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História e Literatura: negociação, subversão e moçambicanidade em movimento nas narrativas de Ungulani Ba Ka Khosa e Mia Couto.

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História e Literatura: negociação, subversão e moçambicanidade em movimento nas narrativas de Ungulani Ba Ka Khosa e Mia Couto.

THIAGO WESLEY CUSTÓDIO SILVA

Este artigo tem como objetivo fazer algumas inferências sobre uma pesquisa de mestrado em andamento, desenvolvida na PUC-SP, com o título História e Literatura:

negociação, subversão e moçambicanidade em movimento nas narrativas de Ungulani Ba Ka Khosa e Mia Couto. De maneira sucinta, estas inferências debaterão as representações das

relações de poder nos discursos internos das obras Ualalapi (1987) e As mulheres do imperador (2018), de Ungulani Ba Ka Khosa e do primeiro volume da trilogia As areias do imperador,

Mulheres de cinzas, de Mia Couto, publicada em 2015, focalizando nas representações do

colonialismo português e sua relação com a moçambicanidade e o seu imaginário, buscando entrecruzar estas temáticas com o presente da escrita de cada uma das narrativas.

Uma vez que neste artigo há a centralidade de conceitos como colonialismo, representação, identidade (moçambicanidade) e imaginário, a sustentação teórico-metodológica para a análise das fontes perpassa basicamente a três teóricos: Stuart Hall, para pensar a literatura como representação, pois, a linguagem escrita“é um dos “meios” através do qual pensamentos, ideias e sentimentos são representados numa cultura”, dando-lhe significados (HALL, 2016: 18); Francisco Noa, para pensar a literatura moçambicana e sua relação com a moçambicanidade e seu imaginário; e Achille Mbembe, para refletir sobre identidade e sua relação com o colonialismo. De modo geral, todos estes autores permitem, dentro do emaranhado das relações de poder no interior das narrativas, pensar o entrecruzamento da moçambicanidade com o colonialismo que se prefigura na dispersão e na multiplicidade, onde “o colonizado é um indivíduo vivo, falante, consciente, agente – e sua identidade é o resultado de um movimento triplo de arrombamento, apagamento e reescrita de si” (MBEMBE, 2019: 85). Ainda mais, como Noa mesmo explana, quando se pensa a questão identitária resultante da colonização em África necessita-se da centralidade do conceito de alteridade, uma vez que “se é um ao mesmo tempo que se é outro. É-se igual ao mesmo tempo que se é diferente. Ou

Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

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ainda, só se consegue ser outro, mesmo que de forma nem sempre consciente” (NOA, 2017: 121).

No período pós-independência, a partir de 1975, e mesmo um pouco antes dele, a ideia de moçambicanidade começa a ser construída e é, de alguma forma, debatida por diversos setores sociais moçambicanos, inclusive o dos escritores (SILVA e SOUZA, 2015: 109-110). Segundo (MENEZES, 2012: 313), a identidade nacional moçambicana permanece um projeto em construção, em que as dimensões políticas e culturais ligadas à ideia de uma construção de moçambicanidade se sobrepõem a outros imaginários, suscitando reinterpretações sobre o passado e a partir delas novas relações sociais. Sob esse prisma, segundo a mesma autora, “a ideia subjacente é de que a literatura pode assumir uma função de coesão nacional, fruto da relação que se instaura entre o escritor e os seus leitores” (MENEZES, 2012: 313). Com a sobreposição do imaginário nação, as identidades e o passado tornam-se centrais nas obras literárias moçambicanas e estabelecem, ao mesmo tempo, um diálogo com as questões políticas, econômicas, sociais e culturais do presente. Dessa forma, imaginar a comunidade política moçambicana, além de um projeto em curso, se torna uma função essencial dos escritores.1

Entretanto, pensar a nação envolve relações de poder, sobretudo acerca de quais símbolos estruturarão essa comunidade. Segundo, (BALEIRA, 2001: 170), “quase sempre a construção da nação é em grande parte moldada por um determinado grupo que, em virtude dessa identidade de propósitos, constitui classe diferente das massas”.

Com isso, os escritores, inseridos no centro das relações de força e de poder sobre a imaginação da moçambicanidade, os escritores estão, em Moçambique, numa posição de poder fundamental na construção das imagens e representações sobre o passado, as quais influenciam na constituição da moçambicanidade no presente da escrita de cada uma das obras. Ao mesmo tempo, paradoxalmente, as questões políticas – sobretudo no que diz respeito ao nacional –

1 Segundo, Benedict Andersen, a nação “é uma comunidade política imaginada [...] porque mesmo os membros

da mais minúscula das nações jamais conhecerão, encontrarão ou sequer ouvirão falar da maioria dos seus companheiros, embora todos tenham em mente a imagem viva da comunhão entre eles”. In: ANDERSON, Benedict R. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008; Pág. 31.

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sociais e culturais do presente influenciam também na forma como os escritores olham para o passado, possibilitando-lhes, por conseguinte, a representações entrecruzadas de temporalidades. Assim, por meio da linguagem escrita, os escritores fabricam um imaginário e um discurso que estabelecem diálogos entre as questões políticas, sociais e culturais do passado e do presente da escrita de cada uma das obras.

O processo histórico sobre a construção da moçambicanidade ainda em curso é complexo, longo e envolve diversos fatores políticos, culturais, econômicos e sociais. Embora esse processo não seja objeto de estudo desta pesquisa, é importante sintetizar alguns elementos que o compõem. Ainda que o debate conduzido pela Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) acerca da moçambicanidade viesse ocorrendo antes mesmo da independência, foi a partir dela, isto é, a partir de 1975, que efetivamente o projeto político de Moçambique e o projeto político da FRELIMO, o qual dialogava com a esquerda socialista leninista-marxista, se afinaram, construindo a ideia de um passado único capaz de suscitar a unidade moçambicana “sem fractura e sem diferença, em nome da luta contra um inimigo comum – a colonização” (MENEZES, 2012: 318).

Todavia, é importante ressaltar, a colonização portuguesa, o inimigo que permitiu minimamente uma unidade entre os moçambicanos, foi responsável, dentro da sua política assimilacionista, por gerar um “expressivo grupo de agentes sociais, socializados em núcleos urbanos e com relativo acesso à escolaridade, criando condições para o desenvolvimento de uma elite que formulasse discursos e formas de representação em termos de nação” (MATSINHE, 2001: 184). Este discurso, segundo Matsinhe, se baseava “em argumentos de caráter modernista, contra as barreiras impostas às possibilidades de ascensão social, corolário das políticas assimilacionistas adotadas pelo colonialismo português” (MATSINHE, 2001: 184). Por conseguinte, segundo o mesmo autor, parafraseando Mondlane, nos é revelado que foi dessa minoria de assimilados que, posteriormente, se desenvolveu a ideia de “‘ação nacional’ em contraposição à local, e foi ela também que forneceu a maioria dos dirigentes da Frelimo e seus mais qualificados militantes e simpatizantes” (MATSINHE, 2001: 184).

Em outra direção, mas nesta mesma esteira da construção de uma unidade nacional, após a criação da FRELIMO em 1962, as mulheres foram reconhecidas como sujeitos históricos,

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adquirindo um importante protagonismo, sobretudo na guerra de independência. Entretanto, com a proposta de se construir uma nação sem diferença e sem fratura, segundo Isabel Casimiro, parafraseando REIS, o discurso hegemônico da FRELIMO produziu e legitimou, na luta contra o colonizador, a figura da Mulher-Povo, em que o que se sobressaía da sua identidade era a sua “relação de alteridade onde a consciência de pertença - eu sou Povo - é também a de uma diferença - o outro é o inimigo, o estrangeiro” (CASIMIRO, 2014: 188). Assim, “a sua representação social ficou [...] dependente das necessidades do movimento nacionalista” (CASIMIRO, 2014: 188), o que significava lutar contra o colonialismo e pela independência da nação moçambicana, silenciando, por conseguinte, pautas específicas femininas, como, por exemplo, as desigualdades de gênero, a violência doméstica etc. Nesta mesma esteira (CASIMIRO, 2014: 177-178), parafraseando Scott, explana que as dinâmicas “das lutas de género e de classe na transição para o socialismo, foram adiadas para o futuro”, por conta “da necessidade de defender o país, alcançar a paz e então construir a sociedade nova”. Contudo, houve “esforços para a criação de novas formas de participação democrática, e o estabelecimento dum novo sistema político, que prestasse maior atenção às questões de igualdade de oportunidades”. (CASIMIRO, 2014: 177-178). No entanto, de maneira geral, a luta de emancipação feminina se atrelava ao desenvolvimento da economia e da unidade nacional.

A tentativa da FRELIMO, contudo, de construir uma nação sem diferença e sem fratura no pós-independência não perdurou por muito tempo. Já em 1976, eclodiu uma guerra civil em Moçambique que perdurou até 1992. Em 1977, a anticomunista Resistência Nacional Moçambicana, a RENAMO, apoiada pelos governos de países vizinhos, como a Rodésia e a África do Sul, os quais estavam sob o regime do apartheid, foi criada e consagrada, posteriormente, como a maior organização opositora à FRELIMO, aprofundando ainda mais a crise e a instabilidade política moçambicana. Ainda que os efeitos e a configuração das relações sociais, culturais e políticas da colonização ainda estivessem presentes, estas “relações são deslocadas e reencenadas como lutas entre forças sociais nativas, como contradições internas e fontes e desestabilização no interior da sociedade descolonizada, ou entre ela e o sistema global como um todo”. (HALL, 2013: 62)

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Na literatura, a década de 1980 foi uma década significativa para Moçambique, sobretudo devido ao engajamento de um grupo específico de intelectuais e escritores. Nomes como Luís Carlos Patraquim, Marcelo Panguana, Helder Muteia, Eduardo White e o próprio Ungulani surgiram na década de 1980 e deram o tom das produções literárias dos anos posteriores, formando a denominada geração da Revista Charrua, revista importante dessa mesma década. Precursores da escrita em prosa em Moçambique e desatrelados das “diretrizes revolucionárias da poesia oficial” (SILVA e SOUZA, 2015: 114) que “objetivava, precisamente, compor-se de um corpo literário que se afinasse apropriadamente como poesia didática para cumprir com os objetivos da revolução a que a independência de Moçambique se tornara” (SILVA e SOUZA, 2015: 14) e ainda mais, construir a ideia de um “Homem Novo moçambicano” (SILVA e SOUZA, 2015: 14) que negava as diversas práticas étnico-culturais endógenas dos povos africanos, colocando-as no “obscurantismo” (SILVA e SOUZA, 2015: 14), esses escritores da década de 1980 criaram a “possibilidade de produzir uma crítica contundente ao centralismo e autoritarismo do Estado, e, sobretudo, a irreverência da escrita para além de paradigmas, doutrinas e diretrizes cerradas” (SILVA e SOUZA, 2015: 14). Houve, efetivamente, uma ruptura estética e política por parte desses escritores ao status quo. Também na década de 80, fora do círculo da Revista Charrua, Mia Couto, junto a Calane da Silva, Lilia Momplé e Albino Magaia, deram suas contribuições (SILVA e SOUZA, 2015: 14). Segundo Rejane Vecchia e Ubiratã Roberto, essa geração de escritores era iminentemente urbana e escolarizada e utilizava a língua portuguesa como a língua materna, como forma de denúncia e de subversão. Seu confronto não se fazia mais apenas contra o colonialismo etnocêntrico, mas também “contra um Estado centralista e autoritário demais para reconhecer as diversas pertenças que compõem o espaço sob sua gestão” (SILVA e SOUZA, 2015: 14).

As críticas dos escritores e da intelectualidade moçambicana sobre o autoritarismo do Estado na década de 1980, junto às mudanças na conjuntura internacional, semearam, de alguma maneira, novas perspectivas no seio do Estado na década de 1990. No fim da década de 1980 e início da de 1990, a FRELIMO acabou perdendo seus aliados socialistas, o que deu vasão para o enfraquecimento do seu projeto político socialista. No seu 5º congresso em 1989, a FRELIMO, então, decidiu se distanciar do seu projeto marxista-leninista e propôs uma

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reforma política que culminaria numa nova Constituição da República em 1990, prevendo um sistema político multipartidário.

Ao longo da década de 1990 até o ano de 2002, diversas organizações políticas da sociedade civil e instituições criadas no centro do próprio Estado investiram num aprofundamento do sistema democrático moçambicano, porém não conseguiram romper efetivamente com alguns dos pilares que permearam o Estado autoritário pós-independência, governado pela FRELIMO. A abertura ao diálogo, o reconhecimento da diversidade política e até mesmo cultural, assim como o reconhecimento da RENAMO como oposição política e ideológica pela FRELIMO, foram conquistas importantes nesse processo, embora não suficientes para distanciar a instabilidade do sistema democrático moçambicano e a ideia de uma unidade sem a diversidade ideológica e política.

Outro importante aspecto nesta mesma conjuntura, mais especificamente em 1993, foi a criação do Fórum Mulher, que se estruturou num novo discurso sobre igualdade de gênero, empoderamento, entre outras categorias que acabaram por desestabilizar a política homogeneizante do partido da Frelimo, uma vez que, resultado do processo de dominação patriarcal, a tensão entre os gêneros passa a permear a luta nesse novo cenário (SOARES, 2019: 36). Um elemento que bem representa essa mudança no discurso feminino está contida na frase a frase “Paz na terra, guerra em casa”, a qual sugere que, apesar de a guerra civil ter terminado no país com o acordo de paz assinado em Roma em outubro de 1992, havia uma outra, mais antiga, que continuava a flagelar as mulheres e as crianças – a violência doméstica. (CASIMIRO, 2014: 9)

Embora muitas mudanças de ordem política, cultural, econômica e social tenham ocorrido no país desde a década de 1990 até os dias atuais, a instabilidade ainda é um aspecto que permanece em Moçambique, sobretudo acerca da oposição entre o Partido da Frelimo e a RENAMO. No período que se seguiu às eleições gerais em 2014, eclodiu um conflito armado entre integrantes da RENAMO e as Forças de Segurança moçambicana. Contudo, ainda que tenha sido assinado um acordo de paz no mesmo ano em que eclodiram os conflitos, estes ainda se demonstram presentes, estando concentrados no centro do país. No mês de agosto de 2019,

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foi assinado um novo acordo de paz entre o governo de Moçambique e a RENAMO com a tentativa de pacificar o país.

Explanado isto, é necessário debater como os romances históricos, Ualalapi (1987) e As

mulheres do imperador (2018) , de Ungulani Ba Ka Khosa e, a trilogia As areias do imperador

(2016, 2017 e 2018 respectivamente), de Mia Couto, problematizam, de alguma forma, a moçambicanidade e o seu imaginário forjado pelo poder instituído em Moçambique desde 1975, baseada na ideia de uma unidade nacional sem fratura.As duas narrativas têm a mesma matriz histórica de inspiração: o fim do Império de Gaza sob o comando do imperador Ngunguniane, o último imperador desse império do sul que atualmente é considerado Moçambique. Elas também estabelecem uma relação estreita com o passado, propondo reinventá-lo, mas, ao mesmo tempo, dialogando com as questões do presente acerca da identidade e do imaginário moçambicano. Como esse passado, inevitavelmente, está contaminado pelo colonialismo português, essas narrativas acabam por problematizá-lo.

Na primeira história, em Ualalapi, Ngunguniane dá ao personagem Ualalapi a missão de matar Mafename, irmão mais velho de Ngunguniane, para se tornar, assim, o imperador de Gaza. A narrativa conta a história de Ngunguniane- Gungunhana (a segunda grafia produzida pelos portugueses) , desde a sua ascensão, em 1884, até sua queda, em 1895. O Império de Gaza foi fundado pelo povo nguni (vátuas ou aungunes, na terminologia colonial), um dos ramos dos

zulus. Denominado o “Leão de Gaza”, o reinado de Nguguniane estendeu-se de 1884-1895. Em

1895 ocorre um confronto direto entre portugueses e o Estado de Gaza. Neste confronto, Ngunguniane é capturado pelos portugueses e enviado posteriormente para Lisboa. Em As

mulheres do Imperador, Ungulani Ba Ka Khosa, traz como protagonistas as mulheres de

Ngunguniane, as quais, em 1896, em Lisboa, são separadas do imperador e enviadas para a ilha de São-Tomé, retornando a Moçambique após quinze anos de isolamento, em 1911. É a partir do exílio, então, que, narrada em terceira pessoa, As mulheres do imperador se inicia.

Em Mia Couto, a trilogia As areias do Imperador é narrada, alternadamente, pela jovem Imani e pelo sargento Germano de Melo. Em fins do século XIX, o degredado sargento português Germano de Melo foi enviado ao vilarejo de Nkokolani para instalar um quartel para a batalha contra o imperador Ngunguniane que ameaçava o domínio colonial português na atual

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Moçambique. Lá, ele encontra Imani, uma jovem de quinze anos pertencente ao povo Chope, um dos poucos povos que se aliou aos portugueses e resistiu à invasão dos ngunis (etnia do imperador Ngunguniane), que lhe servirá de intérprete. Enquanto um dos irmãos da menina, Mwanatu, que sofria de uma doença mental, lutava pela coroa portuguesa, o outro, Dubula, se uniu aos guerreiros ngunis para combater o colonizador português.

Bem, uma vez descrito um pequeno resumo de cada uma das histórias, deve-se, agora, indagar: de que forma, por meio de representações ficcionais deste passado específico, cada uma dessas narrativas problematiza a moçambicanidade e o seu imaginário no presente da escrita de cada uma das obras? Segundo Francisco Noa, a literatura moçambicana, “trata-se de uma literatura cuja especificidade decorre da sua profunda e estruturante interlocução com o meio de onde provém e onde as demonstrações de poder, sobretudo político, são notórias e envolventes” e “neste, caso específico, a narração funcionando tanto como mecanismo de denúncia quando não mesmo de confrontação” (NOA, 2017: 81).

Em Ualalapi, por exemplo, para além de uma “desmitificação das versões correntes da história de Ngungunhane (a colonial que é paternalista e a revolucionária pós-independência – implícita, não referida no texto – que lhe atribui um estatuto de herói”, como aponta (LEITE, 1995: 58), é possível identificar também a problematização da conjuntura política moçambicana. Ungulani, por meio de representações do passado, no caso aqui a guerra entre ngunis e muchopes, descreve como cada um desses povos liam ao outro. O chefe do exército dos chopes, Xipenyane, discursa aos seus soldados:

- Vamos lutar e morrer se for necessário, mas o nosso desprezo pelos Ngunis manter-se-á por séculos, por que esta terra é e será nossa. E se lutamos hoje é para que os nossos filhos não vejam as orelhas dilaceradas pelos Ngunis. O nosso “não” é para que as nossas mulheres não sejam escravas e os nossos filhos não engrossem as fileiras desse exército bárbaro [...] Preparem-se para a vitória, guerreiros, preparem-se para matar esses invasores ngunis. A razão está do nosso lado e os espíritos protegem-nos. (KHOSA, 2018: 75-76)

Já Maguiguane, chefe do exército dos ngunis, diz:

- Há pouco estava eu a dizer a Macanhangana que o leão ruge na selva. Com isso quis dizer que é chegada a altura, guerreiros, de entrarmos em ação. Durante dias

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não tivemos outro objetivo senão dar oportunidade aos machopes de virem até nós e entregarem as lanças, as zagaias e os escudos. Não o fizeram. E por uma razão muito simples: são animais. É isto que esquecemos, guerreiros. Um animal habituado à selva nunca conviverá com homens e muito menos seguirá as regras mais elementares da existência humana. E esta verdade não a inventei, disse-a o nosso rei Ngungunhane há muitos anos [...] Recusaram a nossa mão caridosa e preferiram andar a monte, incomodando-nos à noite com os seus uivos e estragando as nossas machambas. Houve alturas que chegamos a construir currais para esses animais Machopes, mas eles preferiram a selva, aos dias sem rumo. (KHOSA, 2018: 76-77)

Tanto muchopes, quanto ngunis, nos seus discursos sobre o outro, se pautam em conceitos e ideias ocidentais. Para além de vocábulos, “bárbaro” e “razão” representam toda uma história do pensamento ocidental e aparecem no discurso dos machopes para legitimarem a sua luta, assim como para desprezar o outro. Entre os ngunis, etnia na narrativa representada como a invasora e até mesmo colonizadora, se percebe um discurso que os aproxima do português, uma vez que é negada a humanidade aos machopes e os vocábulos “animais” e “selva” são utilizados para desmoralizar o outro. Em contrapartida, nos dois discursos há a estratégia d e se recorrer também à tradição para legitimar o discurso. Embora o tempo da narrativa seja o final do século XIX, marcando a guerra entre ngunis e muchopes, as falas de cada um dos chefes fazem com que esse passado dialogue com o presente da escrita da obra. Uma vez que Ungulani se utiliza da língua portuguesa e do recurso da escrita para a constituição da narrativa, ele denuncia as ideias ocidentais que permeiam a guerra civil moçambicana, como, as dualidades reducionistas do nós e eles, colonizador e colonizado, moçambicano e estrangeiro ou mesmo a da unidade nacional. Em todas estas dualidades há a premissa do outro que nos une, mas, ao mesmo tempo, que deve ser eliminado ou excluído. A guerra civil moçambicana entre FRELIMO e a RENAMO que se iniciou no pós-independência, em 1987, ano da publicação da obra Ualalapi, ainda perdurava, completando dez anos de idade. Ungulani, ao abordar a guerra do final século XIX entre ngunis e machopes, escancarando a violência que os primeiros imprimiram sobre os segundos, mas, ao mesmo tempo, desvelando os desdobramentos trágicos à humanidade causados por ela, questiona, em dose dupla, tanto a violência da guerra civil, como a representação heroica do povo nguni, mitificada na figura de Ngungunhane.

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Já em Mulheres do imperador, trinta e um anos depois de Ualalapi, vemos outra problematizações sendo levantadas pelo Ungulani. No exílio são-tomense, o narrador começa descrevendo Phatina, uma das mulheres do imperador, como alguém de personalidade fria, silenciosa, que mesmo possuindo atributos físicos que despertavam o interesse sexual nos homens, ela mantinha-se inalterável, beirando a desumanidade, nas investidas masculinas. Segundo o narrador, o único atributo ou ato que a humanizava era o seu “jeito singular na cozinha”. Era por meio disso que “as pessoas afeiçoavam-se a ela pelo sabor que emprestava aos pratos confeccionados à base da grande generosidade da terra são-tomense, com verduras e frutas e tubérculos, como a matabala que ela preparava acompanhada de molhos de diversas verduras. (KHOSA, 2018: 155)

Contudo, o mesmo traço que era responsável pela humanização de Phatina era o traço responsável pela quebra de um tabu secular do povo nguni, isto é, o povo ao qual ela pertencia: o consumo de peixe. A ingestão de peixe para os nguni e, sobretudo para a os pertencentes à família imperial, era proibido. Entretanto, Phatina, com os seus singulares dotes culinários, foi a primeira, dentre todas as sete mulheres do imperador, a pôr fim no interdito, “dizendo às outras do exílio que de nada lhes servia manterem-se fiéis ao dogma de não consumirem o que do rio e do mar vinha, pois encontravam-se rodeadas de água e viviam por entre centenas de regatos que desciam das impenetráveis alturas dos montes de São Tomé” Dessa forma, segundo ela, “ ‘Não temos outra salvação senão convivermos com o mar, aplacando as suas fúrias e amaciando-o quando o sossego das ondas nos convida para as suas entranhas’”(KHOSA, 2018: 155).

É essencial analisarmos por via de duas linhas interpretativas – uma mais literal e a uma outra mais metafórica – as justificativas de Phatina para a quebra do tabu nguni. Comecemos pela literal. Visto que no exílio geograficamente as mulheres do imperador se encontravam rodeadas pelo mar, isto é, numa ilha, a qual interiormente também possuía regatos, era justificável, para a sua própria sobrevivência, a quebra o interdito. As diferentes características geográficas da ilha, comparadas ao antigo terreno da capital do império de Gaza, condicionavam e redimiam as mulheres pela quebra do interdito. Com esse argumento, Phatina desnaturalizava o interdito do peixe transpondo-o para uma dimensão um pouco mais cultural, uma vez que implicitamente insere na sua justificativa a ideia de que a constituição de hábitos

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e costumes são também condicionadas pelo próprio meio em que estão inseridas. Com outras palavras, os hábitos e costumes são produtos da relação do ser humano com o espaço, considerando que as características deste condicionam a ação humana.

Há uma outra representação, porém, que se revela de forma mais metafórica, em que o mar é nada mais que a representação do português, isto é, do colonizador. Dessa forma, Phatina propõe que a única salvação delas diante do contexto do exílio e do colonialismo português era a aceitação, ou melhor, o reconhecimento da convivência com o colonizador, ao mesmo tempo em que se estabelece com ele uma relação mais serena na busca de abrandar as suas fúrias, amaciando-o pelas suas próprias entranhas.

Embora Phatina tivesse sido a responsável pela transgressão do interdito, a quebra não se resumiu apenas a ela. Lhésipe e Malhalha, ainda que convictas defensoras dos hábitos imperiais ngunis, e que se mostravam relutantes em se fazerem do mar e experimentar seus frutos, depois de três meses, duas semanas e quatro dias, sucumbiram aos encantos culinários de Phatina:

E o prato detonador, o pecado original, o desvio cultural, teve origem no calulu e no jeito que Phatina teve em juntar os ingredientes e anunciá-los, com gosto, começando como era práxis, pelos que entravam no pilão, como as folhas de maquequê, do libó, de água, do olho de grão, da gimboa, da folha de galo, de micocó, de otaji, de mambleblé, de pega-rato, de ocá, de agrião e coentros, e depois, já na panela grande, entravam a maquequê, a berinjela, o pau-pimenta, o quiabo, o tomate, a cebola, a malagueta, o peixe fumado, o búzio do mar fumado, o andala, o fulu-fulu, e mais o peixe pombo e o peixe-voador. Misturado os ingredientes, ela deixava a panela em lume brando durante a noite. E os odores evolavam, pairavam na quietude equatorial, entrando pelas narinas inquietas de Lhésipe e Malhalha. (KHOSA, 2018: 156).

As três adjetivações dadas ao prato de Phatina (detonador, pecado original e desvio cultural) precisam ser investigadas, a princípio, de maneira isolada e, posteriormente, de forma relacional.Ao se emprestar de um elemento central da cultura cristã europeia para adjetivar o prato de Phatina – pecado original – o narrador estabelece um cruzamento de Phatina com Eva – personagem simbólica da história judaico-cristã – que instigada pela serpente e pelo seu próprio desejo de saber, foi responsável pelo desligamento dos seres humanos e dos que dela ascenderiam do paraíso e de Deus, causando a origem da imperfeição, do sofrimento e da

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existência do mal entre os seres humanos. Além disso, assim como Eva induziu Adão, seu companheiro, a comer o fruto que havia sido proibido por Deus, Phatina induz Malhalha e Lhésipe (as outras duas mulheres do imperador em exílio) a experimentarem e consumirem o alimento proibido pelos costumes ngunis. Logo, Phatina, persuadida pelo colonizador (serpente), seria o sujeito propulsor do desligamento do seu povo dos seus hábitos e costumes ngunis, começando por Malhalha e Lhésipe. Acerca da adjetivação desvio cultural, ao invés de ser um elemento responsável pelo desligamento ou rompimento com o seu povo e os seus costumes, o prato pode ser lido como um produto recheado de hibridismo, em que os aspectos da cultura nguni não desaparecem, mas se entrecruzam com elementos de outras culturas, constituindo algo novo. O exemplo do hibridismo é a própria forma como Phatina reuniu os ingredientes e os confeccionou. A sua práxis era responsável por emprestar sabores ngunis ao prato são-tomense. Já a adjetivação “detonador” tem um caráter de potência, daquilo que será responsável pela detonação de explosivos, o que dialoga com uma proposta mais subversiva e combativa de Phatina. Esta, apropriando-se e transformando a cultura são-tomense que está completamente contaminada pela cultura do colonizador por meio do empréstimo da sua criatividade, se constitui enquanto sujeito da sua própria história, mas que, ao mesmo tempo, reconhece que é condicionada por ela.

De forma geral, Phatina enxerga, por meio do seu prato detonador, a possibilidade de transformar, de implodir o colonizador pelas suas próprias entranhas, contraditoriamente, por meio de uma relação serena com o colonizador. Ao mesmo tempo, Phatina se reinventa, transgredindo hábitos passados, mas suscitando hábitos, híbridos, que lhe permitem resistir e buscar alternativas dentro dessa nova configuração espacial, social, política, cultural e econômica impressa pelo colonialismo.

Ao adentrar na análise da narrativa, é necessário iniciarmos o debate refletindo sobre o processo de escolha do nome da personagem dentro da própria narrativa. Segundo a narradora, em Nkokolani, terra da personagem, “o nome do recém-nascido vem de um sussurro que se escuta antes de nascer. Na barriga da mãe, não se tece apenas um outro corpo. Fabrica-se a alma,” que é produzida “a partir das vozes dos que já morreram”. Assim, “um desses antepassados pede ao novo ser que adote o seu nome. No caso de Imani, num primeiro momento foi-lhe “soprado o nome de Layeluane” o no da avó paterna dela.(COUTO, 2015: 17)

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Como manda a tradição dos VaChopi, o pai de Imani foi auscultar um adivinho. A legitimidade do “batismo” não foi confirmada, fazendo com que Katini procurasse um outro adivinho, o qual lhe garantiu que estava tudo certo com o nomedado. Porém, diante de algumas suspeitas de que o nome não lhe cabia, Katini resolver consultar uma adivinha da família, a Rosi, tia de Imani, a qual lhe assegurou: “´No caso desta menina, não é o nome que está errado;

a vida dela que precisa ser acertada´”(COUTO, 2015: 16). Com a sentença da tia Rosi, Katini desistiu das suas incumbências e delegou a mãe de Imani, Chikaza, que lhe atribuísse um nome. Num primeiro momento, Chikazi a nomeou de “Cinza”. Depois da morte das irmãs de Imani numa enchente, ela passou a ser chamada de “a Viva”, uma vez que apenas ela havia sobrevivido à tragédia. Segundo Imani, aquilo “não era um nome. Era um modo de não dizer que as outras filhas estavam mortas” (COUTO, 2015: 16).

Contudo, o pai de Imani, Katini, devido ao obscurantismo do nome resolveu se impor. “Eu teria por nome um nome nenhum: Imani”. Assim, a “ordem do mundo, por fim, se tinha restabelecido”, pois, “atribuir um nome é um ato de poder, a primeira e mais definitiva ocupação de um território alheio”. Logo, “meu pai, que tanto reclamava contra o império dos outros, reassumiu o estatuto de um pequeno imperador” (COUTO, 2015: 16-17).

É possível notar o primeiro indício dado pela personagem sobre uma possível estrutura patriarcal no corpo social em que está inserida, uma vez que o pai, Katini, retoma o seu o poder atribuindo-lhe um nome, que é um ato de poder. Contudo, segundo a narradora, o nome que lhe foi atribuído, na verdade, era um nome nenhum, pois na língua materna dela “´Imani´ quer dizer ´quem é?´”(COUTO, 2015: 15). Ainda mais, imersa numa crise existencial, Imani diz:

[...] não nasci para ser pessoa. Sou uma raça, sou uma tribo, sou um sexo, sou tudo que me impede de ser eu mesma. Sou negra, sou dos VaChopi, uma pequena tribo do litoral de Moçambique. A minha gente teve a ousadia de se opor à invasão dos VaNguni, esses guerreiros que vieram do sul e se instalaram como se fossem donos do universo. Diz-se em Nkokolani que o mundo é tão grande que nele não cabe dono nenhum. (COUTO, 2015: 17)

A indagação quem é? no nome da personagem acaba sendo enraizada pelo próprio subjetivo da personagem quando ela se pergunta: “quem sou?”. Segundo a própria narradora, todo o coletivo, isto é, o contexto externo a ela – o político, econômico, étnico, social, cultural, racial,

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enfim – não a permitem ser uma pessoa. A crise identitária da narradora, que perpassa o significado do seu próprio nome, haja vista o ponto de interrogação como parte constituinte dele, se relaciona a uma possível crise gerada pelo colonialismo português e pelas relações conflituosas entre os portugueses e os VaNguni na disputa das terras do povo VaChopi e que estão representadas na narrativa. Dessa forma, é importante frisar que a indagação feita pela personagem é uma representação de como o colonialismo português e todos os seus desdobramentos desencadearam no povo VaChopi uma crise acerca da verdade que até então era sustentada pelas relações de poder e pelos discursos que a produziam. Ao mesmo tempo, a problemática identitária “quem é?” pode ser vista tanto na dimensão do passado quanto na do presente, uma vez que a inserção dos vocábulos “raça” e “negra” para refletir sobre sua própria identidade, acaba sendo uma representação de uma crise do presente da escrita da obra. A negação europeia à condição humana do africano pela categorização e fabricação da ideia de raça inferior se transmuta numa ideia em que a África, no processo de se descolonizar, precisa descontruir.

Ungulani, ao escolher um passado elencado pela FRELIMO como elementar para a constituição da moçambicanidade na década de 1980, mais especificamente a partir de 1983, opta em confrontar a narrativa instituída pelo poder, construindo um outro imaginário moçambicano que reconheça a sua natureza diversa, a sua complexidade e as suas próprias contradições, negando a unilateralidade da unidade nacional encabeçada pela FRELIMO. Ungulani constrói uma narrativa que denuncia o discurso da ordem dominante subvertendo-o. Ao não criar binômios simplistas que fabricam o outro, o inimigo, para a constituição da unidade nacional, Ungulani toca em questões cruciais no presente da sua escrita: guerra civil e os seus desdobramentos trágicos; contradições políticas, sociais e culturais internas; o autoritarismo estatal; narrativas, baseadas em pilares ideológicos ocidentais, que fabricaram heróis e inimigos estereotipados, enfim. Ao mesmo, ele fabrica representações do passado, constituindo um outro imaginário capaz de produzir, por meio da denúncia e do confronto, novas relações de poder, sobretudo no que diz respeito às representações. Em Ungulani, a representação da identidade, mais especificamente da moçambicanidade, é um “devir que se alimenta simultaneamente de diferenças entre Negros, tanto do ponto de vista étnico, geográfico, como linguístico, e de tradições herdeiras do encontro com Todo o Mundo”

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(MEMBE, 2017: 167). Essa característica do devir expõe a ideia de uma identidade em movimento que vai se reinventando na diferença, a qual é “construída num triplo processo de entrelaçamento, de mobilidade e circulação” (MEMBE, 2017: 167).

As personagens Imani e Phatina, desafiam também os discursos do poder instituído que criaram narrativas achatadas e engessadas em dualidades ou oposições reducionistas, como colonizador e colonizado, herói e vilão, inimigo e aliado, tradicional e moderno, enfim. Imani, por meio das suas indagações, problematiza as representações do passado, assim como indaga a moçambicanidade do presente da escrita. Imani, ou a família dela, é pertence à etnia que se aliou aos portugueses contra império de Gaza. Assimilada, Imani é a representação da identidade que Noa explana, se é um ao mesmo tempo em que se é o outro. Ainda com o mesmo autor, Imani tem a sua subjetividade o tempo todo entrechocada com o coletivo. O colonialismo, a noção de raça, o patriarcalismo do colonizador português e do próprio corpo social da etnia dos Vachopi, enfim, são aspectos coletivos que se entrechocam com o ser pessoa, ser um indivíduo. Assim, de que forma a representação de Imani se insere na moçambicanidade do presente da escrita da obra? Ela é a representação do confronto à narrativa do poder que se constitui na ideia de unidade. Já Phatina, com o seu prato detonador, com a sua prática culinária negocia com o colonizador português, com a cultura são-tomense e com a tradição da etnia dos ngunis. Ela é híbrida como Imani, mas diferente desta, ela representa uma figura, de alguma forma, vinculada ao Ngunguniane.

As narrativas ficcionais de Ba Ka Khosa e Mia Couto, como destaca Noa, funcionam como mecanismo de denúncia e de confrontação. Narrar estas histórias – pensando nelas como discursos que se constituem em representações – é fazer emergir modos de existência que confrontam e denunciam a moçambicanidade e o imaginário unilateral fabricado e reivindicado pelos poderes instituídos no pós-independência de Moçambique. Ademais, por meio destes personagens, Mia Couto e Ungulani trazem à tona temáticas que foram silenciadas ou apagadas no forjamento da moçambicanidade e do seu imaginário, como, por exemplo, a identidade de gênero, a contaminação do pensamento ocidental na constituição da unidade nacional moçambicana, o autoritarismo estatal, dualidades reducionistas, os impactos trágicos da guerra civil moçambicana, as rivalidades étnicas, reinventando, ao mesmo temo, as representações e o imaginário sobre o passado do Império de Gaza. Para além disso, os dois escritores trazem

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personagens híbridos que complexificam a moçambicanidade no presente da escrita de cada uma das obras.

Em suma, é possível afirmar que os dois escritores, por meio das personagens analisadas e das relações de poder estabelecidas no interior das narrativas, constroem um discurso literário que problematiza, denuncia e confronta o discurso da ordem dominante, propondo uma nova forma de olhar para si, para o outro e para relação que se estabelece entre eles, com narrativas que não fogem da complexidade do que é construir imaginários que representem identidades. Para além de uma leitura ou ressignificação do passado, os dois autores pensam no presente, deslocando o passado na tentativa de vislumbrar um outro futuro. Um futuro descolonizado, inventivo e potencializador, uma vez que alarga a perspectiva de representação da moçambicanidade.

REFERÊNCIAS

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HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. – Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013.

KHOSA, Ungulani Ba Ka. Gungunhana; Ualalapi; As mulheres do imperador. São Paulo: Kapulana, 2018

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