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Design de Capa/Contracapa e Diagramação: Rodrigo Zafra Fotos da capa Terra em Transe (reprodução) Cidade de Deus (César Charlone)

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Obra produzida originalmente como Trabalho de Conclusão de Curso para habilitação em jornalismo no Centro de Ciências da Comunicação e Artes da Universidade Católica de Santos (UniSantos), sob orientação do professor Eduardo Rubi Cavalcanti, em 2005.

Todos os direitos reservados. A reprodução, total ou parcial, desta obra só poderá ser feita mediante autorização expressa do autor.

Design de Capa/Contracapa e Diagramação: Rodrigo Zafra Fotos da capa –

Terra em Transe (reprodução) Cidade de Deus (César Charlone)

ZAFRA, Rodrigo (1984-). A Temática Social no Cinema Brasileiro – Do Cinema Novo a Cidade de Deus. Santos(SP): 2010 [76 p.]

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Dedico este trabalho a todos aqueles que amam o cinema brasileiro e que lutam para que ele preserve sua identidade e cada vez mais tenha reconhecimento em todo o mundo

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Somente uma cultura da fome, minando suas próprias estruturas, pode superar-se qualitativamente: e amais nobre manifestação cultural da fome é a violência. Glauber Rocha, em seu texto-manifesto A Estética da Fome

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SUMÁRIO

Introdução 06

Capítulo 1 – Cinema Novo 13

1.1 Gênese de um movimento 15

1.2 Desenvolvimento de um novo cinema 16

1.3 Cinema de autor 20

1.4 Linha do tempo do Cinema Novo 21

1.5 Estética da fome 34

Capítulo 2 – Cinema da Retomada 38

2.1 O início e o fim 40 2.2 Os filmes e os temas 42 2.3 Sertão e favela 44 2.4 Choque de classes 51 2.5 Política 56 2.6 Cidade de Deus 59 2.7 Cosmética da fome 62 Conclusão 65 Referências Bibliográficas 72 Filmes analisados 74

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INTRODUÇÃO

O cinema brasileiro passou por várias fases desde seu surgimento, no início do século 20, passando pela era dos grandes estúdios (Cinédia, Atlântida e Vera Cruz), pelo Cinema Novo na década de 60 e pelo Cinema Marginal das décadas de 70 e 80, até chegar à Retomada, mais especificamente em 1995. Dentre as fases que aproximaram o público e a crítica, estão as do Cinema Novo e da Retomada, com seus erros e acertos, mas pensando o Brasil como um todo.

A primeira, que tem raízes sólidas nos anos 60, apresentava um cinema preocupado com as mazelas sociais e um apurado senso estético calcado na realidade brasileira. Porém, antes de qualquer definição que mostrasse a verdadeira intenção do Cinema Novo, o objetivo inicial era derrubar a chanchada1, o que foi conseguido facilmente, uma

vez que os cineastas tinham aceitação junto à crítica. Assim, filmes de vários tipos foram classificados como cinemanovistas e assumiram o objetivo da etapa seguinte: “combater o cinema dramático evasivo, comercial e acadêmico” (ROCHA, 2003, p. 131).

Outra luta enfrentada era pela liberdade de expressão, pois em 1964 o Brasil passava pela transição de governos – do civil para o militar –, e em 1968, com o endurecimento do regime, o cinema tal como era feito pelos cinemanovistas foi

1“Gênero de filmes – a comédia popularesca, vulgar e frequentemente musical – que

desolou mais de uma geração de críticos”. Com essas palavras, o crítico de cinema Paulo Emílio Sales Gomes define a chanchada que se inicia em 1947 e prossegue por 15 anos, com destaque para artistas como Oscarito, Grande Otelo e Derci Gonçalves, dentre outros.

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extinto por completo. Enquanto durou, o Cinema Novo foi conduzido pelo forte engajamento político dos cineastas, tais como Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Ruy Guerra e Paulo César Saraceni, que proporcionavam um cinema mais crítico (e criticado), mas que não se calava diante das injustiças sociais.

A segunda fase é marcada por um novo ciclo, em meados da década de 90. O momento também sinalizava uma nova etapa, tanto política quanto cultural (em se tratando de cinema). Após o esgotamento do modelo de produção da Embrafilme e, posteriormente, a extinção do órgão pelo então presidente Fernando Collor, o cinema nacional se manteve de forma precária. Com a re-estruturação política do País e os novos modelos de produção, estava aberto o caminho para a Retomada. A identidade nacional era revalorizada e o diálogo com o Cinema Novo, evidente. “O cinema continua querendo desenhar a cara do país e, se agora o faz de maneira fragmentada, o processo nem por isso é menos intenso” (ORICCHIO, 2003, p. 232). Apesar de alguns filmes seguirem essa linha, outros procuraram diversificar o olhar e buscaram temas como a representação da história nacional, a relação do Brasil com o estrangeiro, a política, os conflitos de classe e os relacionamentos amorosos e familiares.

Estética da Fome x Cosmética da Fome

Em 1965, Glauber Rocha lança o texto-manifesto A Estética da Fome para se referir ao cinema que estava sendo feito por ele e outros cinemanovistas em meados da década de 60. O texto trazia as bases estéticas e políticas do Cinema Novo, e criticava “a tríade ética/estética/política correspondente às questões daquele momento” (REZENDE JR., 2004), para que o cinema sobre miséria e pobreza não

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caísse no folclore, no exotismo, no didatismo ou no paternalismo, sendo esse último muito comum na relação entre a Europa e o Terceiro Mundo. Para Glauber Rocha (2004, p. 67), “o Cinema novo é um projeto que se realiza na política da fome, e sofre, por isto mesmo, todas as fraquezas consequentes de sua existência”.

A pesquisadora Ivana Bentes define o sertão, um dos principais pontos temáticos do movimento, como:

contraponto à civilização tropical e paradisíaca do litoral. O sertão como metáfora do intolerável e da transformação iminente, onde à violência social se superpõe a violência geológica e onde a ideia de rebeldia e de revolta, de intolerável, é trabalhada em todos os níveis: personagens explodidos e destituídos, sem nada a perder, a terra barbaramente estéril e desregulada, capaz de sofrer mutações radicais, pronta para passar da "extrema aridez à exuberância extrema", para tornar-se mar, terra utópica e mítica. (BENTES, 2001)

Para o cinema da Retomada, esta observação redefine a expressão de Glauber Rocha como “cosmética da fome” para os filmes atuais. O sertão e a favela são romantizados no cinema da Retomada e estão inseridos em outro contexto.

A partir de agora, a favela é assumidamente um espaço à parte da cidade, com seus próprios códigos e leis. Tanto documentários quanto filmes de ficção procuram mostrar a ausência do Estado nesses lugares, assim como a existência de uma realidade peculiar, impensável para um morador do asfalto afeito às manchetes de jornal. (REZENDE JR., 2004)

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dominante capaz de reunir um grupo em torno de um objetivo. Os cineastas que se lançaram no mercado a partir da década de 1990 têm formação distinta, cada qual determinado a realizar o cinema que lhe convém. Além disso, muitos deles passaram anteriormente pela televisão e/ou publicidade, o que torna as narrativas e as técnicas utilizadas em seus filmes algo moderno para o público. Mesmo assim, o sertão e a favela não deixaram de ser revisitados por esses realizadores do cinema nacional. Pelo contrário, buscou-se reformular esses espaços com novas abordagens, mas não deixando por completo a crítica social.

Sertão e Favela, marcos referenciais

O Centro Popular de Cultura da UNE produziu Cinco Vezes Favela (1962), um filme referencial do Cinema Novo, que era composto por cinco curtas-metragens dirigidos pelos então jovens cineastas Carlos Diegues, Joaquim Pedro de Andrade, Leon Hirzman, Marcos Farias e Miguel Borges. Com a repressão política que se fez presente a partir de 1964, ano em que se instaurou a ditadura no país, a miséria próxima da favela deu lugar à distante do sertão. Assim, surge Deus e o Diabo na Terra do Sol, obra de Glauber Rocha que tem como base o imaginário popular dentro da história contada a partir de uma estrutura narrativa linear e cronológica.

Em 2001, surgiu Abril Despedaçado, filme de Walter Salles, que tem o sertão nordestino como pano de fundo para uma história alinhavada entre referências históricas e metáforas do mundo moderno. O filme é adaptado do livro homônimo do albanês Ismail Kadaré, cujo tema é a tradição da luta de famílias na Albânia. Transposto para o Nordeste, o enredo dialoga intensamente com as tradições do Cinema Novo. Um ano depois, Cidade de Deus, marco referencial da Retomada,

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entrou em cartaz nos cinemas. Excetuando-se a visibilidade internacional e os inúmeros prêmios, a polêmica gerada em torno da violência apresentada e das técnicas narrativas utilizadas para contar a história fez o cinema nacional saltar para um patamar artístico mais elevado.

Interlocução

O diálogo Cinema Novo/Retomada é, por vezes, ausente, quando as produções cinematográficas do período mais recente evitam temas complexos e não procuram levar o espectador à reflexão, proporcionando apenas entretenimento. Porém, quando o fazem, não têm a “mesma ambição de originalidade absoluta que caracterizou uma geração passada” (ORICCHIO, 2003, p. 233), no caso, a de 1960. Contudo, é preciso interpretar a história do País (política, social e cultural), para estabelecer paralelos em relação à produção cinematográfica cinemanovista e da Retomada.

O Cinema Novo já nasceu com a preocupação de pensar o Brasil, utilizando como temas o sertão e a favela. Esses temas passaram a representar o País e se tornaram fontes primárias para a construção de roteiros baseados na questão social. Em contrapartida, o Cinema da Retomada se estruturou a partir do novo modelo de financiamento das produções. Em relação ao surgimento das duas fases, pode-se ressaltar que a bagagem cultural dos cinemanovistas provinha de outras expressões do cinema mundial, principalmente o europeu, como o neo-realismo italiano e a nouvelle vague francesa. Os cineastas da Retomada, ao todo 114 diretores estreantes nesse período, apresentavam formações intelectuais distintas e desalinhadas entre si, mas nem por isso eram menos preocupados com a realidade nacional. Esse segundo período, “estilisticamente, dialoga com as tendências do seu tempo, ou

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seja, com linguagens cinematográficas importadas – Tarantino, Scorsese, Coppola, Iñarritu, entre outros, mas também com as linguagens de televisão, do clipe e da publicidade” (ORICCHIO, 2003, p. 233).

Dessa forma, as diferenças estéticas entre o Cinema Novo e o da Retomada são facilmente compreendidas. As técnicas cinematográficas evoluíram, as linhas narrativas foram aperfeiçoadas, o público agiu como fator determinante para o sucesso do produto audiovisual e as produções se tornaram cada vez mais moldadas ao interesse das grandes empresas da área. Mesmo assim, existem as similaridades, inseridas no contexto das ações dos filmes, que nos remetem a questões abordadas há 43 anos.

O filme Abril Despedaçado interage não apenas com o Cinema Novo – e no caso, mais especificamente com Deus e o Diabo na Terra do Sol –, mas apresenta particularidades que o público em geral desconhece, como no caso da metáfora da bolandeira. “Visto de cima, o engenho lembra um relógio. Seu movimento circular e constante, de ritmo ditado pelos bois, representa o próprio ciclo a que os Breves estão atrelados” (BUTCHER, 2002, p. 89). Esta cena é uma clara referência ao filme Limite (1930), de Mário Peixoto, cujo enredo trata da relação humana com o tempo.

No caso dos filmes relacionados à miséria urbana, pode-se dizer que Cinco Vezes Favela, do Cinema Novo, e Cidade de Deus, da Retomada, têm em comum a experimentação, mas sob diferentes óticas e recursos. A época do Cinema Novo se inicia com os documentários e, depois, instaura as obras ficcionais. Mesmo com a baixa qualidade técnica, os recursos escassos e “apesar dos seus defeitos, é um marco” (ROCHA, 2003, p. 139). É o ponto de partida para a “estética da fome”, ao mesmo tempo documental e ficcional. Já Cidade de Deus contou com uma produção de grande porte, mas o seu diretor, Fernando Meirelles, optou por utilizar atores da própria favela

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onde filmou. Com isso, abriu espaço para uma dramaturgia sem estereótipos, uma narrativa não convencional (essa foi a primeira adaptação literária feita pelo roteirista Bráulio Mantovani) e uma direção que experimentava um novo gênero (o diretor, de origem publicitária, havia realizado Menino Maluquinho 2 e Domésticas – O Filme, antes de filmar o drama).

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CAPÍTULO 1

CINEMA NOVO

Para chegar a ser novo – o kynema precisa romper com as estruturas da kyneztyka dominante.

Glauber Rocha

Movimento iniciado na década de 60, o Cinema Novo se destaca por ter representado a consolidação do realismo nas telas, em filmes que priorizavam o conteúdo, o argumento cinematográfico e o enfoque de temas até certo ponto nacionalistas. Tudo isso com o intuito, primeiramente, de derrubar a chanchada (o cinema comercial propriamente dito) e, logo em seguida, enquadrar – num rol restrito – os filmes e autores que se preocupassem em seguir o movimento.

O neo-realismo italiano e a nouvelle vague francesa influenciaram decisivamente o cinema desse período, uma vez que os principais articuladores do Cinema Novo se encontravam não só no Brasil, mas também pela Europa, como mostra a historiadora Ivana Bentes:

Glauber entre a Bahia e o Rio; Paulo César Saraceni na Itália; Gustavo Dahl entre Roma e Paris; Joaquim Pedro de Andrade pela Europa. No Rio, Nelson Pereira dos Santos, Cacá Diegues, David Neves, Luís Carlos Barreto, Leon Hirszman, Walter Lima Jr., Zelito Viana, Ruy Guerra. (BENTES, 1997, p. 24)

Dessa forma, um novo cinema se estabelece, recebendo influências e influenciando, ao mesmo tempo. As

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correspondências entre os diretores são fundamentais na concepção do movimento que libertou a filmografia nacional de uma sequência interminável de produções humorísticas, muitas vezes sem personalidade.

Assim, “o Cinema Novo tem muito da guerrilha: poucas pessoas em pontos cruciais, revezando-se nas funções (produção, direção, articulação teórica, agitação política) e formando uma rede que potencializa esforços isolados” (BENTES, 1997, p. 24). No caso, a guerrilha de uma revolução cultural que, bravamente, Glauber e seus interlocutores se dispuseram a levar adiante e que se equiparava, em paralelo, à Revolução Cubana (1958-59).

As bases da revolução cinemanovista, mesmo antes de definido tal nome, começaram a ser discutidas anos antes das primeiras exibições dos filmes pertencentes ao movimento. Em 1957 e 58, os jovens cineastas cariocas que impulsionaram o Cinema Novo se reuniam em bares de Copacabana e do Catete para discutir os problemas do cinema brasileiro. Os filmes de então eram feitos pela Vera Cruz, mas já havia incursões daqueles que anos depois mudariam o cinema nacional. “Havia uma revolução no teatro, o concretismo agitava a literatura e as artes plásticas, em arquitetura a cidade Brasília evidenciava que a inteligência do país não encalhara” (ROCHA, 2004, p. 50).

Filmes experimentais – Caminhos (1957) e Arraial do Cabo (1959), de Paulo César Saraceni; Pátio (1959), de Glauber Rocha; e Couro de Gato (1960), de Joaquim Pedro de Andrade (episódio que em 1962 viria a fazer parte do filme Cinco Vezes Favela) – rompiam com a estética dominante e preparavam os críticos para novas experiências. Glauber chegou a colocar o Cinema Novo como processo herdeiro da Semana de Arte Moderna de 22, da revolta tenentista no Forte de Copacabana e da fundação do Partido Comunista Brasileiro. “Originado no juscelinismo, janismo, janguismo, o cinema novo tomou o poder

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em 1964, ano de Castelo Branco, de Vidas secas, Deus e o diabo na terra do sol, Os fuzis, Ganga Zumba” (ROCHA, 2004, p. 517).

Assim o diretor baiano explicava, resumidamente, o momento político, econômico e cultural do Brasil – uma época marcada pelo desenvolvimentismo e pela instabilidade política: “O cinema novo converteu-se na síntese das contradições entre a burguesia que caiu em 1964 e o militarismo que subiu, porque representava a terceira força: imagens e sons do povo” (ROCHA, 2004, p. 516).

1.1 Gênese de um movimento

Dentro da concepção teórica do Cinema Novo, há uma tendência que se faz onipresente: a estética da fome. Os primeiros filmes dessa fase já se alinhavam de maneira a revelar o Brasil sem conceitos prévios, sem glamour, sem rostos bonitos e histórias agradáveis, ou qualquer tipo de marketing para vender o filme. O Brasil das favelas, do sertão, das grandes contradições sociais e dos menos favorecidos era levado às telas com a preocupação de causar impacto nas classes dominantes e mostrar o povo ao povo.

A crítica, entretanto, teve papel fundamental na consolidação do movimento, formando uma “corrente-viva” (ROCHA, 2003, p. 130). Vários dos cineastas também escreviam para as colunas e suplementos literários dos jornais. Daí em diante, os filmes cinemanovistas ganharam cada vez mais prestígio, mas era preciso conceituar o movimento. Ao mesmo tempo em que havia aceitação irrestrita, “a crítica, sem visão histórica, ignorante dos verdadeiros problemas, começou a exigir uma escola definida que justificasse cinema novo” (ROCHA, 2003, p. 130).

Foi assim que a chanchada passou a ser o alvo a combater, não pelo espaço na cinematografia nacional, ou por

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conflitos entre os grupos (o cinemanovista Roberto Farias veio da chanchada e realizou O Assalto ao Trem Pagador), mas porque os criadores do Cinema Novo entendiam que aquele era o momento de trazer algo diferente aos cinemas brasileiros, de romper com a estrutura vigente e desenvolver avanços que alguns dos marcos da história da sétima arte nacional iniciaram. É o caso de O Grande Momento, de Roberto Santos, em 1957, e de Rio, 40 Graus e Rio, Zona Norte, em 1955 e 57, respectivamente, de Nelson Pereira dos Santos, ambos marcados pelo neo-realismo, e que romperam com a tradição cinematográfica do momento e serviram de referência para o Cinema Novo.

Posteriormente, com a preocupação de excluir os filmes que se intitulavam cinemanovistas apenas por não serem chanchadas, era preciso apresentar, mais do que nunca, as verdadeiras bases do pensamento do grupo. Glauber Rocha explica essa questão, dissipando dúvidas quanto às influências e destacando personalidades que influenciaram sua geração:

Gustavo (Dahl) definiu nosso pensamento. Nós não queremos Eisenstein, Rossellini, Bergman, Fellini, John Ford, ninguém. Nosso cinema é novo não por causa da nossa idade. O nosso cinema é novo como pode ser o de Alex Viany e o de Humberto Mauro que nos deu em Ganga bruta nossa raiz mais forte. Nosso cinema é novo porque o homem brasileiro é novo e a problemática do Brasil é nova e nossa luz é nova e por isto nossos filmes nascem diferentes dos cinemas da Europa. (ROCHA, 2003, p. 130)

1.2 Desenvolvimento de um novo cinema

Mesmo com as produções ficcionais anteriores à década de 60, que apontavam para uma nova investida

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cinematográfica – no caso, o Cinema Novo –, os verdadeiros precursores do movimento que pregava “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”2 foram dois documentários: Arraial do

Cabo (1959), de Paulo César Saraceni, co-dirigido por Mário Carneiro, e Aruanda (1960), de Linduarte Noronha e Rucker Vieira. Nas produções, os diretores faziam questão de esclarecer que “aquele era um dos diversos registros que uma realidade pode ter e, que este mesmo registro pode receber diversas interpretações, variando de acordo com o grau de consciência do seu público com a realidade documentada” (GALDINI, 2003).

Nesse momento surgiu o Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes (UNE), com o objetivo de difundir a cultura popular por meio de diversas expressões artísticas. O cinema era uma delas. Uma das primeiras realizações do CPC foi o documentário Cabra Marcado para Morrer, de Eduardo Coutinho. Com o golpe de 64, a produção foi interditada pela ditadura, tendo sido retomada vinte anos depois. Quanto aos documentários que inauguraram o ciclo do Cinema Novo, é possível destacar a independência cultural com que foram feitos e, principalmente, a preocupação social dos jovens realizadores, que romperam com as imagens “mostradas de forma idealizada e de tom oficioso” (GALDINI, 2003) da época de Humberto Mauro.

Arraial do Cabo, inteiramente filmado em locações, retrata a vida numa comunidade de pescadores em contraste com o crescente surgimento de indústrias. Em 6 de agosto de 1960, num artigo escrito para o Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, Glauber Rocha concluía:

2Frase de Paulo César Saraceni atribuída a Glauber Rocha. Em Revolução do

Cinema Novo, Glauber corrige o equívoco: “Ele e não EU é o autor da frase O cinema novo é uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”.

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A modernidade de Arraial do Cabo está na inventiva em progresso, na autenticidade dos criadores que esqueceram os mestres (...) É desta independência cultural que nasce o filme brasileiro. Não porque tem temas nacionais, como iriam teóricos do nacionalismo, repetindo fórmulas desde o passado indianista de Gonçalves Dias... A arte brasileira precisa se nacionalizar através de sua expressão. (ROCHA, 2003, p. 125)

Aruanda retrata a vida rural de uma comunidade de antigos negros escravos que viviam na Serra do Talhado, na Paraíba. A precariedade das imagens, além de revelar liberdade estética, pode também ser entendida no sentido de que a pobreza não está apenas nos personagens do documentário, mas também nas condições da produção. Sobre esse filme, Glauber Rocha escreveu:

Linduarte Noronha e Rucker Vieira entram na imagem viva, na montagem descontínua, no filme incompleto. Aruanda, assim, inaugura o documentário brasileiro nessa fase de renascimento que atravessamos (...) Sentimos o valor intelectual dos cineastas, que são homens vindos da cultura cinematográfica para o cinema, e não vindos do rádio, do teatro ou literatura. Ou senão vindos do povo mesmo, com a visão de artistas primitivos. (ROCHA, 2003, p. 125)

Passada toda a etapa de concepção e ampliação do pensamento cinemanovista, com importante participação dos documentários, o movimento se definiu apenas em 1962, quando filmes mais maduros e politizados criaram uma nova situação para o cinema no País. Nunca antes se vira a realidade nacional nua e crua como mostrada pelo Cinema Novo. Ao contrário do pensamento de Glauber Rocha, o crítico

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Paulo Emílio Sales Gomes (1996, p. 102) atribui à juventude a razão pela qual foi concebido o Cinema Novo: “A aspiração dessa juventude foi a de ser ao mesmo tempo alavanca de deslocamento e um dos novos eixos em torno do qual passaria a girar a nossa história”.

No que se refere ao público, “os espectadores da chanchada ou o do cangaço quase não foram atingidos e nenhum novo público potencial de ocupados chegou a se constituir” (SALES GOMES, 1996, p. 103). Já Glauber Rocha (2004, p. 130) questionava se “dar ao público o que o público quer será uma forma de conquista ou de aproveitamento comercial do condicionamento cultural do público”.

Dessa forma, o Cinema Novo se afasta do cinema comercial, com objetivo de lucro, abre as portas para uma nova linguagem e exime-se do populismo didático – esse último, baseado no pensamento de se fazer coisas simples para um povo simples, é rechaçado por Glauber (2004, p. 132): “O povo não é simples. Doente, faminto e analfabeto, o povo é complexo”. Se no Brasil o Cinema Novo não teve o devido reconhecimento do público na época, o circuito estrangeiro de filmes de arte significou um mercado suplementar e deu sustentação ao movimento para que suportasse as pressões, que vinham das distribuidoras de filmes e, invariavelmente, da ditadura militar.

Quanto à linguagem, o Cinema Novo ganhou tal denominação porque a experimentação era o caminho a percorrer. Não havia conceitos, teorias ou influências que limitassem a criatividade e a eterna busca dos cinemanovistas por reinvenção a cada filme:

Cineastas se dispõem a falar do zero, a falar um cinema com outro tipo de enredo, com outro tipo de interpretação, com outro tipo de imagem, com outro ritmo, com outra poesia – eles se lançam na perigosa aventura revolucionária

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de aprender enquanto faz, de colocar, pois, a teoria paralela à prática. (ROCHA, 2004, p. 130)

Glauber (2004, p. 132) estabeleceu os principais pontos do Cinema Novo, definindo-o como “tecnicamente imperfeito, dramaticamente dissonante, poeticamente revoltado, sociologicamente impreciso (...), politicamente agressivo e inseguro como as próprias vanguardas políticas brasileiras, violento e triste”. O diretor afirmava, ainda, que o movimento se baseava na realidade, e não no “fotografismo”: “A câmera é um olho sobre o mundo, o travelling é um instrumento de conhecimento, a montagem não é demagogia, mas pontuação do nosso ambicioso discurso sobre a realidade humana e social do Brasil” (ROCHA, 2004, p. 52). Assim, para se aproximar dos seus propósitos, “o Cinema Novo monta um universo uno e mítico integrado por sertão, favela, subúrbio, vilarejos do interior ou da praia, gafieira e estádio de futebol” (SALES GOMES, 1996, p. 103).

1.3 Cinema de autor

Um pequeno grupo, com distinta formação intelectual e artística, fez parte do movimento cinemanovista. Muitos dos diretores foram também roteiristas e produtores de seus próprios filmes. Alguns produziram filmes de amigos, e vice-versa. O Cinema Novo pode ser definido, levando em consideração as produções que tiveram reconhecimento da crítica, como uma fase do cinema de autoria, ou de diretores-autores – poucas pessoas realizando diversas funções, com estrutura arcaica, baixo orçamento e qualidade técnica precária. O que importava eram as histórias a serem contadas, e não o visual. A falta de condições era um fator que reafirmava a condição de um novo cinema, independente e

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desafiador para a época.

Segundo Glauber Rocha, para o grupo de jovens cineastas que iniciaram o movimento cinemanovista, o cinema de autor era a realização de filmes anti-industriais, que tomassem partido do povo e construíssem uma identidade cultural. Quanto ao autor, ele passa “a ser um artista comprometido com os grandes problemas do seu tempo” (ROCHA, 2004, p. 52).

O termo “cinema de autor” foi criado pela crítica para situar o cineasta que produz filmes que não são comerciais e, assim, faz surgir um novo artista – aquele que, tanto como o poeta, o pintor, o romancista e o artista plástico, vê fins específicos para sua obra, por meio de uma expressão que ultrapasse a técnica existente. Com esse conceito foram produzidos os filmes do Cinema Novo.

De 1962 a 68, alguns dos cineastas utilizaram outras locações além do sertão e da favela para retratar a temática social. Os documentários, denominados por Glauber Rocha de “cinema-verdade”, e os filmes com temática política, também ganharam espaço nas telas.

Foi a partir de Os cafajestes, de Ruy Guerra, em 1962, que a expressão Cinema Novo atingiu o grande público brasileiro. O filme, visivelmente influenciado pela nouvelle vague, foi o primeiro sucesso comercial de uma produção com pequeno orçamento e fora do sistema tradicional de produção das chanchadas e das grandes companhias, como a Vera Cruz, que tinham caracterizado o cinema brasileiro dos anos anteriores. (FIGUEIRÔA, 2004, p. 21)

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1962

Em 1962, foram produzidos os filmes Cinco Vezes Favela, de Marcos Farias, Miguel Borges, Carlos Diegues, Joaquim Pedro de Andrade e Leon Hirszman; Porto das Caixas, de Paulo César Saraceni; Assalto ao Trem Pagador, de Roberto Farias; Garrincha, Alegria do Povo, de Joaquim Pedro de Andrade; e Pedreira de São Diogo, de Leon Hirszman (ambos documentários). O Pagador de Promessas, de Anselmo Duarte, apesar da data, não é considerado integrante desse movimento (FIGUEIRÔA, 2004, p. 234).

Cinco Vezes Favela, filme composto por cinco curtas-metragens, é experimental e coerente com os objetivos da UNE: “Instrumentalização do cinema e da arte para difundir unicamente seus objetivos políticos” (GARCIA, 2005). Das cinco histórias passadas em favelas, o episódio Couro de Gato, de Joaquim Pedro de Andrade, realizado em 1960, tem o maior destaque. Todos os realizadores são jovens, na faixa dos 24 a 30 anos – Leon Hirszman, Carlos Diegues, Miguel Borges, Joaquim Pedro de Andrade e Marcos Farias – e com “influências de Zavattini, David Lean, John Huston, Rossellini, Eisenstein”. Os curtas não apresentam tanta preocupação com a estética, mas com “a inquietação necessária para um crítico notar um núcleo cinematográfico” (ROCHA, 2003, p. 141).

Entre os que revelam maior acabamento estão Pedreira de São Diogo e Couro de Gato. O primeiro é “o único dos episódios declaradamente anticonformista, otimista e que apresenta um verdadeiro sinal de transformação” (GARCIA, 2005). Já Couro de Gato é um filme de maior acabamento e mostra uma “civilização que insiste em apagar qualquer vestígio de poesia que possa existir misturada ao cotidiano” (GARCIA, 2005).

Porto das Caixas, de Paulo César Saraceni, seria uma sequência do documentário Arraial do Cabo. Saraceni realiza um filme maduro, inspirado na “liberdade anti-formalista de Vigo e Buñuel”, “uma espécie de versão pessoal de Angústia,

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de Graciliano Ramos” (ROCHA, 2003, p. 142), por quem o diretor nutria grande admiração. Assim, o cineasta incorpora o estilo seco e analítico do escritor no ritmo de seu filme.

***

Em O Assalto ao Trem Pagador, o diretor Roberto Farias, revelado em filmes de assalto e crimes, toma a posição do bandido. Glauber Rocha (2003, p. 136-137) aponta que Farias – que veio da chanchada – “tem o senso do ritmo mecânico, enfrenta o espectador sem retórica, narra com simplicidade e segurança”, mas ressalva que a posição do filme é confusa, uma vez que “o diretor tem coragem pessoal, mas não tem formação ideológica sólida. Acusa, mas não aprofunda”.

Assalto é a inserção do gênero policial na composição do Cinema Novo. Como os dramas subsequentes, assume sua posição a favor dos mais fracos – nesse caso, os bandidos, que são favelados. Ao mesmo tempo, transforma a polícia e o modo de vida da sociedade em grandes carrascos. É um filme bem montado, que constrói uma trama envolvente.

Baseado em acontecimentos reais, Assalto levava às telas uma história então recente. Em 1960, o trem pagador da rede ferroviária da cidade do Rio de Janeiro foi alvo de bandidos (também favelados), que numa operação ousada utilizaram explosivos para sabotar as linhas férreas e obrigar a locomotiva com o dinheiro a parar. Transformado em filme, o crime foi o pretexto para se criar uma história calcada na realidade social da favela.

Logo após o assalto, os bandidos/favelados se reúnem para decidir como devem gastar o dinheiro. O mentor do plano ousado, um morador do asfalto que tenta aparentar uma vida luxuosa, recomenda que os integrantes do grupo gastem com moderação, caso contrário seriam descobertos. Assim a história vai se desenrolando, mostrando o dia-a-dia da favela

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e, consequentemente, as dificuldades que o grupo tem para manter a mesma vida com um bom dinheiro nas mãos.

Dois momentos são memoráveis nesse filme. Ambos se referem a questões sociais. O primeiro é quando o personagem de Grande Otelo diz: “Quando morre uma criança na favela, todo mundo devia comemorar. É menos uma pra sofrer”. O outro é uma discussão entre o líder do bando, Tião Medonho, e o personagem de Reginaldo Farias, sobre o preconceito – um, branco e com aparência de bem-sucedido; o outro, negro e pobre. No final, quando o dinheiro do assalto é descoberto na casa de Tião (dinheiro que seria para o futuro de seus filhos), fica evidente um pensamento: o de que o pobre não tem vez. 1963

O ano de 1963 é considerado como de consolidação do Cinema Novo, com a tríade formada por Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos; Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha; e Os Fuzis, de Ruy Guerra. Ganga Zumba, de Carlos Diegues, também foi incluído no rol dos cinemanovistas.

Vidas Secas absorve fielmente o estilo seco da linguagem, a narrativa linear e o conflito humano, existencial e moral dos personagens, tal como no livro de Graciliano Ramos. O diretor Nelson Pereira dos Santos vinha de experiências cinematográficas que iniciaram o realismo no cinema nacional. Com base no neo-realismo italiano e na nouvelle vague francesa, Rio, 40 Graus, de 1957, e Rio, Zona Norte, de 1959, transportaram Nelson para outros patamares artísticos e o incluíram entre os precursores do Cinema Novo. Estava ali o cinema de autor brasileiro: anticomercial, criador de uma identidade cultural e comprometido com os problemas de seu tempo.

O Nordeste brasileiro e as favelas são as locações escolhidas pelo Cinema Novo para retratar o país – incluindo a pobreza, a luta de classes e as injustiças sociais. Vidas Secas,

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filmado em preto e branco, revela elementos significativos em sua composição: a fotografia estourada nas locações externas (o sol onipresente, castigando a vida das personagens); os diálogos enxutos e repletos de significados; o ambiente cheio de poeira, seco e degradante do sertão brasileiro; a humildade e a força do homem trabalhador do sertão; a injustiça presente na forma de agir do patrão; a crença religiosa; e os travellings lentos em certos pontos do filme, que são uma forma de revelar os lugares (e passar informação ao espectador).

A história de Vidas Secas é, até certo ponto, simples. Uma família de retirantes nordestinos, composta por Fabiano; a mulher, Sinhá Vitória; os dois filhos pequenos; e a cachorra Baleia, quer se mudar para o Rio de Janeiro. No caminho, com as dificuldades encontradas, eles adiam o sonho e se acomodam numa casa. Fabiano consegue emprego, mas o patrão (dono de terras, gado e até dos homens que trabalham para ele) o engana no pagamento. Assim, as injustiças tomam conta da vida da família, inclusive quando Fabiano, forçado por um policial, é preso por desacato à autoridade. No final, sem emprego e moradia, só resta um caminho: a longa caminhada rumo a um futuro desconhecido e incerto.

Fabiano é um herói que não procura atrair simpatia. Não se rebela contra a opressão do patrão, pois tem medo das consequências. Não luta contra o sistema existente, e por isso leva sua família a se tornar vitima das mazelas sociais. Prefere trabalhar exaustivamente, sem descanso e remuneração adequada a reivindicar seus direitos. Sinhá Vitória, realista, sofre com o que vê à sua volta e cobra do marido uma atitude enérgica (que não vem). Os filhos estão no mundo para sofrer junto com os pais, mas são o motivo pelo qual a família ainda busca algo melhor com a migração. A cachorra Baleia é a personagem mais simpática, e acaba tomando conta de muitas das cenas importantes, como a que ela, por estar doente, precisa ser morta.

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As sequências que denotam maior acabamento e têm um significado amplo são as das injustiças impingidas a Fabiano pelo patrão e pelo policial; a da comparação do sertão com o inferno, feita por um dos filhos; e da família voltando à estrada, no final. No que se refere à injustiça, ela é uma constante nos filmes desse período, uma vez que o retrato da pobreza se espelha nas diferenças de classes. O patrão é o homem rico, dono das terras e do gado. Os empregados são os homens pobres, trabalhadores braçais que ganham até menos que o necessário para o sustento da família.

É o que acontece com Fabiano. Ele tinha o salário a receber, mas o patrão paga menos do que devia. Levantando a questão, Fabiano deixa o patrão irritado, mas trata logo de “desfazer o mal-entendido”, a fim de evitar a demissão. O mesmo acontece quando um policial o chama para um jogo. Diante da recusa, o policial vai atrás de Fabiano, fazendo provocações até tirá-lo do sério. Ele, então, é preso, torturado e passa a noite numa cela.

Cena memorável também é a que mostra um dos filhos do casal questionando os pais, após ter ouvido de uma curandeira a palavra inferno. Ele pergunta seu significado à mãe, que responde com evasivas. Depois, pergunta ao pai, que não abre a boca. O menino volta, então, a questionar a mãe, que lhe responde que o inferno é um lugar cheio de fogueiras, de espetos quentes e para onde vão os condenados. Ainda não satisfeito, o menino questiona como a mãe sabe disso tudo, se ela já foi até lá. Imediatamente, ela lhe dá um tapa na cabeça e ele sai chorando. Senta-se do lado de fora da casa, chama a cachorra Baleia e age com o animal da mesma forma que sua mãe agiu com ele.

Na sequência final do filme, o ciclo se fecha. A família ainda à procura de melhores condições para viver, apesar das dificuldades, e o sertão preenchendo toda a tela.

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Baseado numa história popular, folclórica e mística, Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha, transforma as histórias de cangaço e religiosidade nordestina em um grande conto popular. Ou melhor, numa literatura de cordel transposta para as telas de cinema. Glauber, então jovem e com espírito revolucionário, é o arquiteto da construção desse longa-metragem repleto de referências à religiosidade popular e à injustiça social. Antes de Deus e o Diabo, o cineasta filmou Barravento, considerado por Jean-Claude Bernardet um filme importante, por ser socialmente experimental. Foi a mesma experimentação que ocorrera com Cinco Vezes Favela.

Se Deus e o Diabo não inaugura a abordagem do sertão no Cinema Novo – Vidas Secas foi o precursor –, no mínimo apresenta o tema de maneira diferente do habitual. No começo, estão lá a seca matando os animais, para desespero do peão; o “Deus negro” chamando o povo para a sua peregrinação; e o trabalho de Manuel (Geraldo Del Rey) e Rosa (Yoná Magalhães) no engenho, numa cena que tem como referência os documentários de Humberto Mauro, cineasta considerado por Glauber Rocha como um dos primeiros autores do cinema brasileiro, ao lado de Mário Peixoto (Limite). Até então, a narrativa é simples e mostra as dificuldades e o modo de viver do sertanejo. É a partir do contato de Manuel com seu patrão que a história toma contornos diferentes.

Manuel não se rende ao sistema dominante, que no caso é o patrão, e o confronta, matando o fazendeiro. Depois que capangas matam sua mãe por vingança, ele entende que não há mais sentido em continuar vivendo onde estava e parte com Rosa rumo a Monte Santo, atrás do “Deus negro”. É nesse momento que Glauber, ao invés de tratar formalmente a trama, apresenta caminho inverso, trazendo o misticismo

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religioso e o folclore nordestino para o primeiro plano. As músicas do filme,

elaboradas por Sérgio Ricardo, com letras do próprio cineasta, fazem parte de uma nova experiência cinematográfica.

Personagens lendários circulam na trama, como o “Diabo loiro” Corisco (Othon Bastos), que viu a morte de Lampião e encontra em Manuel uma testemunha de seus feitos; Antônio das Mortes (Mauricio do Valle), o matador contratado pelas autoridades para exterminar todos os cangaceiros, incluindo Corisco; e o cego, que apesar do pequeno papel, é peça fundamental na trama, estando presente em acontecimentos importantes e contando as histórias que ouviu para o povo. O povo, símbolo da religiosidade, é posto em penitência pelo “Deus negro” – o que revela toda sua opressão – e acaba dizimado, na procissão em Monte Santo, por Antônio das Mortes.

Deus e o Diabo na Terra do Sol é um filme que foge aos padrões do próprio Cinema Novo em alguns momentos, simplesmente por usar demais a imaginação. É vivo, contestador, e na época tinha como função básica causar impacto, apresentando não só o sertão como um lugar de pobreza extrema, como também de riqueza cultural imensa, com suas próprias histórias, lendas, costumes e tradições.

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Os Fuzis é a segunda obra de Ruy Guerra (que em 1962 havia feito Os Cafajestes) com a marca do movimento que trouxe a realidade social às telas. O maior trunfo do filme é ser ficcional e documental ao mesmo tempo, ainda que por um longo período prefira a narração em detrimento da imagem.

Como as obras de Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos, o filme tem montagem baseada na experimentação. Elipses acontecem, mas não prejudicam o desenvolvimento da

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história. São, mesmo, essenciais para um filme longo, que precisa da narração para encurtar determinadas passagens. A base do Cinema Novo é notada desde a filmagem até a interpretação dos atores, onde cada gesto e fala significa algo.

A história se passa no sertão nordestino. Soldados são enviados a um pequeno vilarejo para manter a ordem no local. Ameaças de que a população faminta ataque a única venda do lugar em busca de comida fizeram com que o governo mandasse a tropa, carregando em riste os fuzis. Mais uma vez é retomado o tema da exclusão social, principalmente no que diz respeito à diferença entre os homens – no caso desse filme, o abastado, que é o dono da venda, e os pobres, a população local. Outro item abordado nessa questão é a diferença de vida entre as pessoas e os soldados – melhor representado pelo caso que um dos tenentes tem com uma moça. A religião, assim como nos outros filmes de 1963, também está presente, mas um degrau abaixo na representação.

O principal ponto de reflexão se dá no final. A personagem de Átila Iório, que representa uma espécie de anti-herói (não tem relação direta com o povo, realiza diversos tipos de trabalho e ainda se vale da necessidade das pessoas para atrair as mulheres que quer, muitas vezes ainda meninas), se insurge contra a ordem estabelecida ao se revoltar com a morte de mais uma criança, no exato momento em que o exército parte da cidade com a comida que poderia salvar inúmeras vidas. Em pelo menos duas partes do filme ele já havia mantido diálogos que caracterizavam a obediência do povo diante da imposição do governo. Sozinho, com a debandada da população assustada, o anti-herói não consegue fazer a revolução.

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Diegues, “o único filme sobre negros (...) onde o cineasta, branco, não assume uma visão paternalista dos negros mas se identifica a eles pelas origens e uma lenta e triste anti-epopeia” (ROCHA, 2004, p. 143). Nesse filme, Diegues aborda o tema da revolta dos escravos em Palmares.

1964

Os longas-metragens com o selo cinemanovista ficaram escassos em 1964. Os curtas foram o único formato a se desenvolver, com Maioria Absoluta, de Leon Hirszman; Integração Racial, de Paulo César Saraceni; e O Circo, de Arnaldo Jabor. Os três se encaixam no que era chamado de cinema-verdade, classificado por Glauber Rocha como de três tipos possíveis: a pesquisa de caráter antropológico e sociológico, político e econômico, mas de maneira neutra; o que parte de informações concretas para estabelecer uma análise política; ou que, de maneira livre, relaciona fatos sociais, políticos e econômicos sem se posicionar a respeito.

Maioria absoluta (1963/64) de Leon Hirszman, como um filme principalmente determinado pelo ponto de vista político, ou seja, um filme que faz uma pesquisa e realiza uma ideia, inclusive com uma intenção de alerta político a respeito de um fato. Integração racial (1964) de Paulo César Saraceni, recolhe apenas dados sociológicos e políticos, mas não elabora uma ideia e se completa numa forma livre. O Circo (1964/65) de Arnaldo Jabor, recolhe informações, cria um certo tipo alerta político e estetiza certos aspectos da realidade recolhida. (ROCHA, 2004, p. 74/75)

1965

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Desafio, de Paulo César Saraceni; A Falecida, de Leon Hirszman; O Padre e a Moça, de Joaquim Pedro de Andrade; e Menino de Engenho, de Walter Lima Jr. O Padre e a Moça e A Falecida são baseados em obras de Carlos Drummond de Andrade e Nelson Rodrigues, respectivamente. Quanto ao primeiro, Glauber Rocha fez a seguinte crítica:

O filme é triste, lento, amargo, mudo. O ideal de um filme sofisticado sobre nossa aristocracia decadente não se realiza porque o cineasta investe contra estas origens podres de nossa economia e cultura para dizer que aquilo não vale nada, o ouro é pobre, a tradição uma mentira: é a recusa do subdesenvolvimento. (ROCHA, 2004, p. 145)

Em relação ao segundo, Leon Hirszman mergulhou na obra de Nelson Rodrigues e apresentou ao público e crítica um autor diferente daquele que era tido como pornográfico ou expressionista. O conflito social era evidente no texto do autor, considerado por Glauber Rocha como o “Vidas Secas urbano”:

Zulmira [a personagem], na peça, quer um enterro de luxo e nesta obsessão envolve o marido. O sensacionalismo aparente do assunto é enxugado por Hirszman que faz emergir a solidão de um personagem inserido no imobilismo social: o apodrecimento prematuro de um meio social que não se resolve é dissecado palmo a palmo, nos gestos, nas paredes rachadas, nas ruas tristes, nos trens e bondes que se arrastam, no desemprego, na fome crônica. (ROCHA, 2004, p. 145)

Explorando os universos da literatura de José Lins do Rego e Guimarães Rosa, Walter Lima Jr. filmou Menino de Engenho, mas para Glauber o diretor não foi feliz em sua empreitada.

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Como os engenhos realmente pertencem ao passado, o público concordou com a despedida do menino. A comunicação de Menino de engenho, porém, lidou com uma vantagem, independente de vontade do cineasta, que foi a infância. E, por azar, uma infância sem miséria, uma infância nos engenhos e não nas senzalas. (ROCHA, 2004, p. 144)

Já O Desafio marca uma nova etapa dentro do Cinema Novo – a entrada da classe média nas telas. Terminado o ciclo que abordava o sertão e a favela como pontos de convergência do social no cinema brasileiro, a disputa entre a burguesia e a classe pobre foi consolidada com o filme de Saraceni. “Pela primeira vez os personagens do cinema brasileiro aparecem discutindo psicologia, economia, política, história, amor, sexo, psicanálise, revolução” (ROCHA, 2004, p. 437). A diferença estava basicamente na transposição de paisagens – da terra árida (sertão) para o cenário urbano (cidade) –, mas a abordagem de temas e questões relacionadas ao cotidiano também trouxe novas perspectivas aos cineastas da época.

Como pano de fundo centralizador das discussões políticas estavam a queda de João Goulart no ano anterior e a chegada de Castelo Branco à Presidência da República. Em relação às personagens, há o envolvimento amoroso de um intelectual, jornalista de O Cruzeiro, representante da classe trabalhadora, com a esposa de um industrial, esta empunhando a bandeira da burguesia. O envolvimento entre os dois pode ser considerado uma metáfora entre a burguesia que flerta com a pobreza, no intuito de conhecer suas mazelas, e a pobreza com a intenção de aproveitar algo do mundo burguês. Ambos querem se conhecer melhor, mas quando o fazem, a esposa do industrial se afasta do intelectual.

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1966

A Grande Cidade, de Carlos Diegues, é a única produção de 1966. Houve uma diversificação dos temas desde 1964, pois foi reconhecido que “o subdesenvolvimento também está nas cidades, nos bairros grã-finos, nas boutiques de luxo, em Ipanema” (ROCHA, 2004, p. 143). Na trama de Diegues, que retorna após levar a questão da escravidão às telas, a personagem de Anecy Rocha é uma retirante nordestina que vai para a cidade em busca da felicidade. Como em O Desafio, do ano anterior, a revolta contra a pobreza está lá, mas agora por questão moral, não ideológica.

1967

Terra em Transe, de Glauber Rocha, é a versão política do movimento cinemanovista. O cineasta procurou atrelar o momento político pelo qual passava o país às questões sociais que afligiam a população, resultando num trabalho hoje reconhecido como obra-prima. O segundo filme de Glauber é um retrato fiel do sistema político nacional, mesmo que nas telas tenha sido recriado como Eldorado, um país fictício da América Latina.

A câmera inquieta, as narrações em off revelando pensamentos das personagens e a edição seca e não-linear são algumas das características marcantes da obra, que remete o espectador a um mundo sujo, repleto de artimanhas que em nada se aproxima das angústias do povo. Mas quem seria esse povo? Essa é uma das perguntas respondidas por Rocha num ponto do filme, em que um rapaz, tímido no meio da multidão em um comício, é intimado a falar em nome da população. É quando revela ser um líder sindical que está à espera da solução que se dará em nível federal. Porém, é interrompido por uma pessoa que reivindica a palavra. Este sim garante ser a voz do povo, dizendo ser pai de sete filhos e incitando a população para que haja. Nesse momento, é brutalmente

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agredido e chamado de “esquerdista”.

Outras contradições, que se evidenciam mais por conta do poder, são retratadas por dois tipos de políticos: o populista e o popular. O populista, ao seu modo e ao daqueles que o rodeiam, cria um vínculo com o povo, indo às ruas e aos comícios, fazendo promessas aos mais humildes (e não cumprindo). O popular, por sua vez, garante votação esplendorosa por aquilo que representa – um homem que deixou o sacerdócio para se dedicar às causas sociais –, e não pelo que realmente faz. O discurso do popular é com a bandeira e o crucifixo nas mãos, mas para ninguém à sua volta. O povo, mais uma vez, é enganado em qualquer das hipóteses.

1.5 Estética da fome

Termo utilizado por Glauber Rocha no seu texto-manifesto de 1965, a Eztétika da Fome3 consolidou a posição do

Cinema Novo junto à crítica. Para o público em geral, esse movimento representava mais um ciclo, que não chegou a formar um novo grupo de espectadores. Para Paulo Emílio Sales Gomes (1996, p. 104), o Cinema Novo “nunca alcançou a identificação desejada com o organismo social brasileiro”. Seu sucesso estava, nitidamente, nos cineclubes – onde se pensava o cinema – e nos festivais internacionais, com o reconhecimento garantido pelos inúmeros prêmios e o aval da crítica estrangeira.

Em seu manifesto, Glauber não se limita ao Brasil. Pelo contrário. Procura situar todo o resto do mundo na pobreza e no problema cultural da América Latina, atribuindo a essas questões a pecha de colonialismo. Ele amplia seu foco e dá

3Tese apresentada por Glauber em Gênova, durante as discussões sobre o Cinema

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contornos políticos à representação da realidade no cinema. Assim, já dava mostras de uma ênfase muito mais ampla para sua produção, que ele passou a chamar, no fim da década de 70, de projetos nacionais-universais, “onde o que está em questão não é apenas o Brasil ou a América Latina, mas a relação entre diferentes civilizações (BENTES, 1997, p. 52).

O texto-manifesto Eztétika da Fome, a partir da análise dos filmes iniciais do Cinema Novo, enfatiza a intenção original do movimento. Uma série de acontecimentos políticos, contudo, modificou a estrutura idealizada por Glauber Rocha e seus interlocutores.

De Aruanda a Vidas Secas, o Cinema Novo narrou, descreveu, poetizou, discursou, analisou, excitou os temas da fome: personagens comendo terra, personagens comendo raízes, personagens roubando para comer, personagens sujas, feias, descarnadas, morando em casas sujas, feias, escuras: foi esta galeria de famintos que identificou o Cinema Novo com o miserabilismo tão condenado pelo Governo e pela Crítica, a serviço dos interesses antinacionais, pelos produtores e pelo público – este último não suportando as imagens da própria miséria. (MORENO, 1994, p. 157)

No contexto da estética da fome e da mudança estilística do cinema nacional apresentadas pelo Cinema Novo, Fernão Ramos encontra três fases distintas nesse movimento. “O primeiro momento corresponde ao de representação de um Brasil longínquo e ensolarado, de onde emergem os conflitos sócio-políticos” (FIGUEIRÔA, 2004, p. 33). O Nordeste é apresentado ao Brasil tomando-se como ponto de partida as vidas desgraçadas de um povo que enfrenta a seca, a fome e o descaso do próprio governo. Pode-se entender, portanto, o motivo pelo qual o Cinema Novo não atraiu as massas. Mesmo

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apresentando o povo ao povo, a classe média, ou emergente, não se enxergava nas telas. Ou melhor, não via, ou procurava não enxergar, que tais fatos faziam parte do seu país.

Num segundo momento, após o golpe militar de 1964, houve uma mudança em relação à ideologia que dominaria as telas, mas ainda com a característica de ser popular. “Segundo Fernão Ramos, nesses filmes encontra-se um diálogo sincero da geração do Cinema Novo com o universo onde ela se insere, com suas dúvidas e suas culpas” (FIGUEIRÔA, 2004, p. 35). Filmes como Terra em Transe, O Desafio e O Bravo Guerreiro (Gustavo Dahl, 1968) ampliam o foco inicial do movimento cinemanovista, que agora chega às cidades, ao universo político e, principalmente, à classe média. A partir daí, foi percebido que “a revolução brasileira não aconteceria” (FIGUEIRÔA, 2004, p. 35).

O terceiro e último período corresponde ao conflito vivido pelos cineastas entre um cinema possível e o cinema de autor. A realidade econômica na qual estavam inseridos afetou não só estilisticamente, como também conceitualmente, o Cinema Novo. Nesse momento, “dois caminhos mostravam-se aos cineastas: falar dos mitos utilizando o próprio mito como elemento de comunicação ou recusar esse processo por acreditar numa nova temática revolucionária capaz de conduzi-los a uma nova formulação da linguagem” (FIGUEIRÔA, 2004, p. 35).

Os diretores que continuaram a trilhar o caminho do Cinema Novo buscaram modificar as estruturas narrativas de seus filmes, ligando-os conceitualmente aos “elementos alegóricos” (FIGUEIRÔA, 2004, p. 36) de várias manifestações culturais, tais como música, dança, teatro e literatura. O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro (1969), de Glauber, e Macunaíma (1969), de Joaquim Pedro de Andrade, se encaixam nessa concepção.

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cinemanovista já havia modificado seu contexto em virtude do golpe de 64. Posteriormente, com o endurecimento do regime militar a partir do Ato Institucional Nº 5, “os censores perseguiam os filmes que tinham temas sociais e políticos, mas não se opunham às pornochanchadas, comédias eróticas leves de grande sucesso de público no transcurso dos anos seguintes” (FIGUEIRÔA, 2004, p. 30). Assim, chegou ao fim o ciclo do Cinema Novo, com os cineastas seguindo seu próprio caminho e partindo para produções associadas ao tropicalismo, ao Cinema da Boca do Lixo (em São Paulo) e ao Cinema Marginal.

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CAPÍTULO 2

CINEMA DA RETOMADA

Dando um salto abrupto de 1964 para 2001, encontramos o sertão e a favela inseridos em um outro contexto e imaginário, onde a miséria é

cada vez mais consumida como um elemento de ‘tipicidade’ ou ‘natureza’ da qual não há nada a fazer. Ivana Bentes

Para contar a história do Cinema da Retomada, é necessário, antes de qualquer análise sobre a filmografia do período, conhecer os problemas estruturais da produção e exibição dos filmes nacionais. É preciso voltar ao começo dos anos 90, quando a posse de Fernando Collor de Mello na presidência da República causou certa euforia não só por grande parte da sociedade civil, como também dos envolvidos com o audiovisual no país. Esse grupo aguardava com ansiedade uma revisão do modelo de financiamento dos filmes brasileiros, uma vez que a Embrafilme era alvo constante de acusações de corrupção envolvendo seus dirigentes.

A solução mais fácil encontrada pelo então presidente foi extinguir o órgão estatal, além de rebaixar o Ministério da Cultura à condição de Secretaria. Assim, muitos projetos que estavam em fase de financiamento ou produção ficaram estagnados, embora a produção não tenha cessado totalmente. Entre 1990, quando houve a dissolução da Embrafilme, e 1994, ano anterior ao início da chamada retomada do cinema brasileiro, 31 filmes nacionais entraram em exibição nas salas de cinema.

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Em 1990, apareceram Barrela, Beijo 2348/72, Boca de

Ouro, Césio 137, Conterrâneos velhos de

guerra, O escorpião escarlate, Stelinha. Em 1991, ABC da greve, O Corpo, O fio da memória, A grande arte, A maldição de Sanpaku, Não quero falar sobre isso agora, Matou a família e foi ao cinema, Rádio Auriverde, Sua excelência, o candidato e Vai trabalhar

vagabundo 2. Em 1992, Oswaldianas, Perfume de

gardênia e O vigilante. Em 1993, Alma Corsária, Capitalismo selvagem, A dívida da vida, A saga do guerreiro alumioso, Vagas para moças de fino trato. Em 1994, Carmem Miranda: bananas is my business, A causa secreta, Lamarca, Louco por cinema, Mil e uma e Veja esta canção (ORICCHIO, 2003, p. 26). Depois do impeachment de Collor e com Itamar Franco na Presidência, a Secretaria de Cultura foi novamente elevada a Ministério. Em 1993, é criada a Lei do Audiovisual, aperfeiçoando a legislação vigente no setor em relação a incentivos fiscais, como a Lei Rouanet – redigida pelo então ministro da Cultura, o embaixador Sérgio Paulo Rouanet. Promulgadas as leis, a partir de 1995 elas começaram a render frutos para o cinema nacional.

Entretanto, essa retomada da produção não significou a existência de uma estética comum aos filmes, e sim o mesmo sistema de financiamento dos longas-metragens com as novas leis, que passaram a prever a renúncia fiscal das empresas privadas, e não mais o capital estatal. Dessa forma, foi também possível que as produtoras internacionais passassem a fazer a co-produção e distribuição dos filmes nacionais no exterior.

A diversidade foi, sem dúvida alguma, a marca do período. Por um lado, se ampliou o enfoque nacionalista, que teve seu advento com o Cinema Novo. “Com o chamado ‘fim das utopias’, cada qual se sentiu liberado para estabelecer a

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própria agenda de prioridades” (ORICCHIO, 2003, p. 30). Este sentimento é corroborado por outros pesquisadores:

A falta de unidade temática e estética revela, entre outros aspectos, que a “retomada” representa muito mais o renascimento das produções nacionais, sem maiores compromissos de continuidade com os movimentos cinematográficos brasileiros anteriores, principalmente com o Cinema Novo ou o Cinema Marginal. (LEITE, 2005, p. 129)

2.1 O início e o fim

O marco inicial do ciclo da Retomada4 está identificado

em Carlota Joaquina: Princesa do Brasil, de Carla Camurati, uma sátira à vinda da família real portuguesa ao Brasil. O filme, lançado com vários outros em 1995, conseguiu quase 1 milhão 300 mil espectadores. “Mais importante: com Carlota voltou-se a falar em cinema nacional” (ORICCHIO, 2003, p. 26).

Com o sucesso de público, o filme deu uma sobrevida ao cinema brasileiro. Outro fator importante nesse período, que contribuiu de forma determinante para que o público voltasse a ter interesse pelo cinema produzido aqui e a crítica se alinhasse a essa onda, foi que uma produção nacional concorreu ao Oscar de Filme Estrangeiro. O Quatrilho, de Fábio Barreto, gerou grande expectativa entre os brasileiros, o que foi comprovado também em outras ocasiões, quando O Que é Isso, Companheiro? (1997), de Bruno Barreto, Central do Brasil (1998), de Walter Salles, e Cidade de Deus (2002), de Fernando Meirelles e Kátia Lund, concorreram à estatueta. No caso do

4Muitos dos profissionais ligados ao cinema no País não aceitam essa expressão, pois entendem que houve apenas um período de interrupção nas atividades, não um reinicio delas.

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filme de Meirelles, também aos prêmios de Direção, Roteiro Adaptado, Montagem e Fotografia.

Cidade de Deus não foi um sucesso arrebatador de público, mas provocou na crítica um intenso debate entre aqueles que defendiam o entretenimento sem perda do valor social e os que o condenavam, alegando que o filme espetaculariza a violência. Por isso, o longa, que narra o avanço no tráfico de drogas na favela que dá nome ao filme, pode ser considerado o fim desse ciclo, embora tenha fornecido subsídios para uma nova etapa.

(Cidade de Deus) propõe um dilema interessante para os críticos. Podem continuar devotos de um cinema monástico, cujos parâmetros se estabeleceram em outras épocas e em condições históricas bem diversas, ou podem se abrir a esse novo cinema que – queiramos ou não, gostemos dele ou não – vem por aí. Este cinema incorpora, sem pruridos, técnicas da publicidade e do videoclipe. Dialoga com a televisão. Coloca o espectador no centro

de suas preocupações e se esforça para não entediá-lo. (ORICCHIO, 2003, p. 224)

Para Lúcia Nagib (2002, p. 17), o ano de 1998 marca o ápice do período recente, pois “uma vez retomada, a produção cinematográfica avança para uma outra etapa, procurando se estabilizar e solidificar”. O cineasta José Joffily, que faz filmes desde 1977, não acredita na retomada do cinema nacional e faz a seguinte avaliação:

O cinema brasileiro vive de ciclos, e cada vez que um novo

ciclo surge, todos chamam de

renascimento. Não tenho nada contra esse termo criado pela mídia (...) A questão audiovisual no Brasil passa a ser mais discutida, é uma questão estratégica no mundo de

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hoje. (NAGIB, 2002, p. 238)

A mesma linha de pensamento segue Walter Salles. Para ele, “só há verdadeiro renascimento com uma produção constante e qualitativamente conseqüente”, e isso, na opinião do cineasta, não ocorreu ainda. “Embora o que foi feito em quatro anos [1994-1998] seja muito mais do que se poderia esperar” (NAGIB, 2002, p. 417).

2.2 Os filmes e os temas

De 1995 a 2002, o cinema nacional viu o lançamento de 200 filmes, que levaram quase 37 milhões de pessoas aos cinemas. Nesse período, as produções se voltaram à diversificação de temas, com propostas estéticas diferentes uma das outras. “Tecnicamente, (o cinema da Retomada) se incorpora ao trabalho de meditação sobre o país e suas contradições” (ORICCHIO, 2003, p. 233). Lúcia Nagib vai mais além:

A constatação interessante é que, enquanto a geração dos veteranos se formou com o Neo-Realismo, a Nouvelle Vague, o cinema americano dos anos 40 e 50 e eventualmente o cinema japonês ou sueco, os jovens cineastas brasileiros são antes de tudo filhos de pais brasileiros, os quais não perdem a oportunidade de citar e homenagear. Estabelecem assim, na prática, os laços históricos com seu país que Glauber Rocha tanto lutou para criar. (NAGIB, 2002, p. 17)

Como não há uma escola ou tendência definida, como havia no Cinema Novo, e o sentimento de grupo já não é um fator de agregação, mesmo com o sertão e a favela ainda sendo

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os pontos referenciais de uma interlocução entre o cinema dos anos 60 e a Retomada, os temas abordados têm muito mais relação com a escolha individual de cada cineasta – com um enfoque pessoal, inclusive – do que com a procura em consolidar um movimento específico. Além disso, há uma crítica em relação aos filmes de apelo mais social.

Os filmes da “retomada”, mesmo quando têm como cenário de seus roteiros ambientes socialmente degradados, especialmente o sertão ou a favela, desenvolvem uma narrativa melodramática. O enfoque recai sobre dramas individuais, os aspectos sociais mais amplos são obliterados ou colocados em plano secundário. Em outras palavras, as mazelas e contradições da sociedade brasileira servem apenas de moldura, não são discutidas. No entanto abordar as chagas sociais do país agrega às produções recentes do cinema nacional uma espécie de chancela de qualidade intelectual e artística – em alguns casos a miséria e a violência se transformam em simples entretenimento. (LEITE, 2005, p. 130)

A safra de filmes do período também leva em conta o ambiente cultural herdado de um período de transição, da ditadura militar para a Nova República, que segue “a tendência geral de outras artes e, como elas, caminha no escuro, tateando” (ORICCHIO, 2003, p. 32). Talvez seja por isso que, com defeitos e virtudes, os cineastas da Retomada, em busca de novas formas de “fazer cinema”, experimentaram técnicas, buscaram adequar narrativas e por isso evitaram uma análise mais profunda como nos tempos do Cinema Novo. Assim, a Retomada não se caracteriza por datas, como o cinema dos anos 60, mas por temas.

Referências

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