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À entrada da cidade: crítica como justa distância

1. A CIDADE COMO MEDIUM-DE-REFLEXÃO

1.6 À entrada da cidade: crítica como justa distância

Pensar é mais interessante que saber, mas não que observar.

Goethe197

O conceito de crítica que Benjamin intermitentemente reconstrói a cada obra, resguarda certos princípios fundamentais, descobertos desde sua leitura de Kant, sua tese sobre os românticos e seu ensaio sobre Goethe. Primeiramente, compreende a crítica em sentido kantiano, como investigação dos limites e condições de possibilidade de todo conhecimento; depois, em sentido fichteano, como estabelecimento dos limites da própria crítica, i.e., a crítica da crítica; e em sentido romântico, como potenciação e dissolução dos limites da obra. Ademais, reconhece na crítica a “tarefa infinita” que buscava desde o início, encontra nos românticos o desdobramento desta ideia e sua concepção mais contundente, e nas Afinidades eletivas abre caminho para a formulação de seu próprio conceito. Não obstante, o leitmotiv que atravessa todas as definições talvez seja essencialmente este: uma

crítica imanente. Pois seja a crítica da razão pura pela própria razão, seja a crítica de arte pelo

próprio objeto artístico, seja a crítica a exposição da verdade na obra, permanece o modelo reflexivo de que a obra contém a possibilidade da própria crítica. Simultaneamente, as variações de sentido são acompanhadas pelo rearranjo de conceitos correlatos, ou seja, o conceito de crítica defini-se historicamente em relação às variáveis “reflexão” e “sistema”. Ao retomar o trajeto neste momento, pretende-se destacar sumariamente quais características desses conceitos mantêm-se como sustentação teórica.

Primeiramente, em Kant, a reflexão consiste em uma dobradura do sujeito, um retorno sobre si, à medida que este, ao dirigir-se aos objetos a fim de procurar leis de conexão entre

197

fenômenos, descobre, através do juízo reflexionante, que o princípio articulador é meramente subjetivo. Em seguida, Fichte considera esta dobra reflexiva uma duplicação interna do Eu que se põe e opõe um não-Eu, e assim se limita e se compõe – reflexão é composição; e como princípio do pensamento, o pensar do pensar, o objeto do pensar é abstraído e torna-se o próprio pensar – reflexão é abstração. Para os românticos, porém, este princípio especulativo, a reflexão da reflexão, torna-se um processo ilimitado, de dobrar e desdobrar, de reflexão infinita, elevação e potenciação, em que não se distinguem mais sujeito e objeto; neste sentido, o refletir transforma, transfigura – reflexão é refração. Próximo a isto, mas em outro sentido, Goethe afirma a refração como distância entre o individual e o Ideal, entre a obra singular e o arquétipo (Urbild). Em todo caso, o conceito de reflexão pressupõe uma distância entre os pares reflexivos.

Ao passo que essas definições de reflexão caminham concomitantes ao conceito de crítica, o sistema, por seu turno, é paulatinamente afastado do desenvolvimento temático ao ponto de tornar-se insustentável. Se Kant pensou a unidade do sistema estruturada finalisticamente e se Fichte a compreendeu como unidade fundamental, se os românticos buscaram um sistema de fragmentos e se Goethe não cogitou algum, Benjamin chega enfim, em seu ensaio sobre este último, ao desmantelamento do sistema por sua hipertrofia. Subsequentemente, em Origem do drama barroco alemão, os sistemas filosóficos aparecem como frágeis estruturas, construções esboroadas, ruínas, mas que, apesar disso, diz Benjamin, “esses sistemas mantêm a sua validade enquanto esboços de uma descrição do mundo.”198

A partir de então, não cabe mais ao filósofo qualquer pretensão sistemática ou totalizadora, mas apenas encontrar em fenômenos singulares totalidades parciais. É, portanto, à recusa do sistema que a crítica, ao realizar-se na própria coisa, in media res, necessita recriar-se a cada vez, surgir e findar na coisa, pois não poderia, diante de objetos distintos, exercer-se

198

indiscriminadamente. Em outras palavras, o próprio objeto exige um reposicionamento do sujeito para que seja apreendido: trata-se de uma fidelidade ao objeto, i.e., de uma exigência objetiva de reformulação do conceito de crítica.

Assim que, em fins da década de vinte, Benjamin se volta a uma realidade que põe em questão a possibilidade mesma da crítica, qual seja: a cidade como lugar de reposicionamento teórico. Com a publicação de Rua de mão única (1928), a cidade passa a figurar como o texto a ser lido pelo crítico, quem diz: “a cidade tornou-se em minhas mãos um livro”199

. Diante deste texto, o filósofo vê-se lançado mais uma vez à tarefa de redefinir a crítica, de investigar seus limites e condições de possibilidade. No fragmento “Estas áreas são para alugar”, Benjamin fala do declínio da crítica em um mundo onde não é possível ter um distanciamento adequado das coisas.

Insensatos os que lamentam o declínio da crítica. Pois sua hora há muito tempo passou. Crítica é uma questão de justa distância. Ela está em casa em um mundo em que perspectivas e prospectos vêm ao caso e ainda é possível adotar um ponto de vista. As coisas nesse meio tempo caíram de maneira demasiado abrasante sobre o corpo da

sociedade humana. A “imparcialidade”, o “olhar livre” são mentiras, quando não são a

expressão totalmente ingênua de chã incompetência. Hoje o mais essencial, o olhar mercantil no coração das coisas, chama-se reclame. Ele desmantela o livre espaço de jogo da contemplação e desloca as coisas para tão perigosamente perto da nossa cara [...]. Com

isso, então, a “objetividade” é finalmente despedida [...]. – O que, afinal, torna o reclame

tão superior à crítica? Não aquilo que diz o letreiro luminoso vermelho – mas a poça de fogo que o espelha no asfalto.200

Ao invés de peremptoriamente afirmar o “fim da crítica”, Benjamin constata seu declínio e simultaneamente a necessidade de sua renovação. Paradoxalmente, a crítica se sustenta em sua decadência, se mantém em sua falência. Sua necessidade constante de reinvenção diz respeito à mudança dos objetos que interpelam o crítico acerca da sua posição, dado que seu lugar é uma perspectiva, um ponto de vista, e que não é possível um olhar “livre”, “objetivo”, “imparcial”. Se a crítica é uma questão de “justa distância”, o crítico deve se reposicionar a todo instante diante do mundo que se aferra ao corpo; pois, se não é possível tal

199 BENJAMIN. Rua de mão única. Trad. Rubens R. Torres Filho. São Paulo: Brasiliense, 1987, p.56.

[Doravante citado como RMU]

200

“imparcialidade” ou “objetividade”, ele tem de assumir sua posição desprivilegiada, ou melhor, sem privilégios, e tomar partido, uma posição “estratégica”: “O crítico é estrategista na batalha da literatura.”201

E como todo estratagema, os planos de movimento e posicionamento na disputa, neste caso, no campo da batalha literária, não são explicitados. Significa dizer que a crítica não pode ser direta, incisiva.

Na imagem que Benjamin compõe – o letreiro, a poça, o asfalto –, a relação entre crítica e propaganda não é imediata, mas mediada pela reflexão: o objeto mostra-se indiretamente – crítica é reflexão da reflexão. E como toda reflexão é uma refração, o objeto apresenta-se transfigurado, ou seja, o que é “lido” não é o letreiro, mas o seu reflexo refratário: uma “poça de fogo”. Pois a superfície refletora não é lisa e transparente, mas opaca e rugosa: o índice de refração equaciona transparência e opacidade da poça. Este índice é o que permite ao crítico saber a que distância as coisas se encontram, e a sua “justa distância”. Trocando em miúdos: a crítica não tem a ver com o que diz a propaganda, mas com aquilo que ela se torna na rua.202 Assim, reflete-se na poça não apenas a propaganda, mas também a rua, os transeuntes, os edifícios, os citadinos, enfim, a cidade. Portanto, a cidade como texto é o lugar da crítica, e a crítica como leitura é o desdobramento de sua reflexão; por fim, pode-se dizer: a cidade é o medium-de-reflexão histórico.203

Para melhor esclarecer esta definição, deve-se recordar o que foi trabalhado anteriormente na tese de Benjamin sobre os românticos, a saber: que a duplicidade de sentido da expressão “medium-de-reflexão” denota que tanto a reflexão é medium, o meio conectivo,

201

BENJAMIN. RMU, p.32.

202“Para o crítico que percorre a cidade, esse reclame anuncia uma ausência, um lugar vago, uma posição a ser

ocupada. De acordo com o texto de Benjamin, essa posição se configura na construção de uma imagem oposta – um reflexo – que possibilite uma nova maneira de ler o anúncio. Pela justaposição de anúncio e comentário, o texto de Benjamin fornece uma contraposição eficaz à propaganda, uma espécie de contra-imagem para uma

nova leitura da paisagem urbana.” GATTI, Luciano. “Walter Benjamin e o Surrealismo: escrita e iluminação profana”. Artefilosofia, N.6. Ouro Preto: IFAC, 2009, p.80.

203 Cf. BOLLE, Willi. “A metrópole como medium-de-reflexão”, in: SELIGMANN-SILVA, Márcio (org.).

quanto o medium é onde se move a reflexão.204 Enquanto mediatriz, o “medium-de-reflexão” significa que a reflexão não é objetiva nem subjetiva, mas medial. E se, por um lado, a crítica é o desdobramento da reflexão no próprio objeto, por outro lado, a crítica imanente refere-se ao lugar do crítico, ou seja, crítica da própria posição, pois o medium-de-reflexão, pensado como termo de junção e disjunção de sujeito e objeto, articula-os e situa-os em um dado momento, no tempo e no espaço, i.e., historicamente. A imanência da crítica significa, portanto, que o medium-de-reflexão é histórico, e enquanto absoluto (em sentido romântico), um absoluto histórico, tal qual prenunciara Benjamin em sua tese: “não se deve de modo algum negar que, em outros contextos, seria completamente concebível assinalar aquele absoluto, desde que se preserve apenas o seu caráter de medium-de-reflexão, numa das demais determinações – por exemplo, não na arte, mas eventualmente na história.”205

Nos termos da teoria do conhecimento primeiro romântica, o medium-de-reflexão indica a mediação entre conhecimento e autoconhecimento: todo conhecimento é autoconhecimento. Este princípio, como se pôde notar, também é válido para o perceber e o agir: toda percepção é um perceber-se percebendo, todo gesto um agir simultâneo de sujeito e objeto. Por conseguinte, ao atualizar este princípio no contexto urbano e compreender a cidade como medium-de-reflexão histórico, quer-se dizer que na cidade refletem-se o conhecimento, a percepção e os gestos de seus habitantes. Em outras palavras, a cidade como medium-de-reflexão é a conexão, a junção, o arranjo das formas de conhecer, perceber e agir de seus habitantes; vis-à-vis as formas de habitar a cidade refletem-se em sua configuração.

Antes, porém, de entrar definitivamente na cidade, para-se um instante à sua porta.

Rua de mão única é esta porta. Marca um ponto de inflexão, mudança de direção no

204 Cf. BENJAMIN. CCA, p.43, n.61.

205 BENJAMIN. CCA, p.50. Sobre a compreensão do absoluto como histórico, cf. BENJAMIN, Andrew. “Benjamin’s modernity”, in: FERRIS, David S. The Cambridge Companion to Walter Benjamin, p.102 et. seq.

pensamento de Benjamin. Limiar, lugar ambíguo, bifurcação.206 Não há sentido único em Rua

de mão única: este é o paradoxo, a ambiguidade que o livro, com seu título, anuncia. Este

limiar é porta. E esta imagem deve ser entendida no sentido filosófico que Georg Simmel lho atribuiu:

A porta representa de maneira decisiva como o separar e o ligar são apenas dois aspectos de um mesmo e único ato. O homem que primeiro erigiu uma porta ampliou, como o primeiro que construiu uma estrada, o poder especificamente humano ante a natureza, recortando da continuidade e infinitude do espaço uma parte e conformando-a numa determinada unidade segundo um sentido.207

Já à porta da cidade, para-se um instante, dá-se um passo atrás, para perguntar sobre sua “origem” – é disto que se vai cuidar agora. Este passo atrás visa a compreender a elaboração deste conceito em Origem do drama barroco alemão (escrito em 1925 e publicado no mesmo ano que Rua de mão única, 1928). Mas antes de dar este passo, deve-se aprender com Adorno a “como fechar uma porta de forma suave, cuidadosa, e completa.”208

206“O limiar [Schwelle] enquanto soleira (Türschwelle) pode tanto designar uma passagem quanto uma fronteira ou um obstáculo”, diz Roger Behrens, e complementa: “Uma soleira pode ser transposta por ambos os lados,

mas mesmo assim, a soleira tem algo de uma rua de mão única: uma vez transposta, parece que não há mais retorno. (Nesse sentido, a Rua de mão única, de Benjamin, é uma soleira.)”. BEHRENS, Roger. “Seres limiares, tempos limiares, espaços limiares”, in: OTTE, G. et. al. Limiares e passagens em Walter Benjamin, p.102.

207SIMMEL, Georg. “Brücke und Tür”, in: Der Tag, 15 de setembro de 1909. apud. ARGAN, G. História da

arte como história da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p.1

208 ADORNO, Theodor W. Minima Moralia. Trad. Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1991, p.30 [19. “Não bater