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IV SIMPÓSIO GÊNERO E POLÍTICAS

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IV SIMPÓSIO GÊNERO E POLÍTICAS

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE LONDRINA

08 a 10 de junho de 2016

GT10. Transexualidades: subjetividades e relações institucionais

Direito penal para todas? Considerações sobre a aplicabilidade da Lei do

Feminicídio em favor de mulheres transgênero

Marília Ferruzzi Costa

(Graduanda em Direito pela Universidade Estadual de Maringá)

Isadora Vier Machado

(Mestre em Direito, Estado e Sociedade (UFSC); Doutora em Ciências Humanas (UFSC); professora adjunta de Direito Penal na Universidade Estadual de Maringá. E-mail: isadoravier@yahoo.com.br)

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IV SIMPÓSIO GÊNERO E POLÍTICAS PÚBLICAS

GT10. Transexualidades: subjetividades e relações institucionais

Direito penal para todas? Considerações sobre a aplicabilidade da Lei do Feminicídio em favor de mulheres transgênero1

Marília Ferruzzi Costa2 Isadora Vier Machado3 Resumo: Este artigo tem como objetivo analisar as implicações de se ter optado, no processo de elaboração do texto da recente Lei do Feminicídio (Lei 13.104/2015), pelo termo “sexo feminino”, ao invés de “gênero feminino”, propondo uma reflexão a respeito da necessidade e possibilidade de se estender os efeitos da lei para homicídios praticados contra todas as mulheres, mormente contra as mulheres transgênero, as quais são comumente excluídas da categoria de sujeitas do sexo feminino. Por meio de consultas bibliográficas do Direito, da Sociologia e dos Estudos de Gênero, foi possível observar que a motivação da violência nos crimes de homicídio praticados contra mulheres está relacionada a um contexto de relações de gênero, caracterizado pela desvalorização social e aversão às mulheres e ao feminino. No entanto, a violência contra “mulheres trans” é qualificada por uma motivação ainda mais específica, que seria a rejeição, ódio e repulsa em relação ao feminino encarnado em corpos que estariam cromossomica e hormonalmente destinados a uma identidade de gênero masculina, razão pela qual também são necessários mecanismos de enfrentamento específicos. Em relação ao texto final da lei, conclui-se que os deslocamentos discursivos propostos por teorias feministas em relação às sujeitas “mulheres” são alvos constantes de disputas políticas. Dessa forma, a substituição do termo “gênero feminino” por “sexo feminino” decorre de uma manobra política para excluir do alcance da lei as mulheres transgênero. Apesar de tal manobra legislativa, defende-se ser possível atribuir significado amplo ao termo “sexo feminino”, além de sua definição meramente biológica. Parte-se, para tanto, da ideia de que tanto o sexo, quanto o gênero, são socialmente construídos, e que a própria distinção entre os termos é definida de acordo com critérios de conveniência.

Palavras-chaves: mulheres trans; feminicídio; transfeminicídio.

1 Optou-se por utilizar, ao longo do presente artigo, os termos “mulheres transgênero” ou “mulheres trans” como forma de contemplar tanto as mulheres que se definem como transexuais, como aquelas que se definem como “travestis”, conforme conceituação instruída por Jesus (2012, p. 10).

2 Graduanda em Direito pela Universidade Estadual de Maringá. E-mail: mariliaferruzzi@gmail.com.

3 Mestre em Direito, Estado e Sociedade (UFSC); Doutora em Ciências Humanas (UFSC); professora adjunta de Direito Penal na Universidade Estadual de Maringá. E-mail: isadoravier@yahoo.com.br.

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1 Introdução

Em 9 de março de 2015, entrou em vigor a lei n° 13.104, que institui o feminicídio como nova qualificadora do crime de homicídio, atribuindo pena de reclusão de doze a trinta anos ao homicídio praticado “contra a mulher por razões da condição de sexo feminino, quando o crime envolver violência doméstica e familiar ou motivado pelo menosprezo ou discriminação à condição de mulher”. Significa dizer que sobre os crimes de homicídio motivados pela mera condição de mulher do sujeito passivo não mais incide a qualificadora genérica de “motivo torpe”, mas sim uma qualificadora ainda mais específica, que diz respeito a uma forma própria de violência.

O feminicídio se constitui como a forma máxima de violência e de controle exercidos sobre as mulheres, fato que tem despertado a atenção de diferentes países. De acordo com Segato (2006, p. 5), o que particulariza os homicídios praticados contra mulheres é que estes são motivados pelo ódio que resulta do descumprimento, por parte das mulheres, das regras patriarcais de superioridade masculina. O feminicídio é, sobretudo, um crime de poder, o qual tem como função a manutenção e a reprodução de um sistema patriarcal que preza pelo controle sobre o corpo das mulheres e também pela capacidade punitiva sobre estas. Ainda segundo Segato (2006, p. 11), os crimes de feminicídio não só se encontram demarcados pela categoria gênero, como podem ser classificados como “crimes de segundo Estado” ou “crimes de corporação”, já que assumem expressão genocida, à medida em que os corpos das mulheres são tidos como verdadeiros territórios de dominação.

No Brasil, a figura do feminicídio surge em um contexto influenciado pela Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006), que visa prevenir e coibir a violência de gênero no âmbito doméstico e familiar. Porém, mesmo com a vigência da referida lei, o Brasil continuou apresentando uma taxa alarmante de homicídios praticados contra mulheres. Diante de tal fato, ficou evidente que, em termos da implementação da Lei Maria da Penha e de políticas para erradicar a violência de gênero, ainda havia muito a ser feito, e é nessa conjuntura que se apurou a necessidade de uma lei específica que tratasse dos homicídios praticados contra mulheres.

Embora pairem muitas críticas sobre a qualificadora, por esta teoricamente representar uma paradoxal busca por direitos das mulheres através de um sistema penal punitivo e de bases patriarcais (KARAM, 2015), é preciso reconhecer que a inserção da categoria sociológica “feminicídio” no texto da lei pode exercer grande impacto político, contribuindo para uma maior compreensão e visibilidade em relação às mortes de mulheres

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causadas pela violência de gênero. O ato de incluir o feminicídio na lei penal reflete um reconhecimento da existência desse fenômeno, o que por sua vez permite que sejam tomadas medidas concretas de enfrentamento, de forma que tal inclusão em nosso ordenamento não gera somente o efeito simbólico de positivar a categoria sociológica em lei, mas também surte efeitos concretos, na medida em que exerce influência na própria estrutura social, impactando as subjetividades e escolhas dos indivíduos (ELIAS; MACHADO, no prelo; SEGATO, 2006, p. 11).

No entanto, no que diz respeito às falhas técnicas da Lei, torna-se importante observar que o termo “gênero feminino” foi suprimido do texto final, sendo posteriormente substituído pelo termo “sexo feminino”. Importante observar que tal substituição não decorre, porém, de uma falta de conhecimento técnico das/os legisladora/es, mas sim de uma manobra para diminuir a potência e o alcance da lei (ELIAS; MACHADO, no prelo). Tal manobra teve como objetivo restringir sua aplicação apenas em favor de mulheres que se enquadrem na definição “biológica” de “sexo feminino”, excluindo muitas outras mulheres que, teoricamente, não estariam enquadradas em tal definição, como as mulheres transgênero. Por tal motivo, serão brevemente exploradas a seguir a necessidade e possibilidade de que mulheres transgênero sejam contempladas com a aplicação da lei do Feminicídio em seu favor.

2 Deslocamentos discursivos e o Direito enquanto instrumento de construção de gênero

Como já destacado anteriormente, a figura do feminicídio surge no Brasil em ambiente inspirado pela Lei 11.340/2006. A denominada Lei Maria da Penha só se tornou possível a partir de reinvindicações e mobilizações feministas, estudos promovidos por organizações e uma maior representatividade feminina no Congresso Nacional. As necessidades para o enfrentamento da violência doméstica praticada contra mulheres, bem como os efeitos que surtiriam da lei em questão foram definidas a partir das falas e reinvindicações das próprias mulheres (CALAZANS; CORTES, 2011, p. 39-46). Por estas razões, essa importante lei permitiu que houvesse um deslocamento discursivo em relação às mulheres como “sujeitos”. Com efeito, a Lei Maria da Penha, seguindo a crítica feminista ao essencialismo, procura apresentar uma desconstrução de uma identidade feminina universal, acatando um conceito diverso e plural de “mulher”, de forma a entrecruzar o gênero com outras categorias como raça/etnia, geração e sexualidade. (CAMPOS, 2011, p. 5).

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Um dos exemplos desse deslocamento discursivo é a utilização, por parte da lei, do termo “mulher em situação de violência” no lugar da categoria vítima, de forma que as mulheres são deslocadas, discursivamente, de uma posição vitimizante para uma situação de superação (CAMPOS, 2011, p. 6). De forma semelhante, o art. 2° da lei preceitua que:

Art. 2° Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia e orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social. (Art. 2o da Lei 11.340/2006).

Dessa forma, a lei contempla, de acordo com Campos (2011, p. 178), o “princípio da não discriminação para o gozo dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana”, não permitindo que nenhum desses marcadores, como classe, etnia, sexualidade e identidade, impeçam o exercício desses direitos fundamentais.

Ademais, como também observa Campos (2011, p. 179), ao utilizar o conceito de gênero para definir a violência doméstica praticada contra as mulheres, a Lei Maria da Penha não restringe sua aplicação à mulher enquanto ser biológico. Dessa forma, nas palavras de Campos (2011, p. 179-180), “as mulheres ‘trans’ são protegidas pela Lei. Essa proteção não se limita à identidade sexual, mas engloba também a identidade de gênero”.

Com efeito, Scott (1989, p. 21) define “gênero” como a conexão de duas proposições, a do gênero como “elemento constitutivo das relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos” e a do gênero como forma de significação das relações de poder. A primeira das proposições, por sua vez, é dividida em quatro dimensões, dentre as quais se encontra a dimensão subjetiva, que diz respeito aos elementos da identidade subjetiva dos sujeitos e sujeitas, que interagem com as relações sociais. (SCOTT, 1989, p. 21; CAMPOS, 2011, p. 3). Ora, como a identidade de gênero diz respeito à autopercepção e à forma como pessoas se expressam socialmente (JESUS, 2012, p. 8), fica claro que as mulheres trans também se encontram incluídas no conceito de “mulher”, para efeitos da Lei Maria da Penha. Nesse sentido,

(...) entende-se que a vivencia de um gênero (social, cultural) discordante com o que se esperaria de alguém de um determinado sexo (biológico) é

uma questão de identidade, e não um transtorno. (JESUS, 2012, p. 14,

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Não restam dúvidas, portanto, quanto à aplicação da Lei Maria da Penha aos casos de violência doméstica praticadas contra mulheres trans, já que estas se enquadram, subjetivamente e socialmente, na definição de gênero feminino. Infelizmente, apesar de ter surgido em um contexto influído pela Lei Maria da Penha, a Lei do Feminicídio traz consigo um retrocesso em relação às mulheres enquanto sujeitas, ao dispor que a pena do crime de homicídio é aumentada quando este é praticado “contra a mulher por razões da condição de sexo feminino”. Como já exposto anteriormente, a substituição da categoria “gênero” pela categoria “sexo” representa uma manobra legislativa para restringir a aplicação da lei aos homicídios praticados apenas contra mulheres enquanto seres biológicos. Houve, portanto, uma regressão discursiva com a aprovação da Lei do Feminicídio, em uma tentativa de afirmar que a violência praticada contra as mulheres, a misoginia e a aversão ao corpo feminino estariam ligados intrinsecamente aos cromossomos e à anatomia genital tradicionalmente entendida como feminina, reforçando uma ideia universal, binária e globalizante das identidades e papeis sociais (JESUS, 2010, p. 8).

Nesta linha, segundo Campos (2011, p. 6), os deslocamentos discursivos propostos pela teoria feminista e conquistados pela Lei Maria da Penha são objeto de disputa política e, consequentemente, são constantes os esforços para que tais deslocamentos sejam suprimidos e retornem a seu status quo. Retornando ao conceito de gênero proposto por Scott (1989, p. 21), a dimensão normativa também figura como um dos elementos do gênero enquanto “elemento” constitutivo das relações sociais. Os conceitos normativos, expressos fortemente pelas teorias jurídicas, colocam em evidência a interpretação de sentido dos símbolos, tomando tipicamente a “forma de uma oposição binária que afirma de forma categórica e sem equívoco o sentido do masculino e do feminino” (SCOTT, 1989, p. 21). O direito, quando concebido como instrumento de enfrentamento à violência de gênero, muitas vezes é construído e aplicado visando a proteção apenas de um segmento de mulheres, ou seja, aquelas que se enquadram no conceito de “mulher” construído em um modelo patriarcal de sociedade. As decisões judiciais, por exemplo, podem se constituir como reprodutoras de estereótipos de gênero, que por sua vez “atuam desconhecendo e negando subjetividades que não se enquadram no modelo de sujeito de direito hegemonicamente construído pelo sistema legal” (DEFAGO, 2015, p. 36).

No caso da Lei 13.104, é possível observar exclusão e discriminação na própria elaboração da lei, já que as/os legisladora/es optaram por substituir o termo “gênero feminino” por “sexo feminino”, em uma clara tentativa de excluir da proteção da lei as mulheres transgênero que, teoricamente, não pertenceriam à categoria de sujeitas do sexo

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feminino, exclusão esta que não condiz com a conjuntura atual de violência de gênero no Brasil, nem com a necessidade concreta de se amparar legalmente todas as mulheres. Se, por um lado, o “Mapa da Violência 2015: homicídio de mulheres no Brasil” constatou que o Brasil ocupa a 7ª posição no ranking de países com maior taxa de homicídio de mulheres (WAISELFISZ, 2015, p. 27), por outro, ocupa atualmente a primeira posição dentre os países onde ocorrem mais homicídios de travestis e transexuais, de acordo com relatório da ONG internacional Transgender Europe (TRANSGENDER EUROPE, 2016). Jesus (2012, p. 11) chama atenção para o modo hediondo como tais crimes são executados, como, por exemplo, por meio de facadas, alvejamento sem aviso e apedrejamento.

Diante de tais informações, torna-se relevante questionar se tais homicídios de mulheres transgênero se encontram realmente enquadrados no conceito sociológico de “feminicídio”, ou deveriam ser tratados como crimes ainda mais específicos, questão que será trabalhada no item seguinte.

3 Mulheres trans e violência de gênero

Conforme visto anteriormente, pessoas transgênero se constituem como particular alvo de homicídios no Brasil. Isto posto, surge o obstáculo de definir se as mulheres trans inseridas nesses dados são mortas também por serem mulheres ou tão somente por serem pessoas transgênero.

Mulheres transgênero são aquelas que, embora tenham sofrido imposição de um gênero masculino desde o seu nascimento, assumem a sua identidade de gênero feminina, ou simplesmente vivenciam papeis e comportamentos tidos como femininos. Importante esclarecer, portanto, que o gênero de uma mulher é atribuído de acordo com a forma como esta se identifica e se apresenta perante a sociedade (JESUS, 2012, P. 16-17).

Bento (2014, p. 1) observa que existe, de uma maneira geral, uma aversão aos comportamentos tidos como pertencentes ao gênero feminino, com diversos graus de exclusão. A violência de gênero se expressa através da misoginia, ou seja, pelo “ódio e desprezo pelo corpo feminino e pelos atributos associados à feminilidade” (SEGATO, 2006, p. 5). Conforme o exposto, mulheres trans vivenciam e possuem uma identificação feminina e vivenciam os papéis tidos como pertencentes ao gênero feminino perante o meio social. Por essa razão, para efeitos de violência de gênero, as mulheres trans também são alvo de ideias e práticas misóginas.

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No entanto, o elevado número de mortes violentas de mulheres trans não deve ser considerada enquanto fenômeno decorrente tão somente de misoginia. Bento (2014, p. 1) sugere o termo “transfeminicídio” para nomear os homicídios cometidos contra as pessoas trans. Isto porque é preciso reforçar que a motivação da violência, nesses casos, advém do gênero, porém, com uma motivação ainda mais específica, que seria a rejeição, ódio e nojo em relação ao feminino encarnado em corpos que estariam cromossomicamente e hormonalmente destinados a uma identidade de gênero masculina. Nas palavras da autora:

Se o feminino representa aquilo que é desvalorizado socialmente, quando este feminino é encarnado em corpos que nasceram com pênis, há um transbordamento da consciência coletiva que é estruturada na crença de que a identidade de gênero é uma expressão do desejo dos cromossomas e dos hormônios. O que este transbordamento significa? Que não existe aparato conceitual, linguístico que justifica a existência das pessoas trans. (BENTO, 2014, p. 1)

Transfeministas4 chamam atenção ainda para o fato de que mulheres transgênero,

enquanto grupo de mulheres que sofrem múltiplas opressões, são particularmente mais vulneráveis à violência. (KOYAMA, 2003, p. 6). Nesse sentido,

Primeiro, mulheres trans se tornam alvo porque vivemos como mulheres. Ser mulher nesta sociedade misógina é perigoso, mas existem alguns fatores que nos tornam mais vulneráveis quando somos alvo de violência sexual e doméstica. Por exemplo, quando um homem ataca uma mulher trans, especialmente se ele tenta estuprá-la, ele pode descobrir que a vítima tem ou costumava ter uma anatomia “masculina”. Essa descoberta frequentemente conduz a uma agressão mais violenta, motivada por homofobia e transfobia. (KOYAMA, 2003, p. 6-7, tradução livre)

Destaca-se, nesse sentido, que as violências praticadas contra as pessoas trans seguem um padrão de crimes de ódio, “motivados por preconceito contra alguma característica da pessoa agredida que a identifique como parte de um grupo discriminado, socialmente desprotegido” (JESUS, 2012, p. 11).

Portanto, pode-se concluir que as mulheres trans também estão sujeitas a práticas misóginas, relacionadas ao ódio e ao controle sobre as características e os corpos tidos como femininos, já que, enquanto mulheres, transmitem em suas vivências signos relacionados a representações femininas. No entanto, mais do que isso, essas mulheres encontram-se

4 Define-se o transfeminismo como a “linha de pensamento e movimento de cunho feminista que reconhece o direito à autodeterminação das identidades de gênero das pessoas transgênero e cisgênero, o poder exclusivo dos indivíduos sobre os seus próprios corpos e a interseção entre as variadas identificações dos sujeitos” (JESUS, 2012, p. 31).

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inseridas em uma política de transfobia e de eliminação da população transgênero (BENTO, 2014, p. 1). Por essa razão, fica evidente que tais mulheres precisam de um amparo estatal específico.

Conforme visto anteriormente, a substituição do termo “gênero feminino” pelo termo “sexo feminino” teve como escopo excluir as mulheres transgênero do âmbito da aplicação da Lei do Feminicídio. No entanto, torna-se relevante discutir se a referida lei não poderia ser aplicada em favor de mulheres trans mesmo sem alterações em seu texto legal. Afinal, o termo “sexo feminino” realmente é destinado apenas a mulheres cisgênero5?

É comum, nos textos das temáticas de gênero e teorias feministas, que “sexo” seja utilizado para definir características biológicas, enquanto “gênero” é utilizado para definir as expressões sociais daquelas decorrentes. Essa separação entre sexo e gênero foi uma poderosa retórica utilizada pela segunda onda feminista para desconstruir os papéis de gênero compulsoriamente determinados. No entanto, essa divisão permitiu que as feministas questionassem apenas parte do problema, permitindo que a naturalização de uma “essência” masculina ou feminina continuasse se perpetuando. Transfeministas, por outro lado, sustentam que tanto o sexo quanto o gênero são socialmente construídos e que a própria distinção entre sexo e gênero é definida de acordo com critérios de conveniência (KOYAMA, 2003, p. 4).

A construção social do sexo biológico é mais que uma observação abstrata: é uma realidade vivida por muitas pessoas intersexo. Pela sociedade não prever a existência de pessoas cujas características anatômicas não se encaixam em masculino ou feminino, essas pessoas são constantemente mutiladas por profissionais da medicina e manipulados a viver conforme o sexo determinado. (KOYAMA, 2003, p. 4, tradução livre)

De maneira semelhante, Fausto-Sterling (2001, p. 77) aponta que as discussões públicas e científicas que tendem a considerar o sexo como algo real, e o gênero como algo construído, na realidade, estão reproduzindo falsas dicotomias. A autora afirma que o sexo também é construído socialmente, e também cita como prova disso a manipulação médica dos próprios marcadores mais visíveis e exteriores do gênero, quais sejam, os órgãos genitais. Ela observa, ainda, que a pesquisa científica em torno da natureza envolve um processo de construção do conhecimento, de forma que os cientistas definem seus argumentos e instrumentos de forma particular, influenciando socialmente na forma do debate e da análise,

5 Definição oposta à transexualidade, abarca as pessoas cuja identidade de gênero confere com a designação de gênero preliminarmente atribuída pela sociedade.

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de modo que a forma de debate e de análise é inteiramente limitada socialmente (FAUSTO-STERLING, 2001, p. 78).

Portanto, apesar dos esforços das/os legisladora/es para restringir aplicação da Lei do feminicídio, mostra-se plenamente possível uma discussão (e desconstrução) a respeito da suposta diferenciação entre os termos “sexo” e “gênero”.

4 Considerações finais

Conforme foi exposto no presente artigo, mesmo quando são conquistados importantes deslocamentos discursivos em relação às sujeitas “mulheres” em nosso ordenamento jurídico, não cessam os esforços para reverter e deslegitimar tais deslocamentos. No caso da Lei 13.104 (Lei do Feminicídio), o retrocesso discursivo se apresenta por meio da supressão da expressão “gênero feminino” do texto da lei, com sua consequente substituição pelo termo “sexo feminino”. No entanto, apesar dos esforços para se excluir do âmbito da lei mulheres que teoricamente não estariam enquadradas no conceito biológico de mulher, resta demonstrado que esse conceito pode também ser relativizado. A falsa dicotomia entre “sexo” e “gênero” é desmantelada quando observamos que o processo de construção do conhecimento é constituído através de interesses e instrumentos antes influenciados pelo meio social em que se encontram também imersos os/as cientistas.

Por fim, conclui-se que as mulheres transgênero possuem o pleno direito de que a qualificadora do feminicídio incida também a seu favor, já que suas mortes são motivadas pelo ódio às identidades e comportamentos tidos como femininos. No entanto, essas mulheres encontram-se inseridas também em um contexto de verdadeiro extermínio da população trans, que se estabelece através do nojo e do ódio em relação a corpos que não seguem os padrões de gênero impostos socialmente. Por esta razão, para além da extensão da aplicabilidade da lei do feminicídio para casos de homicídios praticados contra mulheres trans, é necessária também a instituição de políticas e mecanismos de enfrentamento específicos ao combate da transfobia, para que todas as mulheres, sem exceção, possam exercer com dignidade o seu direito primordial à vida.

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