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Arquitetura de vidro: habitar sem vestígios?

3. FORMAS DE HABITAR

3.4 Arquitetura de vidro: habitar sem vestígios?

Em meados do século XIX, as galerias começam a ser postas por terra para dar lugar a largas avenidas e bulevares, pelas obras do prefeito Haussmann, que se autointitulava “artista demolidor”534

. Com isso, abriu novas e amplas perspectivas na cidade, visando, como diziam seus contemporâneos, a um “embelezamento estratégico”535

, i.e., com o intuito de evitar revoltas, como a Comuna536, e facilitar a operação do exército. Nessa época, “Paris vive o auge da especulação. [...] O aumento dos aluguéis impele o proletariado para os subúrbios. Com isso, os bairros de Paris perdem sua fisionomia própria.” A incessante transformação “provoca nos parisienses estranhamento em relação à sua cidade. Nela não se sentem mais em casa. Começam a tomar consciência do caráter desumano da cidade grande.”537

A cidade se torna cada vez mais hostil, inóspita, inabitável. Contra o apagamento dos rastros na multidão, são implementadas medidas governamentais de controle e registro, dos indivíduos através de sua assinatura e fotografia, das residências através da numeração.538

A cidade, em geral em constante movimento, cai em torpor. Torna-se frágil como o vidro,

534 BENJAMIN. Passagens, p.49. 535 BENJAMIN. Passagens, p.50.

536 Durante a Comuna de Paris (1871), a estrutura até então medieval da cidade, formada por estreitas ruas de

paralelepípedo, possibilitou aos revolucionários erguer trincheiras e bloquear a passagem do exército.

537 BENJAMIN. Passagens, p.49.

538 A fotografia retém os rastros e os traços do indivíduo, que posteriormente deve ser fixado pelos gestos e pela fala na filmagem. Há uma “Multiplicação dos rastros devido ao aparato administrativo moderno.” BENJAMIN.

mas também transparente como o vidro em relação ao seu significado (“a forma de uma cidade / Muda mais rápido – ai de mim! – que o coração de um mortal!” [Baudelaire]). A estrutura de Paris é frágil; ela é toda rodeada de símbolos de fragilidade. [...] Em última análise, aquilo em que a modernidade mais se aproxima da antiguidade é nessa transitoriedade.539

Em sua incessante construção e destruição, a cidade se transforma em ruína.540 A cidade moderna se lança ao seu próprio aniquilamento, ao seu fim, ao seu esquecimento. “A modernidade deve estar sob o signo do suicídio”541. Faz o luto de si mesma. Com seu hábit

noir (veste preta), segue a procissão fatigada que não quer mais prosseguir. Representa a

história como “a eternidade de um luto que nem ressuscita o passado nem o sepulta.”542 Há nesse luto uma ambiguidade, uma dialética entre um momento negativo-destrutivo e outro afirmativo-construtivo, que engendra consequências decisivas na avaliação de Benjamin sobre a modernidade: pois talvez aí esteja contida a possibilidade de uma transformação histórica. “Em seus edifícios, quadros e narrativas a humanidade se prepara, se necessário, para sobreviver à cultura. E o que é mais importante: ela o faz rindo. Talvez esse riso tenha aqui e ali um som bárbaro. Perfeito.”543 No ensaio “Experiência e Pobreza” (1933), Benjamin vê

com bons olhos o fim da tradição, o fim da experiência, e saúda a arquitetura moderna com entusiasmo, ao contrário do ar nostálgico que muitos lhe imputam.

A imagem da cidade de vidro, frágil e transparente, é a realização plena da arquitetura de Le Corbusier, de Gropius e da Bauhaus.544 Benjamin vê nesta arquitetura o decisivo reconhecimento do apagamento dos rastros, a assunção da pobreza de experiência. Como diz Brecht em Manual para habitantes das cidades: “Apaguem os rastros!”. No contexto do poema brechtiano, a palavra de ordem insta os citadinos, especialmente os intelectuais

539 BENJAMIN. OE III, p.106.

540“A lei da cidade – a lei de Haussmann, o prefeito de Paris que quis redesenhar a face da sua cidade – é a da

constante destruição e construção. O fotógrafo Eugène Atget – cujas fotografias de Paris, nas quais a cidade surge desabitada [...] – documenta e testemunha com a sua ‘fotografia pura’ uma cidade que se transforma na

ruína de si mesma.” SELIGMANN-SILVA. “A catástrofe do cotidiano”. In: Mímesis e Expressão, p.368. 541 BENJAMIN. OE III, p.99.

542

COMAY, Rebecca. “O fim de partida de Benjamin”. In: BENJAMIN, Andrew; OSBORNE, Peter. (Orgs.). A filosofia de Walter Benjamin. Rio de Janeiro: Zahar, 1997, p.275.

543 BENJAMIN. GS II-1, p.219; “Experiência e Pobreza”, in: OE I, p.119.

544 Segundo Susan Buck-Morss, “Benjamin apoiava firmemente a nova arquitetura como a forma adequada

perseguidos pelo fascismo,545mas de modo geral todos que são continuamente “identificados” e “individualizados” pelos aparatos de controle estatais e familiares, a manterem-se na clandestinidade. O apagamento do rastro significa o apagamento da individualidade, da identidade do indivíduo, ou seja, o anonimato.546 É enquanto anônimo que o sujeito está inserido na multidão, na coletividade; e é justamente a história coletiva, não a do indivíduo, que interessa a Benjamin.547 A história contada através dos vestígios deixados na arquitetura urbana, portanto, não se restringe ao habitante dos estofados salões burgueses, mas diz respeito, sobretudo, aos habitantes da cidade grande.548

Em termos arquitetônicos, o apagamento dos rastros significa não apenas uma atitude revolucionária de determinados sujeitos, mas remete, antes, à própria construção do espaço, que insta a determinadas práticas. Assim, a atitude de apagar os rastros é ao mesmo tempo destrutiva e construtiva.

Aqui no aposento burguês a atitude oposta se tornou hábito. E reciprocamente, o intérieur obriga o habitante a adquirir a maior quantidade possível de hábitos, hábitos que se ajustam melhor a esse interior onde vive do que a ele próprio. [...] Isso foi eliminado por Sheerbart com seu vidro e pelo Bauhaus com seu aço: eles criaram espaços em que é difícil deixar rastros.549

A primeira diferença apontada diz respeito à relação com o espaço, i.e., à habitação e ao hábito: no intérieur, o espaço é saturado e em todos os cantos é impregnado pelos hábitos de seu habitante; ao passo que, na arquitetura de aço e vidro, o espaço é ajustável e móvel, de

545“O imperativo ‘apague os rastros’ seria um mandamento tanto para os ilegais quanto para os intelectuais opostos ao regime.” GATTI. “A experiência urbana nos comentários de Benjamin aos poemas de Brecht”, in:

Caderno CRH, Salvador, v. 24, n. 62, p. 263-272, Maio/Ago. 2011, p.266.

546“Tentar ainda deixar rastros seria, então, um gesto não só ingênuo e ilusório, mas também totalmente vão de resistência ao anonimato da sociedade capitalista moderna.” GAGNEBIN. Lembrar, Escrever, Esquecer. São

Paulo: Ed. 34, 2009, p.116.

547

Sobre a caracterização de Benjamin como colecionador, cf. RICE, Charles. “Walter Benjamin’s Interior

History”, in: BENJAMIN, Andrew (ed.). Walter Benjamin and History, p.177. E Benjamin como detetive que

investiga os rastros deixados na arquitetura da cidade, cf. GUNNING, Tom. “The Exterior as Intérieur:

Benjamin’s Optical Detective”. In: Boundary 2, Duke University Press, Volume 30, Number 1, Spring 2003. 548“Brecht teria sido o primeiro a situar o habitante urbano em primeiro plano. Até então, a lírica da grande

cidade teria feito abstração dessa espécie de morador. Mesmo em Baudelaire, o foco seria a transitoriedade de

Paris, e o parisiense só apareceria como portador do estigma dessa transitoriedade.” GATTI. “A experiência

urbana nos comentários de Benjamin aos poemas de Brecht”, p.266.

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modo que o hábito não seja tão fixado. A segunda diferença refere-se à própria matéria que constitui o espaço: em um, objetos de veludo, em outro, superfícies planas. “Não é por acaso que o vidro é um material tão duro e tão liso, no qual nada se fixa. É também um material frio e sóbrio.” Por ser transparente, o “vidro é em geral o inimigo do mistério.”550

Em espaços de ferro e vidro, torna-se quase impossível deixar ou reconhecer os rastros do habitante. Esse trecho de “Experiência e Pobreza” retoma uma nota das “Imagens de pensamento”, cujo título resume o problema: “Habitar sem vestígio [Spurlos wohnen]”551

. Isso poderia levar a crer que não é mais possível habitar, uma vez que “habitar significa deixar rastros”. Contudo, antes de afirmar sua extinção radical, deve-se atualizar este conceito.

Em uma “imagem de pensamento” anterior, Benjamin diz: “Esconder significa: deixar rastros. Porém, invisíveis. É a arte da prestidigitação. [...] Quanto mais livre estiver exposto a todos os olhares, tanto melhor.”552 Em seguida, faz referência ao conto “A carta roubada”, de

Edgar Allan Poe, e diz que algo pode ser escondido, vestígios podem ser deixados, sem que os percebam seus próprios habitantes, mesmo “os que moram entre paredes lisas como espelho, em móveis de aço, e que racionalizaram a existência.”553

Com isso, o próprio estatuto do rastro é posto em questão, pois assim como o apagamento corresponde à dissolução da individualidade, o rastro significa o abandono de um lugar e o esquecimento de uma marca, i.e., a ausência do indivíduo. “Rigorosamente falando, rastros não são criados – como o são outros signos culturais e linguísticos –, mas, sim, deixados ou esquecidos.”554 Pode-se dizer que não há um apagamento total e definitivo dos rastros, mas que os rastros se tornaram mais transitórios, fugidios, invisíveis. Assim, pode-se redefinir: habitar significa deixar rastros,

porém, invisíveis.

550

BENJAMIN. GS II-1, p.217; “Experiência e Pobreza”, in: OE I, p.117.

551 BENJAMIN. GS IV-1, p.427-8; RMU, p.266. 552 BENJAMIN. GS IV-1, p.398; RMU, p.237. 553 BENJAMIN. GS IV-1, p.400; RMU, p.239.