• Nenhum resultado encontrado

M A R M E L A D A. Uma comédia caseira. Personagens: ALICE ERNESTO VOZ DA MÃE

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "M A R M E L A D A. Uma comédia caseira. Personagens: ALICE ERNESTO VOZ DA MÃE"

Copied!
74
0
0

Texto

(1)

M A R M E L A D A

Uma comédia caseira

Personagens:

ALICE

ERNESTO

VOZ DA MÃE

(2)

Marmelada - Uma Comédia Caseira

CENA 1

Um apartamento do qual se pode ver simultaneamente a cozinha, à esquerda do público, a sala, à direita, e ao fundo no alto uma espécie de mezanino. Ao acender a luz, o casal já está em cena, acabando de chegar. Ambos estão com a roupa clássica de casamento, ele de terno e ela de vestido de noiva branco. Ambos têm uma expressão de cansaço e parecem acanhados ou desorientados, sem saber como agir. Sentam-se afastados e executam uma seqüência de movimentos de tédio, quase em "espelho", mas inadvertidamente. Cada vez que um percebe o mesmo gesto no outro, faz uma alteração, que é logo imitada, sem querer, e assim por diante. Alice passa a examinar Ernesto atentamente, dos pés até a cabeça, e em seguida encara-o fixamente, sem expressão. Ao sentir-se olhado dessa forma, ele desvia o rosto, encabulado.

ALICE

(levantando-se, finalmente)

E agora? Você vai ficar aí parado, com essa cara? É melhor a gente tirar logo esta roupa ridícula...

ERNESTO

Só a roupa? Toda aquela parafernália... que coisa incrível! Você imaginou que fosse assim? Você tinha idéia?

ALICE

Eu? Nem por sonho! Foi pior que festa de 15 anos, formatura, concurso de "miss" e parada de 7 de setembro, tudo misturado...

ERNESTO Eles são muito loucos...

(3)

ALICE Louco é você, de me botar nessa fria... Irresponsável!

ERNESTO

(olhando para a gravata que acaba de tirar, como se nunca a tivesse visto) É... (Compreende então o que ela disse) Irresponsável? Eu? Mas por que eu?

ALICE

Aliás, a família toda! E aquela sua tia? Que figura! Onde ela foi arranjar aquele chapéu?

ERNESTO

Mas sua mãe não ficava atrás! Pensei que ela fosse o próprio bolo do casamento! E ainda por cima chorava! Onde já se viu? Não foi ela mesma que tramou, arquitetou e cometeu este casamento? Então, por que chorava?

ALICE (distraída)

Eu acho que aquilo faz parte da cerimônia... sei lá. (Reagindo, atrasada) E também não foi só idéia dela, não. Seu pai também fez pressão...

ERNESTO

Claro! Para evitar o escândalo! Escândalo que aliás sua mãe ameaçou fazer!

ALICE

Mas que situação! Tudo isso por uma festinha babaca e um projeto de trepada! Trepada que aliás eu nem lembro como foi...

ERNESTO

Alto lá! "Festinha babaca", não! Minha festa de aniversário foi o máximo! Agora, quanto ao resto, eu também não me lembro de nada. Também, todo mundo estava bêbado... e você foi a primeira a enlouquecer!

(4)

ALICE

É, eu não tenho costume dessas coisas... mas conheci uma maluca... aliás, sua prima... com um verdadeiro arsenal...(Imitando) "Experimente um, esse você conhece? Prove esse aqui..." Eu acho que ela estava dando em cima de mim... Só sei que quando me levantei estava completamente...

ERNESTO É, e eu fui a vítima. Você só trepa assim, é?

ALICE Assim, como?

ERNESTO Bêbada... ligadona, sei lá.

ALICE Quando não estou a fim, é...

ERNESTO (sem graça)

Meu pai é um babaca mesmo... "Coitada da menina, você teve a coragem de levá-la pro seu quarto!" Não sabe ele que eu é que fui levado...

(Reversão de luz. Flash-back de ambos na festa, bêbados.)

ERNESTO Mim, Tarzan! You, Chita! Mim mostrar toca de Tarzan!

ALICE

Não! Toca de tarzan, não! Cipó! (Fazendo macaquices) Chita quer ver cipó de Tarzan! ( Ela tenta agarrá-lo, ele se esquiva.) Mostra cipó de Tarzan!

(5)

ERNESTO

(Fugindo dela e se protegendo com as mãos) Não, cipó de Tarzan, não!

(Reversão de luz. Momento atual.)

ALICE

Não torça as coisas pro seu lado! Você estava bem animadinho! E não me venha com essa de casamento obrigado. Isso só existe em filme, ou na Real Família Britânica, o que dá no mesmo!

ERNESTO Vê se pode! Eu e o Príncipe Charles!

ALICE

Não exagera! Nós dois vamos ter nossas vantagens... senão nem o diabo me obrigava! Mas essa festa... sabe do que mais? Eu não estou entendendo tudo...

ERNESTO

Que festa fatídica! Que dia aziago! Eu devia ter consultado meu mapa astral... Por falar nisso, quem lhe convidou pro meu aniversário? Eu só conhecia você de "ôi, como vai?". Quem lhe convidou?

ALICE

Ninguém. Estava uma sexta-feira sacal, eu não tinha nada pra fazer... Passei, vi o movimento...

ERNESTO (ofendido)

Ah! Sei. (Pausa) Coincidência nefasta! (Lembrando-se) Mas então como foi que sua mãe...

ALICE

(6)

ERNESTO

É. "Aquilo". O que você chama de "aquilo" foi sua mãe entrando no quarto feito uma desvairada e encontrando a gente nu... aliás, eu acho que a gente nem conseguiu transar... se eu bem ou mal me lembro... você estava roncando...

ALICE Estava. E acordei com os gritos... não entendi nada.

(Reversão de luz. Flash-back só para Alice. Ela está parada, meio sonâmbula, diante da mãe, que não é vista.)

ALICE

Heim? O que foi? O que é que está acontecendo? (Som de bofetada, Alice recua com o golpe, coloca a mão no rosto) Porra! Que adrenalina!

(Reversão de luz. Momento atual.)

ALICE Eu não entendi nada...

ERNESTO

E eu? Com o susto, eu fiquei "de cara" na hora! Fiquei bonzinho! E sua mãe... parecia uma louca... Eu custei a entender qual era a dela...

ALICE

Êi! Pode parar com suas insinuações! Eu sei muito bem o que você quer dizer...

ERNESTO Mas eu não disse nada!

(7)

ALICE

Não disse, mas pensa! Pensa que minha mãe descobriu seu sobrenome... Mendonça Prado! E aí, é claro: tinha que ter casamento... Pra quem se chama Mendes... O que é Mendes? Pior que isso só Silva, ou Santos... Diga, vai, não é isso que você está pensando?

ERNESTO Você agora viajou longe, heim? E foi sozinha! Eu nem...

ALICE

Pois escuta aqui: eu não sou herdeira dos Mendonça Prado, mas também não sou nenhuma morta-a-fome! Vamos segurar a onda, cara, já que entramos nessa...

ERNESTO

É. É só sua mãe colaborar! Ela é dose! É overdose! Aliás, eu não sei como você agüenta!

ALICE E quem disse que eu agüento?

(Enquanto conversavam, eles foram se despindo, de modo que a essa altura estão apenas de roupas íntimas, mas só agora percebem isso e ficam subitamente envergonhados; em seguida olham para o público e se espantam ainda mais: cada um pega uma peça de roupa no chão e coloca-a na frente, cobrindo-se.)

ALICE Então... boa noite.

ERNESTO Boa noite. (Vai subindo para o mezanino.)

ALICE

Êi! Onde você pensa que vai? Nada disso! (Ele desce.) Nem pense em dormir aí! (Ela vai subindo.) Isso se você não quiser despencar durante a noite! Eu costumo dar chutes quando estou dormindo.

(8)

ERNESTO (baixo, à parte) Chutes não, coices!

ALICE (de cima) O quê?

ERNESTO

Nada. Eu disse que vou ficar aqui em baixo mesmo. Boa noite.

CENA 2

(De manhã, o telefone toca. Alice, sonolenta, atende.)

ALICE (bocejando)

Mas quem é que... (irritada) Alô! Mãe? Você está maluca? Sabe que horas são? São cinco da manhã! Mas será possível? O quê? Foi... Foi, sim. Tudo? "Tudo" o quê, mamãe? Ah! A noite! Sim, a famosa noite! Claro, eu sei. Sim, sim. Eu sei. É, sim. O que fica. Eu sei. É o que fica. A primeira impressão é a que fica. Certo. Mas não se preocupe. A impressão foi ótima. É, eu estou muito bem impressionada, aliás, impressionadíssima. Não precisa repetir, eu já sei. Claro. Vai dar tudo certo, não se preocupe.

(Alice desliga o telefone, deita-se no chão e começa a fazer ginástica, quando ecoa a Voz da Mãe.)

VOZ DA MÃE

É fácil para você dizer "não se preocupe". Isso é porque você não tem a experiência de vida que eu tenho... Conheço casos escabrosos. Eu só estou pensando no seu futuro, na sua

(9)

segurança. Você se lembra o que aconteceu com sua prima de Juazeiro? Uma história que abalou a cidade... uma tragédia...

(Alice se levanta, procurando de onde sai a Voz da Mãe, até que descobre aberta a porta da estante da sala. Fecha-a, estancando a Voz da Mãe. Ernesto, que chegou na sala pé ante pé, espionando, só tem tempo de ouvir o final da fala da Mãe. Está de pijama, com uma xícara na mão, totalmente despenteado.)

ERNESTO E o que foi que aconteceu com sua prima de Juazeiro?

ALICE Ah! Ernesto! Você também? Não torra! (Sai da sala.)

ERNESTO

Credo! Eu só fiz perguntar... (Vai até a estante, à direita, onde está o CD player. Sempre resmungando, de pijama, descabelado, começa a mexer nas caixinhas de disquetes.) É o diabo, isso. Queria saber quem inventou uma coisa tão capciosa, tão cheia de segundas intenções... Casamento! É pior que um incêndio! Os árabes é que têm razão. Mulheres! Deviam estar todas amordaçadas. Caladas! Só com os olhinhos de fora, e olhe lá! (Ouve-se um apito. Ele olha para o público, constrangido.) Desculpem. Não... não era isso que eu queria dizer. Não me entendam mal, por favor. Eu sou até um sujeito com idéias politicamente corretas... mas vejam só! Um homem... perdão, quero dizer, uma pessoa... tem a sua vida em paz, arrumada, organizada, e de repente... (com um gesto largo, mostrando o apartamento em torno) isso! Isso! Essa é a verdadeira tentação do demônio! (Reparando melhor nos discos) Mas... o que é isso? (Com verdadeiro horror) Minha nossa! Que zona é essa?

ALICE (entrando, alegre)

O que você está fazendo acordado, e resmungando, a essa hora da manhã? Você ainda não tem idade pra isso...

(10)

ERNESTO (irritado, contendo-se)

Eu resolvi ouvir música, porque não conseguia dormir... e tive a grata surpresa de encontrar meus CDs numa bagunça! Um mangue!

ALICE

(aproximando-se e olhando)

Eu não estou vendo bagunça nenhuma. Tudo direitinho, um atrás do outro...

ERNESTO Ah! Pra você está tudo "direitinho", não é?

ALICE Por que? Tinha algum arranhado, por acaso?

ERNESTO

( falando e andando na direção dela, ameaçador, enquanto ela anda de costas, recuando) - Se... por acaso... se algum deles estivesse arranhado, seria um caso de homicídio justificado!

ALICE Mas então qual é o problema?

ERNESTO (pegando-a pelo braço)

O problema está aqui, ó... T, de Tchaikovski, devia vir depois de S, de Schubert, não é lógico? Não é o que se pode esperar de um animal racional? De uma casa racional? Mas não! B, de Bach, está atrás de Hendel, e Mozart - meu deus! - está atrás de Wagner! E você ainda diz que está tudo "direitinho"...

ALICE

E está! Porque n vem antes de e, que vem antes de u, que vem antes de r que vem antes de o que vem antes de t que vem antes de i que vem antes de c que vem antes de o ... neurótico! (Para si mesma) Ah! Fiquei até sem fôlego! Se a palavra fosse maior, eu sufocava!

(11)

ERNESTO

(ordenando compulsivamente os CDs, desesperado) Um mangue... oh, meu deus! Os dodecafônicos misturados com os românticos!

ALICE (à parte)

Como é que eu podia adivinhar? (Para ele) Cara, eu não acredito nisso... Quer dizer que você guarda os discos em ordem alfabética?

ERNESTO

(subitamente interessado, parando de ordenar os discos) Por que? Você tem... outra forma melhor?

ALICE

(vendo que ele não entendeu) Nada, deixa pra lá... (Olhando o relógio) Eu já estou atrasada.

ERNESTO

(só então percebendo que ela está toda vestida para jogar vôlei, de camiseta, mochila, raquetes, etc.) - Êi! Onde é que você vai assim?

ALICE (natural) Eu vou treinar.

ERNESTO Às cinco e meia da manhã?

ALICE O treino começa às seis...

(12)

ERNESTO Você não acha isso... bem, um pouco estranho?

ALICE O que é estranho?

ERNESTO

Sei lá. Você agora está casada. Não acha que sair assim, sábado de manhã...

ALICE Mas todo sábado eu jogo!

ERNESTO

Eu entendo... mas, como pessoas casadas, não acha que a gente devia... sei lá...

ALICE

E o que é que as pessoas casadas fazem sábado de manhã?

ERNESTO

Ah! se eu soubesse! Deviam publicar um Manual de Regras para Recém-Casados, aí ficava mais fácil...

ALICE

Pois eu nem quero saber. Depois do que aconteceu com minha tia... (Vai saindo) ERNESTO

Êi! Espere, o que aconteceu com a sua tia?

ALICE Depois eu conto. Agora não tenho tempo.

ERNESTO

(13)

ALICE Ótimo! Assim você se distrai.

ERNESTO (contendo-se)

Pensando bem, eu não estou nem um pouco interessado nas histórias da sua família...

ALICE

Ah! Foi bom você falar nisso. Olhe, se a minha mãe ligar, você diz que eu fui à feira, viu? Ela vai ficar louca de felicidade! (Vai saindo e volta) Mas... você não quer vir comigo?

ERNESTO

Eu? Tá louca. Ficar sentado no sol, suando, vendo uma bola pulando daqui pra lá é o extremo oposto da minha idéia de lazer...

ALICE

Então tá. Eu fiz a minha parte. De esposa. Convidei. (Ela pára, hesitando.) Então volte pra cama pra dormir. Você está com uma cara péssima! Deixe os discos que na volta eu arrumo. De A a Z. Prometo. (Dando uma última olhada nele.) E penteia esse cabelo!

CENA 3

(Assim que ela sai, Ernesto fica um tempo parado, pensando. De repente, começa a rir e a pular, feliz.)

ERNESTO

Não acredito! Só! Sozinho! Eu tenho meio sábado para ficar sozinho! Pra fazer o que eu quiser! Aleluia! Vou andar nu pela casa toda! (Canta.) "Gracias a la vida, que me há dado tanto..." (Dança e canta trechos de músicas enquanto tira o pijama.) Sozinho! Eu não acredito! (De mãos postas) Oh! Meu deus! Eu me sinto tão feliz... que até me sinto culpado! Dá vontade de encher a cara! De tomar um porre! (De cueca, vai até a cozinha, dançando, abre a geladeira, tira uma cerveja, abre a lata e toma um gole. Deposita a lata sobre a

(14)

geladeira e ainda de frente para a porta aberta começa a tirar a cueca, sempre dançando, quando ouve a Voz da Mãe.)

VOZ DA MÃE

Você tem que tomar muito cuidado, Alice. Mire-se no exemplo de sua prima, coitada. Uma menina tão bem criada, uma flor de pessoa... Encontra um sujeitinho bem -falante, e aí? Aí, a tragédia...Um mês, dois meses... seis meses! E ele... nada! A pobrezinha tomava banho, se perfumava toda, e ele nem tchum! Não adiantou lingerie, ostra crua, incenso afrodisíaco... nada! E a pobrezinha esperando... esperando... e nada. A cidade toda revoltada... revoltada... revoltada... (continua a repetir, como um disco arranhado.)

ERNESTO

(fica um instante sem saber o que fazer, fecha automaticamente a porta da geladeira e percebe que ao fechá-la sufocou a Voz da Mãe.) Tome. (Faz gesto de "dar banana" para a geladeira) Tome! Tome! Tome!

ALICE

(entrando, com um jornal na mão e vendo Ernesto nu, a dar "bananas" para geladeira.) - Mas o que é que é isso? O que é que você está fazendo? Isso é vodu? É magia negra?

ERNESTO

(atrapalhado, cobrindo-se com a cueca que acabou de tirar) É que eu ia... (apontando a geladeira) eu ia pegar...

ALICE

(depois de colocar o jornal na mesinha de centro)

Pegar o quê? A geladeira está uma igreja... (Avança a mão para abrir a geladeira.)

ERNESTO (assustado) Não abra!

(15)

ALICE

Calma. (Percebendo que ele está nu.) Você está muito estranho... mas deixa eu lhe dizer uma coisa: eu não sou obrigada a ver você desfilando dentro de casa nesses trajes... Isso não faz parte do nosso...

ERNESTO (recobrando-se do susto)

E por acaso eu sou obrigado, dentro da minha casa, a me fardar pra ir até a geladeira? Ora, já se viu? (Enquanto fala, vai catando suas roupas jogadas no chão.)

ALICE

Mas é claro. Nosso casamento, ao fim e ao cabo, é um contrato. Um contrato de cooperação mútua. Assinado e carimbado, com testemunhas...

ERNESTO E daí?

ALICE

Daí que... que... andar pelado dentro de casa, com tudo balançando, é assédio sexual... Artigo tal, parágrafo tal. Isso dá cadeia!

ERNESTO "Assédio"? Mais essa agora!

ALICE

Sim, senhor: assédio! Você não conhece a lei não, é? É considerado ofensivo, indecoroso (aponta para a nudez dele), toda palavra ou gesto libidinoso cometido sem o consentimento de ambas as partes...

ERNESTO Mas o marido...

(16)

ALICE Principalmente o marido!

ERNESTO

Isso é o que você queria! Que eu lhe assediasse! Mas eu tenho mais o que fazer.

(Vira-se para sair, tapando-se com as roupas emboladas na frente, mas lembra-se que está com as costas nuas, vira-se rápido e sai andando para trás.)

ALICE

E tem mesmo! (Alto, para dentro.) Pô, cara, deixa de ser machista e vai fazer um mercado. Não tem mais nada em casa.

ERNESTO (reaparecendo)

Ah, é? (Imitando) Pô, Alice, deixa de ser feminista e vai fazer um mercado!

ALICE

( abre a geladeira, vasculha, e acha uma banana) Olhe o que eu achei!

ERNESTO Ah, me dá um pedaço!

(Ela faz que "não" com a cabeça. Já está no meio da banana. Ele avança.)

ERNESTO

Alice, eu lhe ofereço a última chance pra me dar um pedaço!

ALICE

(engolindo o resto da banana, de boca cheia) Desculpe, foi irresistível...

(17)

ERNESTO Alice!

ALICE "Amar é: dividir uma banana." Ora, me poupe!

(Ele fica olhando para ela, sem acreditar. O telefone toca. Alice atende.)

ALICE

É o poderoso chefão. (De nariz torcido, entrega o telefone a ele e sai da sala.)

ERNESTO

É sim, papai, é Ernesto. (Afasta o fone do ouvido, como se alguém gritasse do outro lado.) Quem? Alice? De short? Mas o que é que tem? Não acho indecente, não. Nada disso... (Olha em volta, baixando a voz) meu casamento vai muito bem, obrigado! Não, não sou cego! Você é que vê demais! (Alice entra de mansinho, por trás dele, e fica ouvindo.) Sim, eu sei. Eu sei que seis de janeiro vem aí. E estou tranquilo! Tchau! (Desliga.)

ALICE

Olhe aqui: eu sei que seu pai é um babaca e não dou a mínima pra o que ele diz... mas que história é essa de seis de janeiro?

ERNESTO (nervoso) Heim? O quê? Seis de quê?

ALICE Seis de janeiro.

ERNESTO

Janeiro? Nããão... Você... você além do mais é surda! Dinheiro! Ele perguntou se eu preciso de dinheiro...

(18)

ALICE

(olhando pra ele, desconfiada) Tá. Eu sou surda. Mas por que você disse que não era cego?

ERNESTO

Porque... ele estava furioso... Alguém viu você no seu joguinho de vôlei - eu bem lhe avisei que iam estranhar! - aí... ele disse que você nem parecia uma recém-casada, tomando chopp, de short, e no meio de um monte de homens...

ALICE

Ah! Se eu quisesse estar toda vestida no meio de um monte de mulheres, eu não casava, ia pra um convento! Mas essa agora é muito boa! Quer dizer que eu vou ter que aturar os detetives da família Mendonça Prado no meu calo? Sem essa, Ernesto! Quer saber do que mais? Eu estou começando a achar que este negócio não vai dar certo...

ERNESTO (indo até ela, aflito)

Não, Alice, não ligue pra isso. Eu não estou nem aí pra eles... Olhe, eu sei que não é fácil, nem pra mim nem pra você... mas eu acho que tenho uma solução. Aqui. Espera. Está aqui. (Tira um papel do bolso.) Veja. Ontem à noite eu fiquei pensando... e fiz esta lista de regras...

ALICE Regras?!

ERNESTO (animado)

Sim, regras de convivência. É muito simples. É só cada um de nós colocar no papel as coisas que o incomodam, seus hábitos particulares, seus limites, horários... assim o outro fica sabendo... e é só respeitar. Ontem à noite, por exemplo. Eu sei que fui grosseiro... me desculpe. Mas era só ler aqui... ó. Regra número 1: "Nunca me interrompa quando eu estiver lendo." Pronto! Acabam-se todos os atritos, todos os desencontros... todos os... (percebendo que ela está calada olhando pra ele há algum tempo) Não é prático? O que é que você acha?

(19)

ALICE (com ar estranho) Eu acho.

ERNESTO Você acha o quê?

ALICE Acho bom.

ERNESTO (aliviado)

Acha mesmo? Olhe, eu vou colocar aqui, bem visível. (Vai até a parede e afixa o papel.) E você tem todo o direito de fazer também a sua lista. (Para o público) Direitos iguais, é claro. Para mim não existe distinção, discriminação... Direitos iguais! Eu defendo isso: o direito de cada um ao seu espaço, à sua individualidade... (Animado e carinhoso) Vamos, faça a sua! Eu prometo respeitar todas as condições. (Vendo-a parada.) É sério! Faça a sua lista...

ALICE Tá. Mas hoje eu não posso. Eu vou sair.

ERNESTO Sair? Com quem?

ALICE

Regra número 1: "Nunca me pergunte com quem eu vou sair."

ERNESTO

Claro! É só que... eu estranhei você sair assim... de repente. Está armando um temporal, você sabia?

(20)

ALICE

Por que será que eu estou com a leve impressão... que você não quer que eu saia? É por causa do seu pai, é?

ERNESTO

Meu pai? Imagine! Que bobagem! Não, Alice, eu é que estou com a impressão de que você ficou aborrecida... É por causa da lista? Olhe, se você não quiser... não está mais aqui quem...

ALICE

Não, de jeito nenhum! Eu adorei a idéia! Aliás... (maldosa) uma coisa assim bem que poderia ter evitado o que aconteceu com a minha tia...

ERNESTO (ansioso) Sim, você ficou de me contar...

ALICE É, mas agora eu não estou a fim não. (Senta-se no sofá.)

ERNESTO Ué... Você não ia sair?

ALICE Perdi a vontade.

ERNESTO Olhe, se for por minha causa...

ALICE Por sua causa? Imagine...

(21)

(Ambos olham ao mesmo tempo para o jornal que está na mesinha de centro. Olham-se, cada qual percebendo a intenção do outro, procuram disfarçar, e subitamente ambos se atiram na direção da mesinha, mas Alice consegue apanhar o jornal primeiro. Senta-se e começa a correr os olhos nas notícias. Ernesto, para fingir desinteresse, abre a porta do armário de bebidas, como se procurasse algo. Ouve-se a Voz da Mãe.)

VOZ DA MÃE

Eu só penso na sua felicidade, minha filha, no seu futuro. A sua prima, coitada, foi definhando pouco a pouco. A cidade inteira revoltada. E aí... cinco anos depois... isso é pra enlouquecer uma pessoa! A pobrezinha encontrou o marido inadimplente na escadaria da Praça Castro Alves, vestido de baiana. Foi um choque tremendo, a menina teve que ser internada...

ALICE

(vendo que Ernesto está prestando atenção à Voz)

Ernesto, desligue logo isso! Que coisa feia! Isso é pior que ouvir atrás da porta...

ERNESTO

(estanca a Voz da Mãe, fechando o armário) Eu só queria saber o fim da história...

ALICE

(correndo os olhos no jornal)

"Banquete macabro. Fritou a mãe e cozinhou a sogra. Chegando em casa faminto, no último Domingo, Ivanildo de Souza..." Etc e tal. Normal. "Teve os ovos depilados enquanto dormia. Ontem pela manhã Cacilda dos Santos, 30 anos, casada, armada de uma pinça, atacou seu marido enquanto o mesmo dormia, arrancando um a um os... " Mas esse aqui dorme, heim? Ao acordar, etc. e tal. Normal. "Sequestrado." Normal. "Desviados trinta milhões." Normal. (Estalando a língua.) Tsk... tsk... Esse extrapolou... (lendo) "Crítico teatral espancado por dois atores." Que absurdo!

ERNESTO (superior)

(22)

Você se importaria de me emprestar o Caderno Cultural?

(Alice lhe entrega o jornal inteiro e sai da sala.)

CENA 4

ERNESTO

(correndo os olhos no jornal) - Música axé. Dança axé. Cinema axé. (Boceja.) Vídeo axé. Pintura axé. (Boceja.) Moda axé. Horóscopo axé. (Boceja.) Arquitetura axé... (Adormece.)

(Reversão de luz. Alice, com trancinhas e búzios na cabeça, roupa africana, dança num ritmo violento, avançando para Ernesto. Joga-o no chão, dançando, e está a ponto de pisá-lo. Black. Ernesto grita, acordando. Ao acender novamente a luz, entra Alice, em trajes normais, visivelmente aborrecida.)

ALICE

Eu posso saber quem arrumou meu armário? (Vendo que ele olha para ela fixamente.) Ernesto!

ERNESTO (ainda despertando) Heim? O quê?

ALICE Quem foi que arrumou meu armário?

ERNESTO

(compreendendo afinal a pergunta dela, ainda confuso) Tem mais alguém por aqui?

ALICE

(23)

ERNESTO

Eu não pude evitar. É um impulso irresistível... Eu não agüentava mais olhar para aquela bagunça...

ALICE

Pois olhasse pra outro lado, ora essa! Tanto lugar pra você olhar!

ERNESTO (sério)

Eu tentei. Mas não deu certo. É como eu lhe disse: um impulso irresistível. Quando eu sei que existe um foco de desarrumação no ambiente, eu me sinto afetado...

ALICE

Mas não é possível... A vida inteira eu tive que aturar minha mãe arrumando as minhas coisas, se intrometendo... Agora penso que estou livre ao menos disso e me pego casada com um maníaco por arrumação! É meu karma! Só pode ser!

ERNESTO

Você é toda pelo avesso! Então você acha que arrumado é "pior", você acha?

ALICE

Se eu acho? Mas esse é exatamente o problema! Eu não consigo achar nada! Falar nisso, cadê minha bola de vôlei?

ERNESTO (superior)

Está onde sempre deveria ter estado: na última prateleira à esquerda, junto com as raquetes, joelheiras, chuteiras e toda essa parafernália esportiva que você vive amontoando!

ALICE Alguma coisa contra?

(24)

ERNESTO (dando de ombros) Não é da minha conta...

ALICE Ainda bem!

ERNESTO

Eu só acho que não fazia mal você cultivar um pouco o espírito...

ALICE

Ah! Sei! E o seu é muito cultivado, né? Espírito de porco!

ERNESTO

Pelo menos, não pego jornal só pra ler a página policial! E nem ando ouvindo esse lixo sertanejo que você adora: Leandro e Leonardo, Xitãozinho e ... (Apito. Ele se dá conta do público, assustado.) Nada contra. Absolutamente. Todas as manifestações culturais são legítimas... São expressões da alma popular...

ALICE

Mas você é muito mascarado mesmo, heim? É assim a sua cabeça. Tudo que é brasileiro é lixo! Lixo sertanejo, lixo urbano, lixo baiano... Pra você só presta Billy Holliday...

ERNESTO (para o público)

Não é verdade! Eu venero Hermeto Paschoal, Tom Jobim... (Para ela) Você quer me queimar, é? Você nem sabe do que está falando. Você ouve mal. Não tem educação musical! A verdadeira música é universal!

ALICE Uau! Uau!

(25)

ERNESTO Você sabe quem é Sarah Vaughn?

ALICE Claro, quem não sabe? Uma magrinha, branquinha...

ERNESTO

Não! Era gordona e pretona! E divina! Mas não é para o seu bico! Ou melhor, pro seu ouvido, acostumado a pagode, levada de quintal e rock da caatinga! (Apito. Ele percebe o público.) Nada contra. Absolutamente. Eu defendo a diversidade... o pluralismo...

ALICE

Pois pra mim aqui tem plural demais, tá sabendo? Um mais um, quando um deles é você, é demais pra mim! Mas voltando ao armário...

ERNESTO

Sim, voltando ao armário. Eu só tenho uma curiosidade: como é que você consegue procurar e achar alguma coisa naquele mangue?

ALICE (debochando)

Eu faço como Picasso: eu não procuro, eu encontro. (Notando que ele estranhou a citação.) Por esse Picasso você não esperava... diga a verdade! Ou melhor: as coisas me encontram. Eu abro a porta e elas vêm a mim. Não é mais prático?

ERNESTO (superior)

Eu sempre tive uma teoria: a organização externa do indivíduo é um reflexo da organização interna.

ALICE E daí?

(26)

ERNESTO Daí que a sua cabeça também deve ser uma bagunça só!

ALICE Babaca!

ERNESTO Relaxada!

ALICE

Olha aqui: agora baixou, está entendendo? Você está vendo que agora baixou. Baixou... baixou...

ERNESTO Baixou o quê?

ALICE

O nível! O nível da relação, cara! Sabe do que mais? É melhor acabar com essa brincadeira. Cada um volta pra sua respectiva casa e pronto. Vamos dar por encerrada essa tentativa frustrada. Afinal, não é assim que se vive? Tentativa e erro. Tenta, não dá, cai de quatro, levanta, tenta outra vez e aí...

(Ela olha para ele e percebe que enquanto falava ele foi ficando cada vez mais triste, cabisbaixo.)

ALICE Mas o que é que há? Que é que você tem?

ERNESTO

É que... eu... fico triste vendo você falar assim... em desistir... ir embora... Eu acho que a gente não pode... quer dizer, não ainda...

ALICE

(27)

ERNESTO Escondendo? Nada, mas é que...

ALICE

É que... desembucha, vai! O que é que eu não sei nessa história? Qual é o lance que eu não estou sabendo?

ERNESTO (engasgado)

Não tem lance nenhum... (À parte) Ernesto, você não pode perder o controle! (Para ela) Eu só acho que seria uma derrota... um fracasso pra nós dois...

ALICE Fracasso de quê?

ERNESTO

Você sabe... a relação... o ser humano... a experiência... o relacionamento... a ... (Ouve-se a campainha da porta.) a campainha! Você ouviu?

ALICE

Eu ouvi. Apesar de ser surda. (Saindo para atender) Mas a gente continua... Eu sinto cheiro de mistério longe.

(Alice sai. Ernesto respira fundo. Alice volta imediatamente, assustada.) ALICE

Êi! Psiu! Ela está aí!

ERNESTO (tem um sobressalto, pensando tratar-se da mãe) Ela quem?!

(28)

ALICE

(com voz espremida, aflita) A empregada!

ERNESTO (alto) Que emprega...

ALICE Fale baixo! A empregada que minha mãe mandou...

ERNESTO

Ah! Não! Essa não! Isso é totalmente contra os meus princípios.

ALICE Mas que princípios?

ERNESTO

Considero um comportamento socialmente inaceitável manter uma escrava dentro de casa. (Ao público.) Isso é coisa de terceiro mundo, de mentalidade casa grande & senzala, uma escrava lavando, passando, cozinhando...

ALICE Ah! É? E quem você sugere que faça isso, heim?

ERNESTO

(como se pela primeira vez pensasse na questão) Ora, nós...

ALICE

Esse "nós" é força de expressão, ou por acaso me inclui? Olha aqui, Ernesto: eu não posso mandar a criatura ir embora assim, sem mais nem menos...

(29)

ERNESTO

Alice, eu estou falando sério. (Dramático) Ou ela, ou eu! Se aquela mulher entrar nesta casa... eu saio por aquela porta e você não me verá nunca mais!

ALICE

( surpreendida pelo tom e atitude dele, depois subitamente começando a rir) Eu não acredito! Você falou igualzinho ao Tarcísio Meira! Que bárbaro! Faça outra vez, faça! Olhe, eu vou mandar a mulher entrar...

ERNESTO (encabulado) Alice, deixa de brincadeira... Alice, não encarna!

ALICE

Não, é sério! Você estava ótimo! Como é mesmo? (Imitando) "Se aquela porta entrar por aquela mulher..." Não! "Se nesta casa aquela porta nunca mais sair..." Como é, Ernesto? É muito difícil...

ERNESTO Paciência, Ernesto, paciência!

ALICE

Meu deus! Com essa palhaçada eu me esqueci da mulher na cozinha! E agora?

ERNESTO

Agora vá lá e diga a ela que você mudou de idéia... que nós não precisamos de ninguém!

ALICE

Ah! Eu já estou entendendo... Você não quer a empregada porque foi minha mãe que mandou, não é? Você pensa que ela veio lhe espionar, não é? Pensa que todo mundo é como seu pai, que vive botando detetives atrás dos outros? Paranóico!

ERNESTO Não é nada disso!

(30)

ALICE

Claro que é! E ainda vem com essa demagogia toda... (Imitando) "comportamento socialmente inaceitável"... Ernesto, a mulher está lá plantada na cozinha, feito um dois de paus! Vai lá você, vai...

ERNESTO Eu?! Pra dizer o quê?

ALICE Ah! Está vendo que não é fácil?

ERNESTO (sem muita convicção) Quem tem que ir é você...

ALICE Por que eu?

ERNESTO Porque... sei lá... é o normal, não é?

ALICE

Normal? Já faz tempo que nós não estamos numa situação normal! Ou você ainda não percebeu?

ERNESTO

Percebi, sim. Normal pra mim era estar agora no meu amado quarto de solteiro, com meus discos e livros e nada mais, e não tendo que enfrentar este problema ridículo. Uma empregada na cozinha! E pra Madame Alice parece que é a Rainha de Copas querendo cortar a sua cabeça! Ora, me poupe! (Acalmando-se) Deixa, eu mesmo vou lá. (Vai saindo e volta-se) Mas eu estou avisando que ela vai achar meio estranho...

(31)

(Ele sai, ela fica escutando, tentando "pescar" a conversa.)

ERNESTO (voltando rápido)

Ela foi embora...

ALICE

Claro! Você demorou tanto! Ela deve ter pensado que aqui só tem maluco!

ERNESTO

É... ela foi embora, e eu estou com fome... Alice, você bem que podia ir preparar um prato qualquer, né?

ALICE Prato?!

ERNESTO Oh! Meu deus! Um prato... uma comida qualquer!

ALICE

Ernesto, você pensa que está falando com quem? Que se casou com quem? Com a Tia Nastácia, do Sítio do Picapau Amarelo? Com a cozinha maravilhosa da Ofélia? Sou eu, Alice, tá lembrado? Tudo que eu sei sobre esse assunto é que se acende o fogo e se coloca a panela em cima! A partir daí, tudo pra mim é um negro mistério.

ERNESTO Bela educação você recebeu, heim?

ALICE

Você vai querer discutir isso agora, com fome? Vai, liga aí e pede uma pizza...

(32)

CENA 5

(Ao acender-se novamente a luz, vê-se em um canto da sala, empilhadas, seis ou sete embalagens de pizza, vazias.)

ALICE (vindo de dentro) Ernesto...

ERNESTO

(desenhando numa prancheta) Mas o que foi dessa vez?

ALICE

Sinto muito lhe interromper... Mas é o seguinte: a torneira do banheiro desabrochou...

ERNESTO Como é? Desabrochou?

ALICE

É... quer dizer... desatarrachou... está esguichando água por todo lado... ERNESTO

Que mulher confusa... E o que é que você espera que eu faça?

ALICE Ora... que atarrache, que prenda, que enrosque...

ERNESTO

Alice, eu sou um futuro arquiteto, não encanador! Há uma diferença... se é que você percebe...

(33)

ALICE

Sim, e daí? Depois você pode ficar a noite inteira desenhando...

ERNESTO (magoado)

Eu sei que pra você não faz a mínima diferença... que você nem se interessa pelo que eu faço...

ALICE

(sinceramente surpresa)

E por que eu deveria me interessar? Que idéia! Sei lá, podia ser uma das suas "regras": "Nunca pergunte o que estou desenhando". Tá. E a torneira?

ERNESTO

Já disse. Sou arquiteto, ou pelo menos serei, se você não me enlouquecer até lá. Não sou encanador.

ALICE

Mas uma torneirinha de nada... Que incompetência! Eu sempre achei que todo marido devia ter curso médio de Escola Técnica: aprender a consertar tudo dentro de casa.

ERNESTO

Que coincidência! E eu sempre achei que toda mulher devia ter graduação em cozinha e pós-graduação em cama!

ALICE

Currículos à parte, o que interessa agora é que a água está lá dentro esguichando... Eu vou chamar um encanador, um homem competente!

ERNESTO Idéia brilhante!

(34)

CENA 6

(É noite. Luz fraca apenas na sala. Ouve-se simultaneamente a Voz da Mãe e Ernesto, falando em sonho.)

ERNESTO

A água... não... a água... pára com isso! A água...fecha...a água... não... socorro! A água... fecha a água...

VOZ DA MÃE

Lembre-se que você é responsável por cinquenta por cento da relação. Faça a sua parte. A felicidade conjugal é construída dia a dia, minuto por minuto... O amor cresce pouco a pouco, com a convivência, é como uma plantinha que deve ser regada diariamente...

ERNESTO

(descendo do mezanino, assustado) Alice!

ALICE Já fechei! Já fechei! Calma! Era o registro da água.

ERNESTO

Credo! Eu sonhei que... que estava me afogando... tanta água! (Percebe que ela está com um pequeno regador, molhando uns vasos de violetas.) Mas o que é isso? Oh! Não! Mas o que é que você está fazendo? (Enfurecido, berrando) Alice!

ALICE O que foi?

ERNESTO

(35)

O que é que você está fazendo com minhas violetas? ALICE Eu? Molhando... ERNESTO Você o quê? ALICE Eu... molhei... normal...

ERNESTO Por cima? Você molhou as folhas?

(Alice, receosa, confirma com a cabeça.)

ERNESTO Idiota! Desastrada! Você destruiu minhas violetas!

ALICE

Eu não sabia... Você vive dizendo que eu não me importo com nada... Eu achei que elas estavam tão sequinhas, esturricadas... eu só queria ajudar... fazer alguma coisa...

ERNESTO

Não ache nada! Não ajude! Por via das dúvidas, não faça nada! É mais seguro! Meu deus, ela molhou as folhas...

ALICE

(aproximando-se, carinhosa) Puxa, Ernesto, minha intenção foi boa...

ERNESTO (de costas para ela)

(36)

Foi... e eu fico aliviado de saber disso. Quando você tiver uma má intenção, me avise... porque eu quero estar longe...

ALICE

(abraçando-o pelas costas) Não fica assim, vai... eu só queria lhe agradar...

ERNESTO Pois então me desagrade, aliás , por favor, me odeie!

ALICE Pára com isso! Me desculpa...

ERNESTO

Você é uma catástrofe! Eu devia ter pedido garantias de vida a sua mãe.

(O telefone toca.)

ERNESTO Falando no diabo...

ALICE

(olhando as violetas, penalizada)

Coitadinhas... ( Atende o telefone) Ôi, mãe. Cremilda, que Cremilda? Ah...sim, a empregada. Não, não tinha ninguém brigando... que idéia! Está tudo bem... é, tudo correndo muito bem... Não aconteceu nada... Minha mãe, escute... Pára de falar um minuto! Eu sei, minha mãe... de forno e fogão, eu sei. Sim, se prende pelo estômago, claro. Ela é maravilhosa, eu sei. Mas não ia adiantar... Por quê? Porque... porque... (Ela olha para ele pedindo ajuda, ele cruza os braços como quem diz "se arranje", curtindo, vingativo, a situação.) porque... ela está acostumada a cozinhar para você, a fazer certos pratos e... (tendo a idéia, rápida) o Ernesto não come carne!

(37)

ALICE

Pois é isso, algumas pessoas não comem, minha mãe, o que se pode fazer? Não comem carne, está acabado. Mas por que você não pode ter sossego? Não confia? Mas não confia por quê? Ora, minha mãe, ele não come carne de vaca, de galinha... não tem nada a ver uma coisa com outra... (Desliga.)

ERNESTO

Mas isso é o cúmulo! Mata minhas violetas e ainda por cima me chama de vegetariano!

ALICE

Sinto muito! Foi a única idéia que pintou na minha cabeça...

ERNESTO

Pois eu vou sair agora e comer um filé enorme... o maior que eu encontrar!

(Sai.)

CENA 7

ALICE

Coitado! Tão jovem e tão neurastênico... Mas, descontando aquele ar de superioridade insuportável, até que ele é simpático. Eu vou fazer uma surpresa pra ele! (Pega um livro que estava escondido.) Vamos ver: duas xícaras de farinha de trigo... (Com o livro na mão vai até o armário da cozinha e olha.) Tudo bem. Duas colheres de azeite. Certo. Dois ovos. Uma lingüiça média. (Pausa. Pensa.) Pronto. Começou a complicar... O que é uma lingüiça média? Um palmo? Bom, a grande deve ser assim... (Confusa, falando para o livro) Custava alguma coisa ser mais explícito? Dizer: 15, 20 centímetros? Assim fica difícil...

VOZ DA MÃE

Não faça nenhuma bobagem. Um passo em falso e tudo está perdido. Quem ama deve saber adivinhar os menores desejos do ser amado, elogiar sempre as suas qualidades... Amar é

(38)

esquecer de si mesmo em benefício do outro; amar é colocar os próprios prazeres em segundo plano, é abrir mão dos nossos caprichos e interesses mesquinhos, é doar-se completamente...

(Alice fecha a porta do armário da cozinha, que deixou aberta, e pára a voz da mãe. Ouve barulho e percebe que Ernesto está chegando. Guarda correndo os utensílios de cozinha e esconde o livro no armário da sala.)

CENA 8

(Quando Ernesto entra, ela já está deitada no tapete, com o head-fone no ouvido, de olhos fechados, batendo os pés no ritmo da música. Ele traz um embrulho de presente na mão. Joga-o perto dela e sai para a cozinha.)

ALICE (assustando-se) Ai! Que é isso?

ERNESTO Abre!

ALICE (sem ouvir) Heim?

ERNESTO (tirando-lhe o fone de ouvido) - Abre!

ALICE (abre o embrulho, tira um vestido e examina-o) Que é isso?

ERNESTO Um vestido!

(39)

ALICE Que é um vestido eu estou vendo, mas pra que é isso?

ERNESTO A gente não vai sair, hoje de noite? Trouxe pra você!

ALICE Pra quem? ERNESTO Pra você! ALICE Pra mim?

ERNESTO (começando a se impacientar) É! Pra você. ALICE Pra mim ? ERNESTO Pronto! Começou. ALICE Eu só estou perguntando! ERNESTO (irritado) Quem é que usa vestido aqui? Eu ou você?

ALICE (espantada, olhando para si mesma) Que eu saiba, nem eu nem você!

(40)

ERNESTO Você não vai vestir?

ALICE Você comprou este vestido pra mim? Eu não acredito.

ERNESTO (rindo) Comprei!

ALICE Pra mim?

ERNESTO Foi! Gostou? É lindo, né?

(Ela sobe para o mezanino, vai para a frente de um espelho e coloca o vestido sobre o corpo.)

ERNESTO (falando de baixo, da sala)

É lindo, né? Eu sabia que você ia gostar... desde aquele dia que a gente passou na porta daquela loja, e você ficou olhando... Eu vi que você tinha gostado... (Estranha o silêncio dela.) Não é lindo?

ALICE (descendo)

É horrível! A roupa que eu gostei estava do lado desse... disso aqui! Ah! Meu deus! Onde eu tava com a cabeça na hora que... Agora eu sei porque é que acontece tanta tragédia conjugal! Porque só de pensar que você comprou isso aqui, pensando em mim, eu tenho vontade de te matar...

ERNESTO Espera aí... Você está...

(41)

ALICE

Tô sim, estou com raiva! Sei que você faz isso pra... é por causa das violetas, heim? É vingança? Que é que você tem contra mim, heim, cara? Eu ia ficar parecendo um monstro, dentro disso aqui... A baleia assassina... Você sabe qual é o meu número?

ERNESTO Bem... pra falar a verdade...

ALICE

Claro que não! Porque você não deve ter se dado ao trabalho de olhar uma roupa no meu armário, pra ter uma idéia de... Isso aqui, no mínimo, é tamanho 52! Olha pra mim! Eu tenho cara de sair, de noite, dentro isso aqui? Pra quê? Pra ficar ridícula, dos seus amiguinhos? Se você tivesse um pouquinho mais de sensibilidade...

ERNESTO (com um berro) Porra!

(Silêncio.)

ERNESTO

Sensibilidade? Você tem a coragem de falar de sensibilidade?

(Ela, assustada, nega com a cabeça.) ERNESTO

Você quer dizer que eu sou insensível porque comprei esse vestido pra você? Responde!

(Alice concorda com a cabeça e depois nega, atrapalhada.)

ERNESTO Insensível porque me atrapalhei com o modelo?

(42)

ERNESTO

Insensível porque errei um número, que nem deve ser assim tão diferente do seu?

(Ela diz que não sabe, encolhendo os ombros.)

ERNESTO Insensível, eu?

(Ela tenta escapar.)

ERNESTO (indo atrás dela)

Por que te trouxe um presente, achando que você ia gostar de sair com uma roupa nova? Tentando fazer com que a gente curtisse uma noite legal, pelo menos uma noite legal? Achando que talvez... a gente... que pudesse ser diferente! Que eu e você... que nós dois... Eu só posso ser insensível... porque uma pessoa que se casa com você não pode ter sensibilidade... você tá entupida de razão: eu sou uma pessoa sem nenhuma sensibilidade! Insensível! (Cantando) "Insensível... você diz!"

ALICE Tá, desculpa, eu...

ERNESTO

Imagina! Você, se desculpar? Eu é que... claro! Você é uma pessoa muito sensível! Mas não se preocupe. Eu invento uma desculpa qualquer lá pro pessoal... Você não precisa ir comigo! Aliás, eu até prefiro que você não vá! (Apito. Para o público.) Todos são testemunhas da minha infinita paciência, e tolerância! Eu creio no diálogo! Mas a mocinha aí é dose! (Baixo, à parte.) Oh! Meu Deus! Chega 6 de março mas não chega 6 de janeiro!

(43)

CENA 9

(Mais embalagens vazias de pizza, amontoadas num canto da sala. Ernesto está sentado à mesa, desenhando. Alice ronda, à certa distância, tentando contato, mas ele continua concentrado no trabalho.)

ALICE (criando coragem) Hoje à noite vai começar...

(Ele a interrompe com um gesto. Com uma das mãos, faz o número três e com a outra aponta o lugar onde estão fixadas as regras de convivência.)

ALICE (vai até indicação e lê) "Não me interrompa quando estiver desenhando."

(Ele continua a trabalhar. Ela, como criança repreendida, senta-se afastada, observando-o. Ele termina de desenhar e começa a arrumar a mesa, guardar papéis, etc. Ela espera o momento de puxar conversa. Ele pega um livro e começa a ler. Fecha o livro e vai até a cozinha. Traz água e começa a regar as plantas. Ela faz menção de falar, pára. Vai até a lista de regras, vê se não está infringindo nenhuma.

ALICE Tá um dia lindo, né?

(Ernesto faz que "sim" com a cabeça.)

ALICE Hoje é lua cheia.

(Silêncio.)

ALICE Você tem que fazer alguma coisa, hoje à noite?

(44)

(Ernesto faz que "não" com a cabeça.)

ALICE

É que... hoje começam a passar aqueles documentários sobre a Segunda Guerra, lá no ICBA.

ERNESTO Hum, hum.

ALICE Tava pensando que a gente podia ir ver...

(Silêncio.)

ALICE Foi você mesmo que disse que era interessante.

ERNESTO É. ALICE Vamos? ERNESTO Pode ser. ALICE

Dizem que o de hoje é ótimo. É sobre... como é mesmo? Ah! sobre os campos de concentração. "Câmara de Gás".

(45)

ALICE

É o título... "Câmara de Gás". Depois a gente podia ir comer aquele filé que você adora, lá em Dadá.

(Ernesto olha para ela.)

ALICE Me desculpa? Eu sei que fui grossa... casca grossa...

ERNESTO Foi!

ALICE Eu devia ter sacado que...

ERNESTO Devia!

ALICE Eu falei muita besteira...

ERNESTO Falou!

ALICE Eu sei que você não ia fazer aquilo só pra me irritar...

ERNESTO Sabe?

ALICE Claro. Você é bastante sensível para...

(46)

ERNESTO Sou! ALICE Me desculpa? (Silêncio.) ALICE

Você também vive me criticando... dizendo que eu sou maluca... desorganizada... que não cuido do espírito...

(Silêncio.)

ALICE

Você acha que é bom ter alguém dizendo que você não sabe fazer isso... que não tem tato com aquilo... te chamando de relaxada, casca grossa...

(Silêncio.)

ALICE

Tudo que vem de você é ótimo, limpo, superior, espiritual, transcendental, excepcional... e pra mim só fica o anormal... desigual... irracional... mal... mal...

(Silêncio.)

ALICE Eu sei que exagerei... mas eu tô pedindo desculpa...

(Silêncio.)

ALICE

(47)

ERNESTO Espera! (Ela pára.) Você ainda quer sair hoje à noite?

ALICE Pode ser...

ERNESTO

Mas vamos ver outro filme, senão a gente não vai conseguir comer aquele filé, depois...

ALICE Por quê?

(Ernesto ri, encantado com a distração dela.) ERNESTO

Agora, pelo amor de Deus, você pode me dizer afinal o que foi que aconteceu com a sua tia?

ALICE

Bobagem. Vinte anos de casamento. Um dia... (frisando) Sábado de manhã... ela pegou o despertador da cabeceira... daqueles antigos, grandes, pesados... e picou na cabeça de meu tio. Depois pediu o desquite.

ERNESTO E por quê?

ALICE

Foi o que a família quis saber. Aí ela disse que não aguentava mais acordar todo sábado de manhã e meu tio perguntar: "Beeeeem, o que é que a gente vai fazer hoje?

ERNESTO Só por isso?

(48)

ALICE

Você diz "só", é? Imagine 20 anos com isso no ouvido! "Beeeem..." É de matar! Aliás eu acho que foi pelo desgosto que ele morreu do jeito que morreu...

ERNESTO (curiosíssimo) E como foi?

ALICE

Ah, não! É uma história muito triste... não vou contar agora não. A gente fez as pazes, está num clima tão leve...

ERNESTO Conte, Alice, por favor.

ALICE

Não, é um caso muito triste, já disse. Que curiosidade! ( À parte) Agora ele me paga!

(Toca o telefone. Ernesto sai, irritado.)

CENA 10

ALICE

Ôi, mãe! Tá, sim. Tudo às mil maravilhas. Ontem ele me deu até um presente. Verdade! Um vestido! O quê? Horrível. Claro que eu agradeci...Heim? Consumado? Claro que está consumado. Consumadíssimo! Que anulação coisa nenhuma! Que idéia! Ernesto? Esquisito? Não acho não. Não tem nada de esquisito. Ele só é ... assim... sensível. É. Uma pessoa sensível. Minha mãe, eu vou desligar que ele já deve estar chegando. Tchau.

(49)

VOZ DA MÃE

Como é que você quer que eu tenha sossego? Ainda por cima, um homem que não come carne! Eu só estou pensando no seu futuro. Um passo em falso, e tudo desaba! Lembre-se do fim que teve o marido de sua prima, coitada. Ai, ai, eu não lhe digo é nada...

(Alice fecha a porta, estancando a Voz da Mãe. Depois abre-a com cuidado, constata o silêncio, passa a remexer e encontra uma pilha de vídeos.)

ALICE (olhando os vídeos, espantada) Uau!

(Ernesto entra em casa com uma "quentinha" de comida na mão.)

ALICE Surpresa! Você não vai acreditar no que eu achei!

ERNESTO

O que será dessa vez? (Vendo a pilha de vídeos na mão dela.) Onde foi que você pegou isso? Você andou mexendo nas minhas coisas?

ALICE

Não, é que eu fui procurar um... o... Ah! se alguém me contasse eu não ia acreditar... quer dizer que você gosta de filmes de sacanagem? Por que nunca me disse?

ERNESTO (encabulado e irritado)

Eu não gosto... quer dizer... não é meu, é de um amigo que me deu para guardar...

ALICE

Jura? Mas que estranho... que coincidência! Ele também se chama Ernesto? Porque está tudo com seu nome!

(50)

ERNESTO (`a parte)

Maldita mania minha de botar etiqueta em tudo! (Para ela) Me dá isso aqui! Você não tem direito! Você invadiu o meu espaço!

(Ele avança para tomar os vídeos e ela foge, lendo os títulos, subindo em cadeiras, no sofá.)

ALICE

Aqui tem coisa que até o diabo duvida! Nossa! "Penetrações diabólicas"! "Ato de Quatro"! Esse é bom. "O amor que fica". "Vulva Assassina". Credo! (Vai lendo outros títulos e comentando, enquanto foge dele.)

ERNESTO

Você agora extrapolou! Bisbilhotando nas minhas coisas! Me dá isso aqui! Isso é invasão! Eu tenho direito à privacidade!

ALICE (vendo que ele está furioso, ela pára de fugir) Deixa de ser dramático! Eu adorei.

ERNESTO Você... gosta?

ALICE

Adoro! Tem um que é bárbaro. É um castelo... e o cara tem uma coleção de chicotes incríveis...

ERNESTO (sem pensar) "Flagelações frenéticas".

ALICE Isso! Você tem?

ERNESTO Nem conheço.

(51)

ALICE Mas eu nunca podia imaginar que você...

ERNESTO (agarrando os vídeos) E pode continuar sem imaginar! Não se meta com minhas manias.

ALICE Mas eu não ligo... você pode ser maníaco à vontade!

ERNESTO (agarrado com os vídeos) E não me chame de maníaco!

ALICE Ah! Deixe disso. Vamos assistir um, juntos?

ERNESTO (espantado com a idéia) Assistir? Com você?!

ALICE

Claro! (Explicativa) Vídeo: ver, assistir... é feito pra isso, não?

ERNESTO Você enlouqueceu de vez. Mas nem morto!

ALICE (ofendida)

Está bem, eu já sei. Eu sou uma estranha, não é isso? Não posso compartilhar as suas manias...

ERNESTO (tocado)

Não, não é isso! Você não entendeu! Não é você... sou eu! Eu nunca assisti um filme de sacanagem com outra pessoa. Com ninguém! Eu ia morrer de vergonha!

(52)

ALICE (intrigada)

Mas então... pra que... (entendendo) Ah! Não... não me diga que você tem todos esses filmes pra ver...

ERNESTO

(com timidez encantadora) Sozinho.

ALICE

Cara, você é muito louco... quer dizer que... com outra pessoa...

ERNESTO

Eu não posso nem imaginar alguém olhando pra minha cara e me vendo... eu vendo isso...

ALICE

(imitando o desprezo dele) "Isso"?

ERNESTO Sim, "isso". Como disse Santo Agostinho...

ALICE Santo Agostinho? Ele também gostava de sacanagem?

ERNESTO Não dá pra conversar com você! Você é tão... tão literal!

ALICE Tá bom. Mas o que foi que seu santo disse?

(53)

ERNESTO

Ele não é meu santo, mas ele disse: "O mal está no escândalo do mal. Pecar em segredo até nem é pecar." Ou qualquer coisa parecida.

ALICE

Taí, dessa eu gostei. Mas se nós estamos casados, onde está o pecado? ERNESTO

Lá vem você outra vez, tomando tudo ao pé da letra. Além do mais, mesmo casados, você é você e eu sou eu.

ALICE Que original! Mas... e o contrato?

ERNESTO Contrato?

ALICE

O contrato indissolúvel. Você não ouviu o que o padre disse? Unidos para sempre, na riqueza e na pobreza, na saúde e na doença, na tristeza e na alegria, na briga... e na pornografia!

ERNESTO

(com raiva de ter prestado atenção às bobagens dela) Não torra!

ALICE

(só então vendo a embalagem) Que é isso? Comida?

ERNESTO Não. É um crocodilo, não está vendo?

(54)

(comovida)

Oh, Ernesto, que gracinha... Como você adivinhou que eu sou louca por lazanha?

ERNESTO (fingindo indiferença)

É melhor botar no micro-ondas. Já deve estar gelada... pelo tempo que você perdeu com essa palhaçada...

ALICE (provocante) Pois a gente podia recuperar o tempo perdido...

ERNESTO (já meio derretido) Nem vem. Se for aquela história outra vez...

ALICE (pegando um vídeo)

Unzinho só... Já pensou que "massa" a gente comendo lazanha e... heim?

ERNESTO (rindo, atraído por ela)

É. É muita "massa" pra mim. Puxa, eu não consigo ficar com raiva de você... Você é tão...

ALICE Então você topa? Vamos? Quer experimentar?

ERNESTO

( aproxima-se rindo, sedutor) Por que você acha que lazanha combina com sacanagem?

(55)

ALICE

Ai, que saco! A pior coisa do mundo é um tarado enrustido!

(Alice vai saindo e Ernesto vira-se para atender ao telefone. Quando ele pega o fone, ela retorna na ponta dos pés e fica escondida embaixo do mezanino.)

CENA 11

ERNESTO

Ah! Não! (Atende.) Alô! Mas o que foi agora, papai? (Afasta o fone, como se ouvisse gritos.) Olhe aqui... Não, não quero... Jogar areia nos seus olhos por que? De dia e de noite? De dia e de noite o quê? Não sei porque, é um casamento normal... Antro? Que antro? Pelourinho? Não, o Pelourinho não é "antro", não senhor, e ela é maior e vacinada! Quem lhe disse? Quem lhe disse que eu não tenho pulso? Você vai ver! Vai adiante, sim. Eu também aposto. 6 de janeiro. Pois eu aposto! Você vai ver... Pois espere sentado! (Desliga.)

ALICE (surgindo atrás dele, de repente) Muito bem. Pode ir falando.

ERNESTO Ai, que susto!

ALICE Pode falar.

ERNESTO Mas você...

ALICE

Ouvi, sim. Apesar de surda. Ouvi. 6 de janeiro. Qual é o babado, o mandu, a maracutaia que a santa esposa aqui está por fora?

(56)

ERNESTO Não fale assim... eu ia te contar... mas uma coisa e outra...

ALICE

Sim, e outra coisa e uma... Fale. Que é que tem 6 de janeiro?

ERNESTO É que meu irmão mais novo, Onofre, vai fazer 21 anos...

ALICE

Normal. Vamos cantar parabéns, muitos anos de vida... e daí?

ERNESTO

É que... meu pai já tinha determinado que eu, por ser o filho mais velho... ia pegar a direção da fábrica...

ALICE "Das fábricas", você quer dizer.

ERNESTO

Pois é. Das fábricas... (estranhando) Como é que você sabe?

ALICE

Quem faz as perguntas agora sou eu. Continue. Aliás... espere aí... Você disse que era o mais velho... e sua irmã? Não é ela a mais velha?

ERNESTO (Com desdém) Ernestina? Não... ela é mulher... ela não conta.

ALICE Como é?

(57)

ERNESTO

(assustado, percebendo o que disse)

Para meu pai, entenda bem! Ele é um velho retrógrado, jamais ia passar a presidência pra uma mulher. (Ao público) Que isso fique claro: pra mim, uma mulher pode chegar a ser uma executiva tão competente quanto um homem! Principalmente se ela desenvolver determinadas habilidades... digamos... masculinas.

ALICE

Ernesto, pára com esse discurso idiota! Continuando. Então, o papai já tinha decidido que entre os dois machos da casa o mais velho ia tomar conta do destino das empresas. Ótimo pra você. E daí?

ERNESTO

Acontece que ele não gosta da idéia de um filho solteiro na direção. Pra ele, solteiro é sinônimo de irresponsável.

ALICE É bem a cara dele. E daí?

ERNESTO

Daí... ele vivia insistindo que eu tinha que me casar, "assumir responsabilidades", como ele diz.

ALICE E daí...

ERNESTO

Daí que... quando aconteceu aquela confusão toda... a festa, a bebedeira, sua mãe fazendo escândalo... Bom, apesar de ser um mal-entendido... Você compreende, não é? Bom, eu vi ali a chance de fazer a vontade dele... pelo menos por um tempo... até que ele me entregasse a presidência.

(58)

Sei.

ERNESTO Daí, você sabe... eu casei.

ALICE

Sei. Comigo. (Contendo-se) E como é que seu irmão entra na história?

ERNESTO

É que... se meu pai descobrisse que foi tudo uma armação, que eu me casei "de mentirinha", que a gente mal se conhecia... ele ia ficar furioso... e com certeza passava a presidência pra meu irmão, Onofre... com certeza... ele ia ficar puto da vida... ah! se ia... Ele odeia mentira!

ALICE (dura) Nisso ele tem razão. Continue.

ERNESTO

E ele já está desconfiado... Chegou a apostar comigo que eu não conseguia ficar casado nem um mês... que eu era cheio de manias, que eu não ia aturar ninguém... que ninguém ia me aturar...

ALICE (dura) Nisso também ele tem razão.

ERNESTO

Mas acontece que meu irmão só pode assumir o cargo se tiver... quando tiver 21 anos...

ALICE Ah! 6 de janeiro...

ERNESTO

(59)

(Silêncio.)

ERNESTO Você me entende, não é?

ALICE

Será que eu ouvi mesmo o que eu ouvi? Não, é sério. Eu quero saber se eu estou sonhando. Quer dizer... que você precisava me aturar até 6 de janeiro...

ERNESTO Aturar? Não, não fale assim.

ALICE Suportar, agüentar, ter saco... que diferença faz?

ERNESTO Alice, entenda. Isso foi antes... eu não te conhecia...

ALICE

Nem me conhece agora! (Furiosa) Se me conhecesse, ia saber que minha primeira regra de convivência é: "Não minta pra mim!". Você! Você! Ai, que ódio! Com a sua listinha cretina de regras, arrotando superioridade... e me tratando como imbecil! Eu te odeio! (Bate nele.)

ERNESTO Não! Alice, escuta!

ALICE

Sim, me tratou como imbecil... e o pior é que eu sou imbecil. Idiota! Cretina! Burra! Cavala! Égua!

ERNESTO Alice, me perdoa, eu sei que devia ter te contado...

(60)

ALICE

Você sabe? Mas como foi que eu não desconfiei? Por isso você era tão tolerante comigo! Ninguém nunca me aguentou nem dois dias!

ERNESTO (decepcionado) Você me achou muito tolerante, foi?

ALICE

Insuportavelmente! Mas agora eu entendi... Calhorda! Você nem pensou que podia ter contado comigo? Que eu podia ser sua cúmplice? Que eu podia te ajudar, encarar junto a coisa toda?

ERNESTO

Tive medo, não sei. Você é tão imprevisível! Afinal, eu nem sei porque que você ficou comigo até hoje!

ALICE

Não sabe porque também é cretino, burro, cego! (Bate nele.)

ERNESTO E por que foi? Conta pra mim!

ALICE

Não digo. E não digo também o que aconteceu com meu tio! Você nunca vai saber!

ERNESTO (aproximando-se) Venha cá...

ALICE

Não encoste em mim! Você me tratou pior do que uma estranha, Ernesto! E eu, babaca, querendo segurar a onda, a atmosfera do "lar doce lar"... comprei até um livro de receitas! Mas que jumenta que eu sou!

(61)

ERNESTO Você comprou o quê?

ALICE (melodramática)

Nada. Coisas do passado. Agora eu sou uma nova mulher. Aquela Alice está morta.

ERNESTO

Não fale assim. Você precisa entender que as coisas mudaram...

ALICE

Ah! Isso com certeza. Sim, mudaram. E mudaram pra pior! Pelo menos pro seu lado! Porque agora eu vou jogar areia no seu brinquedo. (Vai para o telefone.)

ERNESTO Alice, olha pra mim...

ALICE

Já olhei demais. Até já decorei a sua cara. (`A parte) Ah! Ele vai ter que me paparicar muito! (Começa a discar.)

ERNESTO

Por favor, Alice! Falta tão pouco, agora! Me dá uma chance!

ALICE

Você teve todas! Teve todas as chances de não me tratar como uma cretina! Mas se passou! Preferiu esconder o jogo. Pois agora eu vou ligar para a residência dos Mendonça Prado e devolver ao mequetrefe do seu pai todos os elogios que ele me tem feito. (Ele coloca o dedo no telefone, desligando.) E tira a mão daí!

ERNESTO Não faça isso, Alice!

(62)

(Interrompendo a discagem)

Mas antes eu tenho uma novidade pra você. Eu podia ir embora sem lhe dizer nada, mas não vou perder esse gosto! Você está se julgando um grande estrategista, um refinado malandro, um maquiavélico armador...

ERNESTO Eu não sou nada disso!

ALICE

E não é mesmo! Sabe por quê? Por que você acha que eu lhe aturei até hoje, heim? Pelos seus belos olhos, ou por sua vasta cabeleira?

(Ernesto passa discretamente a mão nas entradas do cabelo.)

ALICE (cruel)

Você... engoliu aquela história da festa? Acha mesmo que eu entrei lá por acaso? Pois fique sentadinho aí, pra não cair do cavalo! Agora eu vou dizer tudo! Eu vou embora, mas antes vou desarmar este circo todo!

ERNESTO (temeroso)

Alice... lembre-se que tudo que você disser poderá ser usado contra você...

ALICE

E eu com isso? Agora dane-se tudo! Tem um ventilador aí? (Grita.) Eu quero falar na frente do ventilador! (Baixo, em tom narrativo) Eu não aguentava mais minha mãe azucrinando meu ouvido, falando do "império" dos Mendonça Prado, do ótimo partido que você era... A princípio eu não liguei, mas minha mãe é dessas criaturas que quando querem alguma coisa não largam o osso da vítima até conseguir! Virou uma idéia fixa. Insistia que eu pelo menos tentasse me aproximar, e mais isso, e mais aquilo... Aí, quando eu soube da festa do seu aniversário... eu me fiz convidar por aquela sua prima... lembra? A doida da festa... "Quer experimentar esse aqui? É a maior viagem..." Claro que eu sabia que ela estava de olho em mim...

Referências

Documentos relacionados

Los valores de referencia en mg/dL, para el presente método, fueron obtenidos por la determinación de Ácido úrico en poblaciones sanas de sexo masculino y femenino..

Que não gosta da rosa, Que não quer A borboleta Porque é amarela e preta, Que não quer maçã nem pêra Porque tem gosto de cera, Porque não toma leite Porque lhe parece azeite,

Desde de 2009 que tem desenvolvido a sua carreira profissional como conservadora-restauradora de património imóvel, tendo desempenhado diversas funções dentro da área, tais como:

MAS A DONA BARATINHA SE ASSUSTOU MUITO COM O BARULHÃO DELE E DISSE: – NÃO, NÃO, NÃO, NÃO QUERO VOCÊ, NÃO, VOCÊ FAZ MUITO BARULHÃO!. E O CACHORRO

Pulsar la tecla de TARE mientras se encu- entra el peso extra sobre la báscula y espe- rar hasta que aparezca 0.000 en el

Promovido pelo Sindifisco Nacio- nal em parceria com o Mosap (Mo- vimento Nacional de Aposentados e Pensionistas), o Encontro ocorreu no dia 20 de março, data em que também

Podem treinar tropas (fornecidas pelo cliente) ou levá-las para combate. Geralmente, organizam-se de forma ad-hoc, que respondem a solicitações de Estados; 2)

[r]