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UM NOVO LUGAR PARA A HISTÓRIA: O TEMPO NO DIREITO

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UM NOVO LUGAR PARA A HISTÓRIA:

O TEMPO NO DIREITO

Margarida Prado de Mendonça1

Resumo: A perspectiva teleológica kantiana,

sustentada sob a visão linear de história, deu lugar a um novo paradigma. Para Foucault, a história é constituída de rupturas, descontinuidades e contingências e a atualidade é analisada como ontologia crítica de nós mesmos. O trabalho investiga as conseqüências que isso traz para o tempo no Direito.

Palavras Chave: Filosofia. Direito. História.

Ontologia do Sujeito. Atualidade.

A relação do homem com o tempo sempre mereceu especial atenção da Filosofia, mas isso não significa que ela tenha sido compreendido da mesma maneira. Propomos, com este trabalho, uma breve reflexão sobre o novo lugar que a história ocupa no pensamento e suas conseqüências para o Direito.

A reflexão proposta tem seu início com base nos conceitos de imortalidade e eternidade, apresentados por Hannah Arendt em sua obra A Condição Humana.2 A autora recupera a trajetória daqueles que seriam, desde os gregos, os principais interesses do homem: contemplação e ação. Já em Sócrates, a ciência significava domínio metódico e constante de si mesmo e a virtude foi identificada com a sabedoria.3

1 Advogada e Professora Doutora em Filosofia do Direito.

2 ARENDT, Hananh. A Condição Humana. Trad. Roberto Raposo, rev. Adriano Correia, Rio de

Janeiro: Forense,2011. p. 21.

3 Hábito unitário do espírito que só se conquista mediante o esforço perseverante e contínuo

da inteligência e da vontade unidas por um vínculo recíproco e inseparável. Dai também a missão socrática de exortar que cada um se tornasse melhor para melhor servir a polis grega, “mesmo que para isso se tenha que morrer muitas vezes!” PLATÃO. L´Apologie de Socrate,

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Arendt observa que, se na origem da Filosofia teoria e prática aparecem como unidade, em algum momento homens de pensamento e homens de ação tomaram caminhos diferentes. Como e porque teria ocorrido este distanciamento? Para os gregos, a espécie humana, pela procriação, se incluía com os deuses em um Cosmos de imortais ; porém, considerado individualmente, o homem se encontra excluído desse universo de imortais, biologicamente finito, ele é mortal.

Do nascimento até a morte, o homem se move em linha reta, embora ele tenha sempre desejado permanecer no tempo. Sua capacidade de produzir obras, feitos e palavras abre, para ele, essa possibilidade. Deixar para trás vestígios confere à esses mortais uma grandeza potencial, isso é, dá a eles a chance de romper com o curso retilíneo da vida biológica e encontrar uma forma de imortalidade.4

Arendt observa que Sócrates, parece ter escapado à este desejo. Aquele que representa, até hoje, o surgimento da Filosofia, jamais se importou em dar forma escrita aos seus pensamentos. Por que ele não se dedicou à tarefa de deixa-los como herança? Legar seus pensamentos o retiraria da contemplação da eternidade?

Mas em que consistiria a experiência do eterno? Por certo, temos dificuldade em apreender o instante, em dizer o instante, posto que ao dizê-lo já não há mais o instante. Ao contrário da experiência da imortalidade, o eterno não pode corresponder a nenhuma atividade. Mesmo no que se refere à atividade do pensamento, dizer é, interromper o pensamento para pensar o modo de dizê-lo. E para Arendt: “ teoria ou contemplação é a designação dada à experiência do eterno5”.

A autora acrescenta que essa longa trajetória antagônica entre a preocupação com a eternidade e a aspiração à imortalidade não se fez presente somente na Filosofia. A crença cristã trouxe a promessa da eternidade, e com isso 4 BORNHEIM, Gerd. Os Filósofos Pré-socráticos. São Paulo:Cultrix,1972 p.10,15. Se quisermos

compreender o “milagre grego” devemos atentar a um rasgo fundamental da religiosidade grega: o homem grego não compreende os deuses como pertencentes a um mundo sobrenatural. Pensando a physis o filósofo pré-socrático pensa o ser, a totalidade do real: do cosmos, dos deuses, do homem, das coisas particulares animadas e inanimadas, da verdade, do movimento, do comportamento, da sabedoria, da política e da justiça.

5 ARENDT, Hannah. A Condição Humana, Trad. Roberto Raposo, rev. Adriano Correia, Rio de

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tornou desnecessária a busca pela imortalidade, na esfera terrena. No cristianismo, vita activa e bios politikos restam, por longo tempo, servos da contemplação. Não encontramos mais, na modernidade, essa supremacia. A ação e a política buscam hoje um lugar de dignidade. Mas a contemplação e ação, a unidade entre a sabedoria e a virtude, permanece sendo, para o homem, um ideal a ser alcançado.

A passagem citada no pensamento de Arendt fornece, para nós, todos os elementos necessários à nossa investigação: imortalidade, eternidade, pensamento e ação, história biológica retilínea, legados herdados no tempo, experiência indizível do eterno. Além do ideal de unidade entre teoria e prática, que sempre esteve presente na Filosofia, já se encontrava na Alegoria da Caverna de Platão6, tão rica referência para todo o pensamento em geral.

Teoria e prática, conhecimento e ação foram identificados por Immanuel Kant como interesses da razão. Esses dois interesses são submetidos à Crítica, que para o autor é um método de trabalho. Kant, na Crítica da Razão Pura submete o conhecimento dogmático à crítica, ele se opõe à pretensão de se progredir no conhecimento “sem jamais termos nos indagado de que modo e com que direito chegamos a ele.”7

Declara Kant :

Todo nosso conhecimento parte dos sentidos, vai dai ao entendimento e termina na razão, acima da qual não é encontrada em nós nada mais alto para elaborar a matéria da intuição e levá-la `a suprema unidade do pensamento.8 Qual papel a razão desempenha no conhecimento? Ela desempenha um papel negativo, a razão não é faculdade de conhecimento, ela organiza conhecimentos, segundo idéias. Em seu uso especulativo, a razão apenas fornece princípios reguladores dos nossos conhecimentos sobre objetos9, cuja tarefa é 6 PLATÃO, La République. Oeuvres Complètes, trad. Léon Robin, Bruges: Pléiade, 1950.

V473,474 p.1053.

7 KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Trad. Valério Rohden, São Paulo: Abril, 1980.

XXXVI, p.19

8 Idem, 355 p. 179. 9 Idem, 699 p. 331.

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dirigir o pensamento na forma “como se” fosse. A razão trabalha com hipóteses, assim, ela agrupa conhecimentos condicionados e permite que sigamos em direção ao incondicionado.

Ainda no domínio especulativo, Kant encontra um outro uso para a razão, o uso prático da razão. E é esse uso que interessa de imediato ao nosso trabalho. Quando a razão, sobre a vontade, configura-se como sendo o único princípio de causalidade das ações no mundo, isso é, quando a razão causa ações por dever, ela cria para nós o mundo moral.

Toda a Filosofia para Kant está ligada aos três problemas fundamentais do homem, dai serem três os interesses da razão. Eles foram apresentados pelo autor nas seguintes perguntas:

1 – O que posso saber? 2 – O que devo fazer?

3 – O que me é permitido esperar? 10

A primeira questão é puramente especulativa, diz respeito ao conhecimento11, a segunda pergunta é eminentemente prática, refere-se ao agir humano. Na questão da esperança, esperança sobre aquilo que ainda não ocorreu, Kant pretende vincular teoria e prática – natureza e moral. Ele indaga quanto a possibilidade de um dia se realizar no mundo o que se revela como um dever.

Para Ricardo Terra, pela obra kantiana intitulada A Idéia de uma História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita, Kant pode ser reconhecido como principal representante da concepção linear da história12. Embora a linearidade já estivesse antes presente no pensamento cristão, e com ele a idéia de progresso. Para o autor, dessa perspectiva linear é que Kant constrói suas concepções de História e de Direito.

10 Idem, 833 p. 393.

11 O tempo não é um conceito empírico abstraído da experiência, não é um conceito

discursivo, mas uma forma pura da intuição sensível, nada mais é senão a forma do sentido interno, condição a priori formal de todos os fenômenos em geral”. KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Trad. Valério Rohden, São Paulo: Abril 1980, p 44,45,46.

12 TERRA, Ricardo . Algumas questões sobre a Filosofia da História em Kant. Idéia de Uma

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A idéia do tempo uno, linear, que articula passado, presente e futuro, e a idéia de desenvolvimento, se encontram tanto no pensamento de Kant como no pensamento de Santo Agostinho. Ambos concebem o desenvolvimento como resultado do “antagonismo”.13Em Santo Agostinho o antagonismo representa a luta entre o terreno e o celeste, entre o secular e o divino. Dessa forma, a existência humana deveria ser vivida como uma marcha em direção à redenção celeste, à Cidade de Deus. A peregrinação humana se dirigiria a um progresso definido, o triunfo do bem sobre o mal.

Numa outra perspectiva se encontra Kant, quanto ao antagonismo. Nele, o conflito vivido pelo homem tem sua origem na própria condição humana - “ na insociável sociabilidade humana”. Declara Kant na quarta proposição, da obra citada:

O meio de que a natureza se serve para realizar o desenvolvimento de todas as suas disposições é o antagonismo delas na sociedade, na medida em que ele se torna ao fim a causa de uma ordem regulada por leis desta sociedade. Eu entendo aqui por antagonismo a insociável sociabilidade dos homens, ou seja, sua tendência a entrar em sociedade que está ligada a uma oposição geral que ameaça constantemente dissolver essa sociedade.14

O antagonismo reside, para Kant, no próprio homem, embora seja vivenciado de forma intersubjetiva, e esse é o motivo do surgimento do Direito, tornar possível essa vivência intersubjetiva. O Direito nos é apresentado como objeto cultural, objeto criado pela “liberdade do homem, como autonomia”. Ele possibilitaria a marcha universal cosmopolita em direção à paz perpétua. Ele é um artifício, um poder segundo as leis, que busca promover a organização social dos homem, na forma de uma Constituição Civil.

Porém, em sentido diverso do que acreditava Santo Agostinho, para Kant, a marcha universal cosmopolita, possível através desse artifício, não conduz a um 13 Idem., p. 26.

14 KANT, Immanuel. A Idéia de Uma História Universal de Um Ponto de Vista Cosmopolita, trad.

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ponto de chegada, ou melhor, esse ponto permanece em aberto. Significa que o homem sempre se propõe fins e busca realizá-los, ele torna-se, por isso, autor do seu próprio destino. Na obra Antropologia Kant reafirma esse caráter do homem:

[...] o homem tem um caráter que ele mesmo cria para si mesmo, enquanto é capaz de se aperfeiçoar segundo fins que ele mesmo assume, por meio disso, como animal dotado da faculdade da razão.15

O interesse prático e o interesse teórico se unem na terceira questão kantiana, submetida à crítica, na medida em que ela busca saber se: “Aquilo que se apresenta como dever para nós, seres racionais, irá, um dia, se realizar?” A reflexão sobre a História surge não como uma previsão, ou mesmo como uma adivinhação da direção que o homem irá tomar. A crítica kantiana indaga: Sobre que condições seria possível realizar uma história que pudesse ser considerada racional?

Para Kant a Filosofia da História não é uma metodologia para uma ciência histórica construída sob a multiplicidade e a variedade dos eventos. A tarefa crítica que se apresenta é identificar um fio condutor a priori e, com ele, realizar o progresso como produto da inteligência humana, como resultado de uma filosofia prática.

Na obra intitulada O Conflito das Faculdades16, em especial quando Kant trata do conflito entre a faculdade da Filosofia e a faculdade do Direito, o autor indaga se a espécie humana está em constante progresso em direção ao melhor. Três respostas a esta pergunta seriam possíveis, são elas: a humanidade caminha em constante progresso em direção ao melhor; há a possibilidade de uma regressão em direção ao pior até que a humanidade se destrua a si mesma; e a terceira via, que a humanidade permaneça sempre no mesmo estado.

Por razões evidentes à Kant, não podemos demonstrar empiricamente, ou mesmo, especulativamente, que a história progride, degenere, ou permaneça 15 KANT, Immanuel. Antropologia de um Ponto de Vista Pragmático, trad. Clélia Martins, São

Paulo: Iluminuras, 2006 p. 216.

16 KANT, Emmanuel. Les Conflit des facultés. Oeuvres plilosophiques III, ed. Ferdinand Alquié,

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imóvel. Por isso, só nos restaria o conhecimento prático a priori da história. A idéia do progresso do Direito não advém assim de uma necessidade teórica, não nos encontramos no domínio do conhecimento, mas de uma necessidade prática da razão.

Conclui Kant que o Direito, enquanto sistema legítimo de limitações recíprocas, fruto da liberdade humana-objeto cultural,17 pode e deve realizar, por meio de um acordo - originado da vontade unificada - a Constituição Política que exerça o poder segundo as leis.18 E ainda, conclui que a mera disposição moral do gênero humano, voltado para a realização do Direito, pode e deve ser a causa do progresso constante da humanidade. Significa dizer: o gênero humano possui esta nota própria, e é ela que lhe garante o progresso.19

A conclusão acima apresentada concentra importantes conteúdos. Ela conduz à uma idéia que agrega toda a força argumentativa: O meio do homem sair da “rudeza”- como madeira retorcida- à cultura e desenvolver seus talentos, consistiria em um progressivo iluminar-se - Aufkarung.20

O conceito de “Iluminismo”21ou “Esclarecimento”, agrega os conceitos de racionalidade, moralidade e liberdade como autonomia da vontade. Significa que o esclarecimento vem acompanhado de um certo interesse do coração, o homem não pode deixar de ter o interesse em relação ao bem22e transmiti-lo, pelas 17 O homem, para Kant, é o único ser sobre a terra que tem a capacidade de por, a si mesmo,

fins segundo o seu arbítrio, merece o título de senhor da natureza, quando essa é considerada um sistema teleológico. Assim, a produção de um ser racional, com aptidão de produzir fins, é chamada de cultura. KANT, Emmanuel, Critique de La Faculté de Julger. Trad. Alexis Philonenko, Paris: J. Vrin 2000, p. 379.

18 Tarefa a mais difícil de todas, sua solução perfeita é impossível: de uma madeira tão

retorcida, da qual o homem é feito, não se pode fazer nada reto . KANT, Immanuel. Idéia de

Uma História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita, trad. Ricardo Terra, São Paulo:

Martins Fontes, 2004 p.12.

19 Este é o meio que a sábia natureza teve de garantir não só que o homem possa, mas que

ele, de fato, desenvolva todas as suas disposições naturais é o antagonismo. O homem tem a inclinação por se associar, busca proteção mas movido também pelas paixões ele tem ambição, desejo de poder e cobiça, o homem anseia a dominação. A insociável sociabilidade humana tem assim um papel fundamental como estímulo ao desenvolvimento, resistir e dominar suas próprias inclinações instituindo um Constituição Republicana. Idem, p. 8

20 Ibid., p. 9, 18.

21 Les lumières se définissent comme la sorti de l`homme hors de l´etat de minorité, òu il se

maintient par sa propre faute. KANT, Emmanuel. Réponse à la question: qu´est-ce que les

lumières? Oeuvres philosophiques II, trad. Heinz Wismann, Paris:Gallimard, 1985, VIII, 35,

p.209.

22 A idéia do Bem, já presente na República de Platão representa o ideal grego da unidade

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gerações, como legado. O homem irá sempre, dado a sua condição racional, considerar um outro ponto de vista. Essa disposição racional-moral do gênero humano é o “fio condutor” da História para a ampliação das liberdades, que pelas luzes, não encontra nenhum limite para os seus projetos.

Não foi possível à Kant, no domínio da razão teórica, apresentar uma prova da realidade do conceito de liberdade do homem. Fornecer uma dedução deste conceito, isso significaria provar, no domínio especulativo, a existência de seres livres, racionais. Na Crítica da Razão Prática, contudo, o autor fornece uma prova indireta; na segunda crítica a liberdade foi afirmada então como “fato da razão23”. Ela recebeu um status especial, como idéia transcendental, posto que condição de possibilidade das ações por dever, ações morais. Cito Kant:

Lembrarei apenas que a liberdade é, certamente, a ratio

essendi da lei moral, mas a lei moral constitui a ratio cognoscendo da liberdade.24

A liberdade racional nos foi dada, e isso é um fato. E a natureza não faz nada de supérfluo, ela não é perdulária. A razão não só encontra os melhores meios para a obtenção dos fins, mas ela própria - razão-pura-prática - propõe fins, e a vontade humana se determina por eles. Como tudo tende a desenvolver-se completamente - doutrina teleológica da natureza -, temos com isso um forte indício do que quis a natureza para o homem. Nos é possível, portanto, esperar que a espécie humana, em sua disposição moral-racional, transmita as luzes, na série indefinida das gerações, e tenha como fio condutor, a priori, a auto-estima racional. A terceira questão kantiana foi então respondida.

Em dezembro de 1784, um periódico alemão publicou a resposta kantiana à pergunta: O que são as luzes? – “Was ist Aufklarung?”A resposta kantiana declarou que “Esclarecimento” significa uma saída, algo que nos liberta da

caminho mais longo do conhecimento superior que conduz finalmente à idéia do bem. Assim como os objetos visíveis só são vistos quando o Sol brilha sobre eles, a verdade só é apreendida quando iluminada pela idéia do Bem. Os prisioneiros quando libertados da caverna finalmente verão o Sol e compreenderão a sua natureza! PLATON. La République , Oeuvres Complètes, trad. Léon Robin, Paris:Pléiade, 1950. VI, 504,505 p. 1091.

23 KANT, Emmanuel. Oeuvres Philosoplhiques II , Critique de la raison pratique, trad Ferdinand

Alquié, Paris:Gallimard, 1985 .V,31, p. 644.

24 “Lembrarei apenas que a liberdade é, certamente, a ratio essendi da lei moral, mas a lei

moral constitui a ratio cognoscendo da liberdade”. KANT, Emmanuel. Critique de la raison

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menoridade. E menoridade foi definida da seguinte forma: aceitar ou não a autoridade de alguém, sem reflexão, sem o uso da razão.

Em 1984, Michel Foucault publicou um texto homônimo ao texto de Kant “O que são as Luzes”. O texto de Foucault realiza uma interpretação da publicação kantiana, acima citada. Foucault argumenta que, na verdade, permanecemos há dois séculos buscando responder à essa mesma questão, proposta à Kant. Aliás, para o intérprete, o traço principal da Filosofia Moderna consiste, exatamente, em buscar uma resposta para essa questão. A interpretação de Foucault cria, para nós, um marco divisório no pensamento, ela introduz, na atualidade, um novo paradigma de história.

Para Foucault, o conceito kantiano de esclarecimento – emancipação, definido como saída da menoridade constitui-se como conceito ambíguo25. A ambigüidade estaria expressa da seguinte forma: por um lado, saída apresentar-se-ia como prerrogativa humana, razão pura prática, isto é, capacidade do homem de determinar-se sobre a sua vontade , como agente, por suas escolhas; por outro lado, o conceito de esclarecimento representaria um processo, uma tarefa, uma obrigação, no sentido socrático, como um poder-dever. Poder-dever no sentido de que o estado de menoridade é de responsabilidade do próprio homem, “estado em que não poderia sair senão por uma mudança operada em si mesmo”26.

Qual o imperativo que se impõe ao homem, para Kant? Trata-se de um comando cuja palavra de ordem é: AUDE SAPER!27 Tenha coragem. Tenha audácia de saber. E qual a interpretação dada por Foucault à esse imperativo?

O conceito expresso por esse comando exprime uma relação entre a vontade, a autoridade e o uso da razão prática. Ele se aplica, portanto, tanto `a dimensão privada: quando se refere à perseguição de fins circunstanciais, determinados e particulares no homem; como se aplica à política: quando ele se refere ao uso público da razão, ao homem como membro da comunidade racional.

25 FOUCAULT, Michel. O que são as luzes? 1984. Ditos e Escritos II, Arqueologia das Ciências e

História dos Sistemas de Pensamento. Trad. Elisa Monteiro, Rio de Janeiro: Forense Univ. 2008. p.338

26 Idem, p. 338.

27 KANT, Emmanuel. Oeuvres Philosophiques II, Réponse à la question: qu`est-ce que les lumières? Trad. Heinz Wismann , Paris: Gallimard, 1985. VIII,35 p. 209.

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Resta ainda saber, a respeito desta atitude de coragem: Como o uso da razão pode tomar a forma pública? Como a audácia de saber pode se exercer no domínio público-político? É preciso definir em que condições o uso da razão torna-se legítimo. A tarefa da crítica consistiria em: conciliar coragem e audácia com submissão à autoridade do poder.

A proposta de Foucault para o conceito de esclarecimento, como passagem da humanidade para seu estado de maioridade, vincula reflexão crítica e reflexão sobre a história. E é desse vínculo que surge o novo paradigma para história. Para o autor, a publicação kantiana contém o esboço do que se poderia chamar de “atitude da modernidade28”.

A Filosofia assume, para Foucault, a tarefa de reflexão sobre a atualidade, evidencia diferenças e singularidades históricas. A modernidade é então caracterizada como atitude; modo de relação; escolha voluntária de pensar, sentir e agir, no sentido que os gregos chamaram de êthos.29

O conceito de “Esclarecimento” revelou um atributo humano e também um dever. Dado que o homem em seu caráter empírico é um ser da natureza e, em seu caráter inteligível é sujeito de liberdade, esse conceito uniu razão pura e razão prática. Tanto a Crítica como a História possuem assim uma dupla tarefa: não apenas a de dizer “o que o homem é”, mas também a tarefa de apontar “o que ele vem fazendo de si mesmo.” É neste sentido que Kant acrescentou, tardiamente, uma quarta pergunta às questões já tão conhecidas: O que posso saber? O que devo fazer? O que me é lícito esperar? Acrescentou a questão: O que é o homem?30

Outra obra de Kant também foi objeto da análise de Foucault. A Antropologia, obra de 1798, ela contém características pragmáticas e seu objeto é o homem no mundo. Contudo, adverte Foucault, na sua interpretação, essa obra tem um outro objeto: o “conhecimento do conhecimento” do homem no mundo, na medida em que ela interroga o sujeito sobre ele mesmo, sobre seus limites e sobre aquilo que ele autoriza no saber que dele se tem. A Antropologia toma o 28 Idem, p. 342.

29 Idem, p. 345.

30 KANT, Immanuel. Lógica. Trad. Guido A. de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,

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lugar da Crítica, como ontologia do presente31, uma ontologia da atualidade, ontologia de nós mesmos.

A modernidade, segundo Foucault, não sacraliza o momento presente para mantê-lo ou perpetuá-lo. Na relação com o presente, o homem reconhece o real, identifica-o e, a partir disso, pode imaginá-lo diferente do que é, transformando-o. A consciência da descontinuidade do tempo permite ao homem não só tomar a si mesmo como objeto de investigação, mas ser ele mesmo sujeito de sua elaboração.

O modo de ser histórico, em sua singularidade na atualidade, tem como condição a idéia do homem como sujeito autônomo. Um êthos filosófico32 apresenta-se como crítica permanente do nosso ser histórico, isso é, como uma ontologia histórica de nós mesmos. O conceito de crítica não assume aqui a tarefa de identificar os limites que o conhecimento deveria renunciar transpor, nem tem o sentido de demostrar que a razão pode ser pura prática; a crítica assume em Foucault um sentido propositivo. A questão agora é identificar, naquilo que nos é apresentado como universal, necessário e obrigatório, qual é a parte que é singular, contingente e fruto de disposições arbitrárias.33

O novo conceito de História, que encontramos em Foucault, se identifica com a atitude crítica sobre os acontecimentos, ela é que permite identificar tudo aquilo que nos leva a nos constituirmos como sujeitos do que fazemos, pensamos e dizemos. A atitude crítica é que permite revelar a contingência que nos fez ser o que somos, fazemos ou pensamos e ainda, ela abre a possibilidade de não sermos mais, fazermos ou pensarmos.

Nesta ontologia crítica de nós mesmos, entretanto, renunciamos a pretensões de um conhecimento absoluto e definitivo, o que produzimos são vínculos transversais de saber, com competências específicas. A experiência que fazemos, teórica e prática de nossos limites e de uma ultrapassagem possível será portanto, sempre limitada, determinada e, recomeçada.

31 TERRA, Ricardo. Passagens – Estudos sobre a Filosofia de Kant. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ,

2003, p.174.

32 FOUCAULT, Michel. O que são as Luzes? Ditos e Escritos II. Trad. Elisa Monteiro. Rio de

Janeiro: Forense 2008. p.345.

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A ontologia crítica-histórica proposta por Foucault que, segundo suas próprias palavras, em certo sentido “termina e retorna à Kant”34, deve responder às seguintes indagações: como nos constituímos como sujeitos de saber; como nos constituímos como sujeitos que exercem ou sofrem relações de poder; e, como nos constituímos com sujeitos morais de nossas ações. O novo sentido da Filosofia Crítica é, simultaneamente, a análise histórica dos limites que nos são colocados e o instrumento de sua ultrapassagem possível.

Acreditamos que a maior contribuição que a análise crítica de Foucault trouxe ao pensamento foi revelar que o exercício da razão se transformou, no mundo hoje, em dominação da própria razão, dominação que usurpa o lugar da verdadeira liberdade. O ato de “desconstruir” possibilita demonstrar que a crença que temos no “desenvolvimento de um saber” não é, em si, garantia de libertação; mas, apenas uma miragem ligada `a uma dominação , `a uma hegemonia política.

E qual é o papel do Filósofo na sociedade? Foucault retoma essa antiga pergunta em uma obra, de 1966, intitulada O que é o Filósofo?35 Para o autor, diferentemente da resposta dada por Platão na República, o filósofo, na verdade, nunca encontra um papel na sociedade. E Sócrates é um excelente exemplo disso, como ele viveu diagnosticando o estado do pensamento36, nunca foi admitido na ordem existente, pior , ele foi condenado a morte, por ela.

A análise histórica como Filosofia Crítica tem, em Foucault, a tarefa de desconstruir; em sua interpretação, o imperativo kantiano decorre do imperativo socrático: “Ocupa-te de ti mesmo”, significa: “Constitua-te livremente, pelo comando de ti mesmo”.37Porém, de um século pra cá, a Filosofia Crítica deixou de ser uma especulação autônoma sobre o mundo, sobre o conhecimento e sobre o ser humano. Filosofia parou de legislar e de julgar, ela se tornou forma engajada

34Ibidem., p. 351.

35 PLATAO. La République. Trad. Léon Robin, Paris: Gallimard, 1950. V,473,474 p.1053. 36 FOUCAULT, Michel. O que é o Filósofo? Ditos e Escritos II, Arqueologia das Ciências e História dos Sistemas de Pensamento. Trad. Elisa Monteiro. Rio de Janeiro: Forense Univ.

2008, p 34.

37 FOUCAULT, Michel. A Ética do Cuidado de Si como Prática da Liberdade. 1984, Ditos e

Escritos V, Ética, Sexualidade , Política, Trad. Elisa Monteiro, Rio de Janeiro: Forense, 2006 p.287

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em determinado domínio. Seu papel hoje é descontruir para diagnosticar38 a atualidade.39Mas, o que isso significa?

Dizer a atualidade não significa descobrir e revelar verdades ocultas, mas tornar visível o que está tão perto, tão imediato, que por isso mesmo nós não percebemos. Cabe, portanto, à Filosofia “nos fazer ver o que vemos!” Além disso, ela deve advertir, em sua vertente crítica, quais são as relações de poder, os fenômenos de dominação em qualquer nível e de qualquer forma que eles se apresentem: político, econômico, social e institucional.

O trabalho de diagnóstico, contudo, exige uma presença física na realidade. O historiador do presente, não submete os acontecimentos à um discurso sobre os mesmos, mas atravessa fisicamente cada um dos acontecimentos, e é dessa experiência única que um verdadeiro diagnóstico pode emergir.

Para Foucault, o poder não é um bem alienável. Por isso, não se dá, nem se troca, nem se retoma; o poder apenas se exerce, ele só existe em ato40. As lutas políticas, como enfrentamentos silenciosos em busca do poder, podem gerar ou não modificações das relações de forças; o que o poder político sempre pretende é reinserir, perpetuar-se. E o que a história revela é o que nos é contado por quem, na relação tem o poder e, por isso mesmo, tem fala, conta a história.

O estudo do “como do poder”, do modo como ele se exerce, nos permite separar: de um lado, as regras de direito que delimitam formalmente o poder e, de outro lado, os efeitos de verdade que esse poder produz. Sempre coube à Filosofia fixar os limites do poder, enquanto discurso de verdade. Cabe a ela agora, segundo Foucault, indagar sobre esse tipo de poder e a sua produção, seus discursos de verdade.

38 Diagnóstico, ação de determinar uma doença segundo seus sintomas! FERREIRA, Aurélio

Buarque de Holanda, Dicionário, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.

39 FOUCAULT, Michel. A filosofia estruturalista permite diagnosticar o que é a atualidade. Ditos e Escritos II, Arqueologia das Ciências e História dos Sistemas de Pensamento. Trad. Elisa

Monteiro. Rio de Janeiro: Forense Univ. 2008, p. 57.

40 FOUCAULT, Michel. Em Defesa da Sociedade. Trad. Maria Ermantina Galvão. São Paulo:

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As relações de dominação e de sujeição não se encontram expressos apenas na lei, mas no conjunto das aparentes instituições, nos regulamentos que aplicam o Direito. O Poder nos submete à produção da verdade através de regras de direito e mecanismos de poder , “efeitos de verdade”. Cito Foucault:

“Contrariamente ao que diz a teoria filosófica-jurídica, o poder político não começa quando cessa a guerra. A lei não nasce da natureza, junto das fontes freqüentadas pelos pastores; a lei nasce das batalhas reais, das vitórias, dos massacres, das conquistas que tem sua data e seus heróis de horror; a lei nasce das cidades incendiadas, das terras devastadas; nasce com os inocentes que agonizam no dia que está amanhecendo”.41

Portanto, a lei não é pacificação, com ela a guerra continua fazendo estragos. Aquele que narra a história, aquele que recobra a memória e conjura os esquecimentos, está forçosamente de um lado ou de outro, está na batalha, trabalha sempre para uma vitória particular. O que reclama é que se faça valer os seus direitos. Portanto, se trata de um discurso de perspectiva. É esse o sentido dado por Walter Benjamin em sua oitava tese sobre o conceito de história,42 contada desta vez pelos oprimidos;43a proposta é que a história passe a contar a perspectiva dos oprimidos, e que o excluído possa ter uma fala. Que não haja o excluído.

Os adversários nos fazem acreditar num mundo ordenado e pacificado. Porém, na verdade, isso nada mais é que um mecanismo de poder; é um “mais de força”44, que funciona explicitamente como arma para uma vitória exclusivamente 41 Idem, p. 59.

42 A tradição dos oprimidos nos ensina que o “estado de exceção no qual vivemos é a regra. Precisamos chegar a um conceito de história que de conta disso. Então surgirá diante de nós nossa tarefa, a de instaurar o real estado de exceção; e graças a isso, a nossa posição na luta contra o fascismo tornar-se-a melhor. [...]; LOWY, Michael, Walter Benjamin: Aviso de Incêndio.

Trad. Wanda Nogueira Caldeira Brant, São Paulo: Boitempo, 2005, p.83.

43 Benjamin confronta, aqui, duas concepções de história - com implicações evidentes para o

presente: a confortável doutrina progressista, para a qual o progresso histórico, a evolução das sociedades no sentido de mais democracia, liberdade e paz, é a norma, e aquela que ele afirma ser seu desejo, situada do ponto de vista da tradição dos oprimidos, para a qual a norma, a regra da história é, ao contrario, a opressão, a barbárie, a violência dos vencedores. Idem. p.83.

44 FOUCAULT, Michael. Em Defesa da Sociedade, Trad. Maria Ermantina Galvão, São Paulo:

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partidária. O que vemos como polaridade, como fratura binária, não é o enfrentamento de duas raças; é o desdobramento de uma única e mesma raça em uma super-raça e uma sub-raça. O combate entre uma raça considerada como sendo verdadeira e que detém o poder, e que é titular da norma45, contra aqueles que estão fora dessa norma, em estado de exceção46 permanente, e que constituem, nesse entendimento do poder, inclusive perigo para o patrimônio biológico.

O discurso filosófico-jurídico sustentou, por tanto tempo, que “temos de nos defender contra nossos inimigos...”. O discurso que nos deparamos agora, que fundamenta o racismo presente nos mecanismo do próprio Estado é o de que “ temos de defender a sociedade contra os perigos biológicos dessa outra raça, dessa sub-raça, dessa contra-raça que estamos, sem querer, constituindo”.47

Neste sentido Foucault finaliza por indagar:

“como esse poder que tem essencialmente o objetivo de fazer viver pode deixar morrer? A inserção do racismo nos mecanismos de Estado, incumbiu a ele um corte: o corte entre o que deve viver e o que deve morrer”.48

O método crítico apresentado por Foucault traz a capacidade de problematizar a verdade pelo questionamento do próprio processo da sua produção. Ou seja, exatamente por considerar que a verdade é um produto, resultado de um jogo de forças, não existe, nesta perspectiva, nem natureza, nem essência de verdade. A crítica do presente consiste em demonstrar que ele não é resultado de um processo histórico necessário, nem prefiguração de um futuro esperado, o presente consiste em uma contingência.

Nessa nova concepção de história podemos perceber , naquilo que se apresenta como necessidade racional, o fundamento fictício. A análise do momento presente, como diagnóstico da atualidade, permite não apenas 45 “A critica da violência, ou seja, a crítica do poder, é a filosofia de sua história. Poder,

enquanto meio é ou instituinte ou mantenedor de direito.” BENJAMIN, Walter, Documentos

de Cultura, Documentos de Barbárie. Trad. Willi Bolle, São Paulo: Cultrix, 1986, p. 167 e 174. 46 O conceito de estado de exceção é amplamente trabalhado por Giorgio Agamben em

diversas obras, entre outras: Estado de Exceção, Homo Sacer- o Poder soberano e a vida nua I.

47 FOUCAULT, Michel. Em Defesa da Sociedade. Trad. Maria Ermantina Galvão, São Paulo:

Martins Fontes, 2005, p. 73.

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caracterizar o que somos, permite ainda apreender “por onde e como”, de tal forma que isso que se apresenta hoje possa não ser mais o que é. Uma espécie de fratura virtual, que abre um espaço para a liberdade, de transformação possível. Dizer o que existe, fazendo-o aparecer como podendo não ser, ou podendo não ser como é49.

Já sabemos que a função do intelectual é buscar formular corretamente problemas. Resta acrescentar que apenas indivíduos diretamente implicados são capazes de dizer quais são os problemas ou questões que devemos nos ocupar. E ainda, resta afirmar: as certezas produzidos serão, necessariamente, certezas provisórias, determinadas e específicas.

Um último problema se apresenta, agora, para nós: Sendo o presente descontínuo, contingente e específico, o que funda a verdade? O que é capaz de lhe dar legitimidade e validade própria? Foucault se reporta à Filosofia grega, à necessária relação entre vida e conhecimento; entre as qualidades morais para a aquisição da verdade e posse da verdade; relação exigida entre o que se pensa, o que se diz e o que se faz e o que se é; mencionado por nós no início desse trabalho.

Em curso dado no Collège de France, transformado posteriormente em importante obra intitulada A Hermenêutica do Sujeito50 Foucault retoma o conceito grego: “parrhesía”, que etimologicamente pode ser definida como sendo dizer-tudo, atitude de franqueza, de liberdade e abertura. Cito Foucault:

“Parrhesía, faz com que se diga o que se tem a dizer, da maneira com que se tem vontade de dizer, quando se tem vontade de dizer e segundo a forma que se crê ser necessário dizer”51.

O termo está ligado à escolha, à decisão, à atitude de quem fala, envolve uma articulação entre o domínio de si e estar com os outros. Tal atitude conduz a 49 FOUCAULT, Michel. Estruturalismo e Pós-estruturalismo 1983. Ditos e Escritos II, Arqueologia das Ciências e História dos Sistemas de Pensamento, Trad. Elisa Monteiro, Rio de

Janeiro: Forense, 2008. p.325

50 FOUCAULT, Michel. A Hermenêutica do Sujeito. Trad. Márcio Alves da Fonseca, São Paulo:

Martins Fontes, 2006.

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um risco moral, pois é a transmissão nua da própria verdade e, ainda, é a transmissão nua daquele que fala. Seu exercício é comandado pela generosidade e não pelo interesse. Atitude que representa uma soberania sobre si mesmo, é virtude, é palavra - comprometimento52!Palavra que vale como elo, constitui um certo pacto entre o sujeito da enunciação e o sujeito da conduta.

Assim, nos moldes dos antigos gregos, parece que, em Foucault, a relação com a verdade é imediatamente moral. A aquisição da verdade depende da capacidade de alcança-la e de se tornar digno dela. Parrhésia é uma atividade verbal na qual o falante exprime sua relação pessoal com a verdade, não como arte de persuadir ou bajular. Trata-se de ato de coragem como verdade, que é emancipação e ainda engajamento. E desse lugar encontrado para a verdade, deriva o corolário: a indignidade de se falar pelos outros,53 em memórias artificiais e na criação de sistemas de saberes delirantes justificados como racionais, e ainda com de licença moral para a perversidade e arbitrariedade.

O que podemos, por fim, concluir desses dois diferentes paradigmas do pensamento quanto a compatibilidade de suas propostas?

A Filosofia da História, na construção arquitetônica kantiana, decorreu da necessidade prática da razão. A disposição racional-moral do gênero humano fundamentou a idéia de progresso em direção à ampliação das liberdades. A Crítica atribuiu ao Direito a função de possibilitar a coexistência entre os homens, e o Direito foi concebido como sistema de limitações recíprocas, vontade unificada, fruto de um acordo originário e exercício legítimo do poder segundo leis. A História, dentro desse sistema, apresenta-se como idéia reguladora, portanto, como o que nos faz acreditar na conformidade entre teoria e prática, cujo fio condutor é a auto-estima racional. Ela conduz o homem, ao longo das gerações, pelo Direito.

52 Ibidem p 492

53 Agamben tematiza o paradoxo do falar pelo outro, do verdadeiro testemunho, narrar o não

dizível, ser mandatário , por delegação, daquele que não tem voz. Chama de “muçumanos, as testemunhas integrais, que já tinham perdido a capacidade de observar, recordar, medir e se expressar, aquelas para quem falar de dignidade e de decência não seria decente.” AGAMBEN,Giorgio. O que resta de Auschwitz, Homo Sacer III. Trad. Selvino Assmann. São Paulo:Boitempo, 2008, p 67.

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Para Foucault, a Filosofia Crítica tem como tarefa a desconstrução, dado que a exacerbação da razão pode conduzir a conclusões e efeitos fictícios. O trabalho do historiador do presente é submeter a relação entre a vontade, o uso da razão prática e a autoridade `a análise crítica. O conceito de crítica é unido ao conceito de história e revela: aquilo que se apresenta como saber é produção de um mecanismo de poder e de verdade. O filósofo-historiador deve diagnosticar a atualidade e, assim, advertir, através do “como”, ou seja, da atividade de descrição dos fatos, quais são os efeitos de verdade.

Advertir é mais do que denunciar relações de poder, de sujeição- dominação.É também emancipar-se pelo engajamento. O risco moral da franqueza assumida é soberania de si mesmo, é coragem e comprometimento. Parece que a máxima socrática do “constitui-se livremente pelo comando de ti mesmo” e o imperativo kantiano da “Auder Saper”, coragem de saber, permanecem como referências para a ontologia crítica de nós mesmos, na atualidade.

Quanto `as conseqüências que essa nova perspectiva do pensamento traz para o Direito, se o que encontramos expressos nas leis não são uma vontade unificada, por meio de um acordo, mas efeitos de verdade, necessariamente o Direito precisa ser repensado, e encontrado para ele um novo lugar.

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