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O VIAJANTE EUROPEU COMO MEDIADOR CULTURAL: DEBRET, MARIA GRAHAM E O BRASIL OITOCENTISTA

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VII Simpósio Nacional de História Cultural

HISTÓRIA CULTURAL: ESCRITAS, CIRCULAÇÃO,

LEITURAS E RECEPÇÕES

Universidade de São Paulo – USP

São Paulo – SP

10 e 14 de Novembro de 2014

O

VIAJANTE EUROPEU COMO MEDIADOR CULTURAL

:

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EBRET

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ARIA

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RAHAM E O

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RASIL

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ITOCENTISTA

Anderson Ricardo Trevisan

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IAGENS E VIAJANTES

A descoberta do continente americano estimulou a criação de inúmeros relatos de viagem, recheando, assim, o imaginário europeu sobre esse “novo mundo”. Com o mercantilismo, o mundo se tornava menor, e as viagens de circunavegação, se tinham como principal horizonte o desenvolvimento econômico, também possibilitou a criação de uma vasta literatura a respeito desses territórios, nascida do encontro entre a Europa e o novo continente americano.1

Pode-se dizer que em meados do século XVIII aconteceu uma espécie de Renascimento científico na Europa, de cunho iluminista, que concebia o cientista como um homem prático e de ação, destinado a promover o bem estar coletivo com invenções e descobertas, o que impulsionou as chamadas ciências naturais.2 O mundo, visto dessa maneira, se tornava um grande laboratório para os viajantes naturalistas, homens da

* Pós-Doutorando em Teoria e História Literária, IEL, UNICAMP; Pós-Doutor em Sociologia do

Cinema, FFLCH, USP; Doutor em Sociologia da Arte, FFCLH, USP; Bacharel em Ciências Sociais, UNESP.

1 Cf. Ana Maria de Moraes BELLUZZO, O Brasil dos viajantes, vol. 1: O imaginário do Novo Mundo,

São Paulo: Metalivros; Salvador: Fundação Emílio Odebrecht, 1999, p. 67.

2 Cf. Maria Odila DIAS, “Aspectos da ilustração no Brasil”, in: Revista d IHGB, vol. 278, jan-mar 1968,

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ciência financiados por instituições científicas para compararem e classificarem elementos da fauna e da flora em terras distantes, enquanto avaliavam a contribuição humana na terra.3 O Brasil se tornaria um dos destinos favoritos desse tipo de expedição,

dando origem a vasto material literário e visual.

Dessa época em diante a documentação sobre a terra “descoberta” passaria a aumentar, ao longo de vários anos e várias expedições que aqui aportaram em busca de informações. Durante muito tempo, porém, Portugal controlou de perto as informações sobre o Brasil, e o pouco que permitiu que circulasse na Europa não teve grande impacto internacional.4 Até a abertura dos portos, em 1808, Portugal proibia não apenas a entrada de estrangeiros ao país como dos próprios portugueses, que jamais podiam aqui aportar sem previa autorização.5 No entanto, era possível atracar nos portos, com a finalidade de abastecer os navios; como sempre havia desenhistas entre os tripulantes, muitas cidades litorâneas brasileiras eram registradas nessas ocasiões.6

O cenário começa a se alterar em 1808, com a transferência da Família Real portuguesa para a colônia. Como se sabe, nessa mesma ocasião o príncipe regente promoveria a abertura dos portos às nações amigas, que na ocasião era o mesmo que dizer Inglaterra. Os viajantes ingleses já haviam passado pelo Brasil antes de 1808, mas agora tinham oficialmente o direito entrar no país, construindo uma oportunidade para que outros viajantes, como a inglesa Maria Graham, de quem falarei mais adiante, se aventurassem pelo país.

Dessa época em diante as expedições europeias pelo Brasil seriam muitas, acessando agora o interior do Brasil. O casamento de D. Pedro com Leopoldina motivaria a vinda da Missão Austríaca (1817-1821), no interesse de se criar um museu brasileiro na cidade de Viena. Seus membros, entre naturalistas ou artistas como Karl Philip von Martius, Johann von Spix e Thomas Ender, se reuniram em grupos variados e passaram por várias regiões do país.7 Outro grupo a ser destacado seria o da Expedição do Barão de Langsdorf (1822-1829), que traria entre seus membros o pintor Johann-Moritz

3 Cf. Lilia Moritz SCHWARCZ, O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil,

1870-1930, São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p, 69.

4 Cf. Ana Maria de Moraes BELLUZZO, op. cit., vol. 2, Um lugar no universo, 1999, p. 48.

5 Cf. Ana Maria de Moraes BELLUZZO, op. cit., vol. 2, 1999, p. 49.

6 Cf. Ana Maria de Moraes BELLUZZO, op. cit., vol. 2, 1999, p. 80.

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Rugendas,8 que mais tarde publicaria na Europa seu livro com imagens e textos sobre o

Brasil.9 Um dos grupos mais importantes, em termos de quantidade de profissionais e de

impacto cultural, seria a Missão Artística Francesa de 1816, que teria entre seus membros o pintor Jean-Baptiste Debret (1768-1848).

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A Missão Artística Francesa era composta por cerca de 40 profissionais das mais diversas áreas, que teriam vindo ao país a convite de D. João para fundarem uma escola de Belas Artes, bem como renovar a cultura e a paisagem de maneira geral, de modo a realizar melhoramentos no Rio de Janeiro, então capital do Reino Unido de Brasil, Portugal e Algarves.10

Um dos idealizadores dessa missão seria o naturalista Alexander von Humboldt, que tinha conhecimento do Brasil e era uma referência sobre o assunto11. Humboldt tinha

8 Rugendas abandonou a expedição logo no começo, quando estavam em Minas Gerais, por conta de

desavenças com o Barão. Ele teria dois substitutos: Aimé-Adrien Taunay, filho de Nicolas Antoine Taunay, e Antoine Hercule Florence, que chega ao Rio em 1824 (cf. Ana Maria de Moraes BELLUZZO, op. cit., vol. 2, 1999, p. 80, p. 125).

9 Voyage pittoresque dans le Brésil, de 1835. Segundo Belluzzo, 1835 foi o ano do lançamento do livro

em sua edição final, pois desde 1827 Rugendas iniciou o processo de gravação e comercialização das imagens. Ao todo, foram editados vinte cadernos, com cinco folhas cada um, com texto em alemão e em francês (cf. Ana Maria de Moraes BELLUZZO, O Brasil dos viajantes, v. 3: A construção da

paisagem, op. cit., 1994, p.80). Os textos do livro não são de autoria de Rugendas, mas de V. H. Huber,

em Paris, que cria os textos jornalísticos que acompanham as gravuras a partir de cartas recebidas do pintor. (Idem, p. 77).

10 Alguns autores questionam a ideia desse “convite”, na medida em que uma expedição composta por

grande número de bonapartistas, justamente após a queda de Napoleão Bonaparte, parecia ser um desterro disfarçado. A questão é polêmica, existe desde a época da Missão Francesa e, para os efeitos deste projeto, não se revela de grande relevância. Discuti o assunto em Anderson Ricardo TREVISAN, “Debret a Missão Artística de 1816: aspectos da constituição do ensino artístico acadêmico no Brasil”, in: Plural, Revista do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da USP, São Paulo, nº 14, 2007.

11 “A nova concepção científica da paisagem, cunhada por Alexander von Humboldt, motiva grande

número de viajantes, não só alemães, e austríacos, mas também outros sábios relacionados ao círculo da Academia de Ciências de Paris, que se dirigem ao Brasil após a abertura dos portos, no ciclo das grande expedições da primeira metade do século XIX”. (Ana Maria de Moraes BELLUZZO, op. cit., vol. 2, 1999, p. 80, p. 10). A “ciência Humboldtiana” (termo cunhado por Susan Cannon) era baseada em um discurso sobre a paisagem, que se baseava em medir e mapear a natureza (cf. Luciana de Lima Martins, O Rio de janeiro dos viajantes: o olhar britânico (1800-1850), Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001, p. 16). Humboldt reinventa, como explica Marie Louise Pratt, a América do Sul enquanto natureza, uma natureza extraordinária, espetacular, “capaz de superar o entendimento e conhecimento humanos” (Marie Louise PRATT, Imperial eyes: travel, writing and transcultural, New York: Routledge, 1997, p. 120).

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contato com Joaquim Lebreton, ex-secretário da Academia de Belas-Artes do Instituto de França, que por sua indicação se tornou o líder do grupo.

Jean-Baptiste Debret vinha na condição de pintor de quadros históricos, abandonando seu passado bonapartista para se tornar pintor da corte de D. João e de D. Pedro, bem como professor de pintura de história12 na escola de Belas Artes que iria, junto com os demais franceses, ajudar a criar. Também acabou trabalhando como decorador do Teatro Real/Imperial. Debret viveu 15 anos no Brasil, retornando para Paris em 1831, onde publicou Voyage pittoresque et historique au Brésil, obra em três volumes que apresentava centenas de gravuras sobre o país, além de textos com descrições da paisagem, da política, da religião e da cultura brasileiras, bem como trazendo explicações para as imagens.

Dentre os missionários franceses, Debret foi o que mais tempo ficou no Brasil, sendo que por essa razão ele é mais do que um viajante, é um estrangeiro,13 tendo grande responsabilidade pela instalação da Academia de Belas-Artes e pelo desenvolvimento do ensino artístico acadêmico no Brasil.14

Acredito que Debret seja um exemplo de mediador cultural, esse agente oitocentista que chega ao país munido de toda uma formação cultural, se instala e, em várias frentes, interage com a cultura local (no seu caso, como professor de pintura, como decorador do Teatro Real/Imperial e seja como “intérprete” do país,15 a partir de sua arte,

seja ela literária ou visual16). Além disso, a experiência brasileira de Debret marcou sua

12 Entre seus alunos estava Araújo Porto Alegre, que o acompanhou até a França na ocasião de sua volta,

para ter aulas com Gros.

13 Utilizo aqui o conceito fornecido por George Simmel, para quem o estrangeiro se difere do viajante,

pensado como aquele que chega hoje e parte amanhã. Para Simmel o estrangeiro é aquele que chega hoje e amanhã fica, sendo, portanto, um viajante potencial que, “(...) embora não tenha partido, ainda não superou completamente a liberdade de ir e vir. Fixou-se em um grupo espacial particular, ou em cujos limites são semelhantes aos limites espaciais. Mas sua posição no grupo é determinada, essencialmente, pelo fato de não ter pertencido a ele desde o começo, pelo fato de ter introduzido qualidades que não se originaram nem poderiam se originar no próprio grupo” (George SIMMEL, “O estrangeiro”, in: MORAES FILHO, E. (org.). Simmel: Sociologia. São Paulo, Ática, 1983. p. 183). Luís Felipe de Alencastro chega a afirmar que Debret era um pintor brasileiro, tamanho seu envolvimento com o país (Luiz Felipe de Alencastro, “La plume & le pinceau”, in: Patrick Straumann (org.), Rio de

Janeiro, la ville métis. Illustrations & commentaires de Jean-Baptiste Debret. Paris: Chandeigne, 2001).

14 Desenvolvo o assunto em TREVISAN, 2007, op. cit.

15 Penso que o termo “intérprete” é problemático, na medida em que isso significaria supor que o país é

algo “dado” que demandaria apenas uma interpretação, daí o uso das aspas. Antes, toda interpretação é uma construção, que irá nortear o imaginário sobre um lugar ou uma época,

16 Desenvolvo o assunto em Anderson Ricardo TREVISAN, Aquarelas do Brasil: estudos sobre a arte

“documental de Debret, Dissertação de Mestrado, São Paulo, FFLCH-USP, 2005, ______, “Debret e a Missão Artística Francesa de 1816: aspectos da constituição da arte acadêmica no Brasil”, op. cit., 2007

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existência, tendo sido transformada em livro entre os anos de 1834 e 1839, publicado na França pela Firmin Didot et Frères.17 Essa circularidade, diga-se de passagem, é uma

característica do processo de transferências culturais.

Mas Debret não seria um caso isolado. Na mesma época, outra artista europeia passaria pelo Brasil, trabalharia junto à Família Imperial, colheria informações sobre o país e publicaria um livro sobre essa experiência. Respeitando as particularidades de cada um, acredito que assim como Debret, Graham pode ser pensada como uma mediadora cultural oitocentista.

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A Coroa Britânica também trataria de enviar expedições aos chamados mares do sul, que deram origem a várias publicações, como A Viagem ao redor do mundo de George Anson, publicada em 1740 e escrita por Richard Walter, e a Banks’ Florilegium, de Alexander Buchan e Sydney Parkinson (que participaram da expedição de James Cook, de 1768), obra publicada em 34 volumes.18 Essas viagens e suas publicações resultantes funcionavam como um mecanismo de promoção da imagem das nações empreendedoras, que ostentavam suas realizações através de representações visuais dos lugares visitados, que legitimavam seu poder.19 Podemos compreender essas obras como indicativos do impacto que os países visitados causavam nas nações empreendedoras, pistas para perceber o processo de transferências culturais, pensado como uma via de mão dupla e não como mera imposição de uma cultura sobre a outra. Com a abertura dos portos muitos seriam os britânicos a aportarem no Brasil em expedições exploratórias, com destino ao interior do país. Esse foi o caso de Maria Graham.

Escritora e pintora amadora, Maria Graham (1785-1842) experimentou o mundo das viagens desde cedo, acompanhando seu pai, George Dundas, em viagens pela índia durante sua juventude. Passou pela Itália em 1819, para estudar a obra do pintor Nicolas Poussin (o que resultou em uma publicação). Passou pelo Brasil em três momentos: em

e ______, Velhas imagens, novos problemas: a redescoberta de Debret no Brasil modernista (1930-1945), Tese de Doutorado, São Paulo, FFLCH-USP, 2011.

17 Voyage pittoresque et historique au Brésil,ou Séjour d’un artiste français au Brésil, depuis 1816 jusqu’en 1831 inclusivement ... Paris, Firmin Didot et Frères, 1834-39.

18 Cf. Ana Maria de Moraes BELLUZZO, op. cit., vol. 2, 1999, p. 82.

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1821, a caminho do Chile, acompanhando seu Mario e capitão da Marinha Real Inglesa, Sir. Thomas Graham, tendo em seu itinerário Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro. Em 1822, quando ainda estavam no Chile, Thomas Graham morreu, e Maria Graham voltou ao voltou Rio de Janeiro, quando conheceu o pintor Augustus Earle, de quem se tornou amiga.20

Nessa ocasião, Graham foi convidada por D. Pedro I para ser preceptora das suas filhas, função que exerceu por um curto período de tempo no ano de 1824, tendo retornado brevemente à Inglaterra antes de realizar essa incumbência, a fim de conseguir material didático para uso no processo de educação das princesas. A escritora voltou para a Inglaterra em 1825 e se casou com Augustus Calcott, em 1827.21 Por essa razão, Maria Graham também é conhecida como Lady Calcott. Da sua viagem ao Chile resultou o livro Journal of a Residence in Chile during the Year 1822. And a Voyage from Chile to Brazil in 1823, e de sua passagem pelo Brasil nasceu Journal of Voyage to Brazil: and residence there during part of de years 1821, 1822 e 1823, ambos publicados em 1824.

O livro de Graham sobre o Brasil seria publicado aqui em 1956, com o título Diário de uma viagem ao Brasil e de uma estada nesse país durante parte dos anos de 1821, 1822 e 1823, com tradução e introdução de Américo Jacobina Lacombe, pela Companhia Editora Nacional. A obra original, em apenas um volume, contém praticamente apenas textos descritivos de sua experiência, com umas poucas gravuras, feitas pela própria autora;22 a edição brasileira, por sua vez, incluiu vinte e uma gravuras

inéditas, o que torna a edição bastante especial.23 O livro segue a receita das inúmeras

publicações de viagens da época, aproximando-se do gênero “viagem pitoresca”, ainda que isso não seja revelado no título. As viagens pitorescas tiveram enorme sucesso editorial entre o final do século XVIII e meados do XIX, tendo sido publicados dez títulos entre 1781 e 1805, entre exemplares ingleses, franceses e alemães, como Voyage em

20 Cf. Ana Maria de Moraes BELLUZZO, op. cit., vol. 3: A construção da paisagem, 1999, p. 181.

21 Cf. Ana Maria de Moraes BELLUZZO, op. cit., vol. 3, 1999, p. 181.

22 Três desenhos foram fornecidos pelo amigo e pintor Augustus Earle: O mercado de escravos do Rio, O

mercado de escravos de Recife e Retrato de Maria Quitéria.

23 Segundo o tradutor da obra brasileira, em 1845, sir William Calcott, viúvo de Maria Graham, doa ao

British Museum inúmeros desenhos da autora referentes ao Brasil, que foram conseguidos pelo

Embaixador Joaquim de Sousa Leão Filho e cedidos à Companhia Editora Nacional para que compusessem a nova edição (cf. Americo Jacobina LACOMBE, “Advertência do Tradutor”, in: Maria GRAHAM, Diário de uma viagem ao Brasil, Belo Horizonte: Editora Itatiaia Limitada; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1990, p. 16).

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Grèce, de Choiseul-Gouffier (1781), Voyage Pittoresque, ou Description des Royaumes de Naples et de Sicile, de Saint-Non (1781), Voyage Pittoresque de la Syrie, de la Phoenicie, de la Palestine e de la Basse Aegypte, de 1799, entre outros. No caso brasileiro, as mais célebres publicações nesse sentido talvez sejam as viagens pitorescas de Debret e Rugendas.

Por mais que Graham não tenha utilizado o termo “pitoresco” no título, é possível perceber no livro elementos do gênero, tanto nas imagens quanto nos textos. Isso, de todo modo, não é algo surpreendente, se levarmos em consideração que a construção do chamado gosto pitoresco vem da Inglaterra setecentista, como um modo de olhar mundo, a natureza, e também as obras de arte. A concepção nasceria da jardinagem inglesa em 1780, que apresentava um conjunto de referências não apenas de organização dos jardins, mas também para o ato de ver o mundo ao redor. Na época se valorizava muito os passeios, que eram concebidos como um exercício espiritual, sobretudo no meio rural.24 Apreciar um jardim paisagístico inglês, no século XVIII, requeria “uma educação clássica e algum conhecimento de história e literatura, necessários para se captar todas as referências a Horácio e Virgílio ou alusões a Poussin e Claude Lorrain”.25 Pensar o

pitoresco é pensar em uma concepção que permitia a ver o mundo como se fosse uma pintura, é um olhar orientado para a natureza.26

Maria Graham, portanto, foi uma viajante, escritora e pintora amadora, que veio ao Brasil nos primeiros anos da independência, teve contato com sua população, e publicou o resultado dessa experiência de viagem em um livro contendo textos e imagens. A análise de sua obra permite perceber que ela sistematiza, classifica, hierarquiza, e define a diferença entre o nacional (britânico) e o estrangeiro (o brasileiro). O resultado, porém, não é de uma separação entre o local e o extraterritorial, mas aponta para uma justaposição entre os dois espaços, duas culturas, numa atitude de mediadora cultural. O mediador cultural ou passeur culturel é um agente duplo, aquele que coloca duas culturas em contato;27 é ele o agente das transferências culturais, de um processo que envolve

24 Cf. Ana Maria de Moraes BELLUZZO, op. cit., vol. 3, 1999, p. 18.

25 Cf. Keith THOMAS, O homem e o mundo natural, São Paulo, Companhia das Letras, 1989, p. 314.

26 E. H. GOMBRICH, A história da arte, Rio de Janeiro: Editora Guanabara., 1972, p. 411.

27 Ver Diana COOPER-RICHET, “Introduction”, in: Passeurs culturels dans le monde des médias et de

l’édition en Europe (XIXe et XXe siècle) sous la direction de Diana Cooper-Richet, Jean-Yves Mollier,

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influências mútuas, que não se limita a um dar e um tomar, mas envolve trocas, misturas, em uma via de mão dupla. 28

Maria Graham foi preceptora das princesas e confidente da Imperatriz Leopoldina, situação que lhe permitiu escrever, na Inglaterra, a biografia do monarca.29 De várias maneiras, portanto, ela aproximou Brasil e Inglaterra numa interação dinâmica, através da circulação de ideias e impressos.

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MEDIADORES CULTURAIS

Diante do exposto, podemos perceber alguns elementos comuns entre Debret e Graham: ambos são estrangeiros que passaram pelo Brasil na mesma época, trabalharam junto à monarquia, exerceram atividades de instrução (Debret como professor de pintura de história e Graham como preceptora da Família Imperial) e publicaram em livro suas experiências.

Debret, artista neoclássico e discípulo do célebre Jaques-Louis David, chegou ao Brasil tendo como uma de suas “missões” contribuir para a implementação do ensino artístico acadêmico e, dentro disso, acabou inaugurando o gênero de pintura de história no país. Ao regressar para a França levou consigo o aluno Araújo Porto alegre, para que tivesse aulas com o pintor Antoine-Jean Gros (1771-1835); levou também centenas de pequenas imagens sobre o país, a maioria composta de aquarelas, que seriam a base para as gravuras que comporia seu Voyage pittoresque et historique au Brésil, obra que demorou cinco anos para ser publicada integralmente (1833-1839) e que acabou marcando os anos finais da vida de Debret, que morreu em 1848. As trocas realizadas entre França e Brasil graças a esse artista não se limitaram ao seu livro, mas também à circulação de pessoas, se pensarmos em seu discípulo Porto alegre.

Graham, se não ficou por aqui tanto tempo quanto o velho artista bonapartista, teve como vantagem a possibilidade e disposição de ir e ir conforme a necessidade. De passagem pelo país acabou sendo convidada para trabalhar com a educação dos filhos do Imperador, tornando-se também confidente da Imperatriz Leopoldina. Nesse sentido,

28 Cf. Michel ESPAGNE, Les transferts culturels franco-allemands, Paris: Presses Universitaries de

France, 1999, p. 156.

29 O manuscrito foi finalizado em 1835, mas somente publicado nos Anais da Biblioteca Nacional do Rio

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diferente de Debret, que tinha uma relação de maior distanciamento com os monarcas, Graham vivenciava de perto sua intimidade, o que permitiu que escrevesse uma biografia sobre D. Pedro I. Outro ponto importante a ser destacado é que Graham pôde voltar para a Inglaterra para coletar material didático para ser utilizado na educação das infantas, o que é uma evidência de que, além de ideias, a autora promoveu a circulação de impressos entre Europa e Brasil.

Nessa comparação, tentei apontar que tanto Debret como Graham foram responsáveis por trocas culturais entre os continentes americano e europeu, sobretudo por terem se dedicado à atividades de instrução no país visitado.30 A experiência nessa zona de contato31 foi materializada, por ambos, em publicações do gênero narrativa de viagem. Nesses termos, ambos podem ser considerados mediadores culturais, agentes que realizam transferências culturais, colocando em contato culturas díspares e construindo um novo conhecimento a partir dessa interação.

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EFERÊNCIAS

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IBLIOGRÁFICAS

ALENCASTRO, Luiz Felipe de. “La plume & le pinceau”. In: Patrick Straumann (org.), Rio de Janeiro, la ville métis. Illustrations & commentaires de Jean-Baptiste Debret. Paris: Chandeigne, 2001.

BELLUZZO, Ana Maria de Moraes. O Brasil dos viajantes. Volumes 1 a 4. São Paulo: Metalivros; Salvador: Fundação Emílio Odebrecht, 1999.

COOPER-RICHET, Diana. “Introduction”. In: Passeurs culturels dans le monde des médias et de l’édition en Europe (XIXe et XXe siècle) sous la direction de Diana Cooper-Richet, Jean-Yves Mollier, Ahmed Silem, Villeurbanne Cedex: Presse de l’enssib, 2005. DEBRET, Jean-Baptiste. Voyage pittoresque et historique au Brésil,ou Séjour d’un artiste français au Brésil, depuis 1816 jusqu’en 1831 inclusivement ... Paris, Firmin Didot et Frères, 1834-39.

DIAS, Maria Odila. “Aspectos da ilustração no Brasil”. In: Revista d IHGB, vol. 278, jan-mar 1968.

30 Em minha atual pesquisa (Cultura, educação e circulação dos impressos e de ideias no século XIX: o

caso de Maria Graham e outros mediadores culturais estrangeiros no Brasil oitocentista (1808-1831),

Pós-Doutorado, IEL, Supervisora: Márcia Abreu) desenvolvo o argumento de que essas atividades de instrução, geralmente ligadas à cultura, são elementos importantes para a percepção das transferências culturais entre Europa e Brasil no século XIX.

31 Segundo Mary Louis Pratt, zonas de contato são espaços sociais onde culturas díspares se encontram

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ESPAGNE, Michel. Les transferts culturels franco-allemands. Paris: Presses Universitaries de France, 1999.

GOMBRICH, E. H.. A história da arte. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1972. LACOMBE, Americo Jacobina. “Advertência do Tradutor”. In: GRAHAM, Maria. Maria. Diário de uma viagem ao Brasil, Belo Horizonte: Editora Itatiaia Limitada; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1990.

PRATT, Mary Louise. Os olhos do império: relatos de viagem e transculturação. Bauru: EDUSC, 1990.

RUGENDAS, Johann-Moritz. Voyage dans le Brésil. Paria: Engelmann & Cie, 1835. SCHWARCZ Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil, 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

SIMMEL, George. “O estrangeiro”, in: MORAES FILHO, E. (org.). Simmel: Sociologia. São Paulo: Ática, 1983.

THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural. São Paulo, Companhia das Letras, 1989. TREVISAN, Anderson Ricardo. Aquarelas do Brasil: estudos sobre a arte “documental de Debret. Dissertação de Mestrado em Sociologia. São Paulo: FFLCH-USP, 2005. TREVISAN, Anderson Ricardo. “Debret a Missão Artística de 1816: aspectos da constituição do ensino artístico acadêmico no Brasil”. In: Plural, Revista do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da USP, São Paulo, nº 14, 2007.

TREVISAN, Anderson Ricardo. Velhas imagens, novos problemas: a redescoberta de Debret no Brasil modernista (1930-1945). Tese de Doutorado em Sociologia. São Paulo: FFLCH-USP, 2011.

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