aqueles que possuíam alguma forma de identidade com a terra, seja por amor à sua natureza e à sua gente ou seja com fundamento em interesses económicos40• Roberto declara-se

brasileiro a Manuel, filho de sua irmã, que, "por ter nascido em Portugal, não deixa de ser meu sobrinho". Se tal observação mostra uma migração populacional41, indicia também que, apesar dos laços

40 A este respeito ler Ribeiro (1994).

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