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CINEMA DA RETOMADA

2.3 Sertão e favela

O sertão e a favela se tornaram “espaços privilegiados da observação nacional” (ORICCHIO, 2003, p.32), uma vez que trazem consigo a lembrança do Cinema Novo. Porém, a reinterpretação dessas realidades é o ponto-chave do cinema que se fez no Brasil desde o início da Retomada: no caso do sertão, os exemplos são Central do Brasil (1998) e Abril Despedaçado (2001), de Walter Salles, e Eu Tu Eles (2000), de Andrucha Waddington; e em relação à favela, Orfeu (1999), de Carlos Diegues, Uma Onda no Ar (2002), de Helvécio Ratton, e Cidade de Deus (2002), de Fernando Meirelles e Kátia Lund.

Central do Brasil trata da migração da grande cidade para o interior brasileiro. A ação começa na estação de trem localizada no Rio de Janeiro e vai para o Nordeste, com o intuito de revelar um outro centro de problemas sociais. Walter Salles criou um road movie intenso, mas focado nas personagens e nos dramas pessoais, abdicando de uma abordagem ampla da situação.

A trama começa na estação Central do Brasil, onde uma mulher chamada Dora (Fernanda Montenegro) redige cartas para aqueles que não sabem escrever. As pessoas pagam pelo

trabalho, como no caso da mãe do menino Josué (Vinícius de Oliveira), que procura fazer contato com o marido para que ele a visite e conheça o filho. É quando um golpe do destino reúne as personagens principais. Logo após sair da estação, a mãe de Josué é atropelada e morre. O menino fica sozinho, e não há quem o ajude. Mesmo a contragosto, Dora o socorre e realiza uma viagem em dois sentidos – real e sentimental.

O primeiro tipo de viagem corresponde à busca pelo pai de Josué, que está em algum lugar do Nordeste. A outra é relativa ao relacionamento, aos sentimentos que se expõem no convívio entre duas pessoas tão parecidas no sofrimento. Dora já perdeu qualquer resquício de esperança em uma vida melhor; Josué tem um amadurecimento precoce por viver tão intensamente realidades distintas (seca e violência) em tão curto tempo de vida. São sentimentos reais que se desenrolam em cada sequência, e por isso não parecem artificiais. As duas personagens vivem conflitos e apaziguamentos em iguais proporções.

Uma das cenas mais importantes do filme, e também um ponto de convergência com o Cinema Novo, é o desespero de Dora na multidão, em um cortejo religioso. A personagem de Fernanda Montenegro se perde de Josué no meio da cantoria e das velas. A câmera, em giro constante e acompanhando o desespero de Dora, é uma observadora que apenas registra o choque de realidades. E é com essa visão, de mundos opostos (da cidade e do sertão), que Dora desmaia. No instante seguinte, recobra os sentidos e evita olhar para outra realidade.

Assim, Central do Brasil exibe a realidade brasileira de maneira mais harmônica, no sentido de não chocar o espectador com as imagens, mas de lhe apresentar uma história com ênfase nas relações humanas como potencial fonte de mudança social do País. Não há crítica ao sistema, nem busca por culpados. Há apenas a vontade de mostrar o

Brasil como ele é, sem análises ou juízos de valor. É assim que Salles reflete o País, mostrando no desfecho melancólico do filme a certeza de que não há final feliz para as questões sociais.

Já em Abril Despedaçado, Walter Salles começa a tomar partido, mesmo que metaforicamente. Adaptando ao Nordeste brasileiro o livro homônimo do albanês Ismail Kadaré, cujo tema é a disputa de terras entre famílias, o cineasta mostra a luta do jovem Tonho (Rodrigo Santoro) para se livrar das amarras de uma tradição de vingança iniciada há muito tempo.

A história se passa em 1910 e apresenta, logo no começo do filme, a atividade com que a família de Tonho se mantém: a produção de rapadura. As etapas de elaboração do produto são mostradas de forma quase documental: o girar da estrutura da bolandeira pelos bois, de responsabilidade do pai (José Dumont); a colheita de cana pelo irmão mais novo (Ravi Ramos Lacerda); a moenda, feita pelo próprio Tonho; e o recolhimento do bagaço, feito pela mãe (Rita Assemany). Depois dessa etapa, vem o trabalho no tacho, com todos ajudando. Em outro ponto do filme, a venda de rapadura apresenta a injustiça do sistema capitalista. A personagem do dono da venda (Othon Bastos, o Corisco de Deus e o Diabo na Terra do Sol) paga menos pela mesma quantidade do produto, alegando que a concorrência com as fábricas a vapor era responsável pela situação.

O foco do longa está na luta familiar por terras. O irmão mais velho de Tonho já havia morrido pelas mãos de um representante da família Ferreira (rivais dos Breves5). Agora, era esperar a mancha de sangue na camisa amarelar para cobrar a morte.

5O sobrenome Breves é uma homenagem a Mário Peixoto, diretor de Limite (1930), cujo nome completo é Mário Breves Peixoto. Outros elementos de Limite também foram incorporados a Abril Despedaçado.

Assim o sistema de vingança permanecia inalterado. O narrador da história é o irmão mais novo, chamado apenas de Menino, pois não lhe deram nome. No livro de Kadaré, não existe esse personagem. Uma vez incorporado ao filme, Menino serve de contraponto à família, observando e entendendo que as vinganças resultariam em mais destruição.

Assim, logo depois de vingar a morte do irmão, Tonho toma consciência de que lhe restam apenas mais alguns dias até que a morte de um dos Ferreira lhe seja cobrada. Nesse ponto, surge uma nova possibilidade, os brincantes do circo. Tonho viaja com eles para uma cidade próxima, onde descobre um novo mundo e o amor. Volta para a casa, é repreendido pelo pai, mas não se intimida. Numa noite, a chuva escassa no sertão traz o seu amor, abrindo a possibilidade de abandonar as tradições e tudo que ainda o aprisiona.

Mas é com a morte do irmão mais novo que Tonho toma a decisão de ir embora. Na estrada de terra, escolhe o caminho que o leva ao litoral. Faz o trajeto inverso de Central do Brasil, que vai do litoral para o interior. Assim, Tonho chega no mar, ponto de liberdade, similar a Deus e o Diabo na Terra do Sol.

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O sertão de Eu Tu Eles é romantizado. Seria uma fábula moral, produto de uma imaginação fértil, se a história não se baseasse em fatos reais. Na trama, a bóia-fria Darlene (Regina Casé) é casada com Osias (Lima Duarte), o marido oficial e dono da casa onde vivem. No desenrolar da história, aparecem Zezinho (Stênio Garcia), cozinheiro de mão cheia e muito carinhoso, e Ciro (Luiz Carlos Vasconcelos), o amante jovem. O marido representa a segurança, o provedor; Zezinho é o sentimento do qual Darlene necessita, por não ver isso no marido; já Ciro é a representação do sexo, completando as necessidades da mulher. No mais, a história é simples, mas

com juízo de valor e moral. Por isso a diferença de Eu Tu Eles se passar no Nordeste e não na cidade.

Foram também ambientados no sertão os filmes Baile Perfumado (1997), de Lírio Ferreira e Paulo Caldas, que conta a história do fotógrafo e aventureiro Benjamin Abrahão, que conseguiu as únicas imagens de Lampião e seu bando; O Auto da Compadecida (2000), de Guel Arraes, baseado no livro homônimo de Ariano Suassuna, que apresenta um sertão imaginário e folclórico; o drama histórico Guerra de Canudos (1998), de Sérgio Rezende, baseado no livro de Euclides da Cunha sobre a luta entre os fiéis de Antonio Conselheiro e as tropas do governo, em 1889; e O Sertão das Memórias (1996), de José Araújo, obra de ficção que adota um tom de memorial para apresentar vários aspectos do Nordeste.

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No que diz respeito às favelas, Cidade de Deus é, sem dúvida, um dos filmes mais polêmicos da Retomada, inclusive representando um ponto de discórdia entre os críticos, e será alvo de análise específica mais adiante. Uma representação mais romantizada da favela foi feita por Cacá Diegues em Orfeu, que se baseou em peça de teatro do poeta e compositor Vinícius de Moraes. Em 1959, ela já havia sido passada para as telas pelo cineasta francês Marcel Camus, sob título Orfeu Negro. Na obra de 1999, a favela é dominada pelos traficantes, mas não é um lugar de amarguras, como em Cidade de Deus. Pelo contrário. Lá as pessoas são felizes, cantam, dançam, mas um ponto é ressaltado na fala de algumas personagens: se pudessem, se mudariam para outro lugar. Como pano de fundo, o carnaval do Rio de Janeiro.

Outra questão que permite estabelecer um paralelo em relação aos outros filmes é a atuação da polícia. Em todos, ela é repressora. Em alguns, até certo ponto. Portanto, há uma

certa

ambiguidade. Em Uma Onda no Ar, ela é intransigente, incorruptível e repressora. Em Cidade de Deus, se estabelece uma relação de troca – ela não interfere no comércio de drogas se puder continuar vendendo armas para os chefes do tráfico.

Já em Orfeu há um vínculo de amizade entre as personagens principais, que pode ser quebrado a qualquer instante se a ordem não se estabelecer. Na trama de Orfeu, o personagem título, interpretado pelo músico Toni Garrido, é um compositor e cantor de talento. Mesmo tendo algum sucesso e podendo se mudar dali, ele continua na favela por opção, sendo questionado por todos pela escolha. Orfeu já teve várias namoradas, mas nunca se firmou com ninguém. É aí que em seu caminho surge Eurídice (Patrícia França), sobrinha renegada de uma moradora do local, que veio do Acre para viver com a tia depois que seus pais morreram. A partir daí, a trama se desenrola como um amor impossível, ou melhor, um amor que deveria ser proibido, mas se realiza repleto de tabus.

Paralelamente, há o traficante (interpretado por Murilo Benício), amigo de Orfeu e praticamente uma autoridade, que tem o poder sobre todas as questões da favela. Inclusive sobre a

morte. Num ponto do filme, um homem é acusado de se aproveitar de uma garotinha. O traficante e seu bando realizam um julgamento segundo suas próprias convicções, acabando por entender que o acusado é culpado, restando-lhe apenas a morte para se redimir do erro. A execução é em público, com todos à volta olhando.

Assim, Orfeu vai se desenrolando para um final trágico, mas sem heróis. A morte é tão intrínseca ao sistema da favela como o ciclo de sofrimento é em relação ao sertão. O mesmo acontece em Cidade de Deus e, em reduzidíssima escala, em Uma Onda no Ar. A morte de Eurídice e Orfeu, lado a lado, ao som de uma lamúria em ritmo de samba, compõe o final

melancólico.

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Se Cidade de Deus é a explosão da violência e Orfeu a favela romantizada, Uma Onda no Ar é a história da esperança. A realidade está contida na representação da favela, a narrativa é simples, mas eficiente, a história tem uma moral e, principalmente, uma direção, ao tomar partido pelos excluídos. Helvécio Ratton partiu de uma história real para fazer um registro pessoal da luta de moradores de uma favela de Belo Horizonte para ter uma rádio comunitária.

Lançada na mesma época de Cidade de Deus, a obra de Ratton não teve a mesma repercussão, mas é interessante como apresenta um contraponto em relação ao filme de Fernando Meirelles, no qual a favela é o pior lugar para se viver, repleto de assaltantes e traficantes. Uma Onda no Ar também apresenta a favela dominada pelo tráfico, mas a maioria das pessoas não está ligada a qualquer atividade ilícita. É o caso de Jorge (personagem de Alexandre Moreno), que estuda em escola particular – por ter conseguido uma bolsa, e por isso é alvo de racismo e discriminação – e sonha em criar uma rádio que fale dos problemas da favela.

Assim, ele se junta a mais três amigos – um rapaz que entende de eletrônica, outro que sonha em ser cantor e um terceiro que entra para o esquema do tráfico – e começa a pôr a idéia em prática. Jorge consegue realizar o sonho a muito custo e também não escapa da prisão. É de dentro da cela que ele conta toda a história da realização da Rádio Favela para os presidiários à sua volta. Durante a trajetória da rádio – que na vida real dura até hoje, por conta de um prêmio da ONU –, inúmeras batidas policiais (porque as ondas sonoras chegam até os bairros da zona metropolitana de BH), a morte de dois de seus companheiros e a falta de recursos poderiam ter

interrompido o sonho, mas, ao contrário, serviram de estímulo para Jorge prosseguir.

As palavras de ordem de Jorge o fazem parecer um “personagem do CPC, o Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes, que, nos anos 60, propunha uma arte de fácil assimilação popular, transformadora do ponto de vista social e exemplar em sua mensagem” (ORICCHIO, 2003, p. 155). Dessa forma, Uma Onda chegou, passou a sua mensagem e abriu novas portas para filmes simples na narrativa, mas de conteúdo.

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Dois documentários, ambos realizados por Eduardo Coutinho, fecham o ciclo de filmes que tematizam a favela. Santo Forte (1999) e Babilônia 2000, filmados na favela Vila Parque da Cidade e no morro da Babilônia, respectivamente, apresentam duas vertentes da vida nestas comunidades cariocas. Em Santos Forte, o tema é a religiosidade dos moradores. Babilônia 2000 é sobre a expectativa em relação ao novo milênio.

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