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À GUISA DE CONCLUSÃO E CONEXÕES ENTRE BENS CULTURAIS

2 TRAJETÓRIA DO MONUMENTO DA FONTE LUMINOSA DOS ORIXÁS

2.3 À GUISA DE CONCLUSÃO E CONEXÕES ENTRE BENS CULTURAIS

Vimos nos tópicos anteriores como o monumento da Fonte Luminosa dos Orixás do Dique fez parte do processo de consolidação, na década de 1990, da Bahia Afro, construção intelectual da década de 1940 que foi retomada pelo Governo do Estado entre as décadas de 1970 e 1990.Vimos que Jorge Amado soube bem lançar as linhas mestras desse imaginário de “baianidade” comum a artistas como Mário Cravo Jr. e que ainda é explorado por Tatti Moreno.

Pudemos notar que as esculturas de Moreno se inserem numa trajetória de arte afro- brasileira, ligada ao movimento monumentalista na Bahia, que efetivamente legou ao espaço público de variadas cidades brasileiras obras de arte afro-brasileira. Sem dúvida, esse aspecto da visibilidade pública forneceu especificidade a esse tipo de arte, o que permitiu que as esculturas dos orixás fossem inscritas num movimento político institucional que tanto viabilizou processo de patrimonialização como ataques e críticas.

Como forma de concluir este capítulo, iremos fazer conectar as experiências, que vimos referidas no monumento dos orixás do Dique, a partir do exemplo de outros bens culturais afro-brasileiros. De início, pontuaremos o trajeto de ataque, censura artística e também religiosa à produção artística afro-brasileira. E, finalmente, faremos o registro do processo de patrimonialização destes bens culturais e as repercussões recíprocas deste fato ao processo de emergência do público e seus problemas.

O artigo As Bellas Artes dos Colonos Pretos que Nina Rodrigues publicado em 1904 constituiu feito pioneiro para os estudos das artes afro-brasileiras, até mesmo na opção que fez pelo uso do termo “arte”, ao invés de “cultura material” afro-brasileira. Neste artigo Rodrigues apresenta na introdução fotografia de oito esculturas relacionadas a orixás, que, esse ponto aqui nos interessa, provavelmente foram apreendidas pela polícia das primeiras décadas da República. Num período marcado por ataques e censuras aos terreiros, esculturas como aquelas comentadas por Rodrigues foram visibilizadas em contextos de acervo viabilizado pelas repressões policiais, conforme atestado por Arthur Valle, no texto Arte sacra afro-brasileira na imprensa: alguns registros pioneiros, 1904- 1932 (2018), a partir do que foi publicado em jornais e revistas. Enquadrados pelo Código Penal de 1890, tais peças dos cultos afro-brasileiros foram apreendidas em batidas policiais.

De acordo com Lody (2005), a repressão foi o principal vetor da formação de acervos museológicos. Nossa intenção é situar este quadro histórico e controverso de ataques do Estado aos terreiros que propiciou a reunião de peças posteriormente reconhecidas com valor patrimonial por instituições estadas criadas especialmente para proteção dentre outras coisas da Arte Afro-Brasileira.

Voltando à classificação proposta por Munanga o conjunto de obras atacadas por esse regime de repressão está situado na zona central à vida ritual nos Terreiros. Algumas dessas obras foram destruídas, outras passaram a figurar em coleções públicas e privadas. É possível dizer que quando as obras de arte afro-brasileiras situadas em zonas intermediárias e periféricas ao mundo ritualístico se expandiram ao longo do século XX lograram reconhecimento e prestígio.

Como ficará mais claro no próximo capítulo, o avanço da crítica iconoclasta e generalista a todo o complexo da Arte Afro-Brasileira impôs um quadro problemático de ataques a religiosos e artistas afro-brasileiros. Sansi (2005) traz como exemplo três artistas vitimados por esta crítica: Bel Borba, Juarez Paraiso, Mário Cravo Jr. e o próprio Tatti Moreno.

O mosaico em concreto representando Yemanjá como sereia confeccionado pelo artista Bel Borba foi destruído pela Igreja Universal. O mosaico havia sido feito na parede de um antigo cinema no bairro do Rio Vermelho, em Salvador. Quando a Universal comprou o prédio, o primeiro ato foi a destruição da obra. Noutro exemplo, da compra pela Igreja Renascer de um prédio no centro da cidade, local outrora também de cinema que recepcionava pinturas e esculturas de Juarez Paraiso foram destruídos. Foram escritos nas pinturas murais dizeres tais como “nada Satanás”, “Deus é fiel” e “resista ao Diabo até ele fugir”, e depois foram destruídas. O responsável pela Igreja justificou o ato argumentando que não sabia que se tratava de uma obra de arte e que pertencendo à Igreja poderiam fazer o que bem entendessem no prédio. Juarez Paraíso lamentando solicitou tombamento de todos muralistas e monumentos da Bahia. Mário Cravo Jr apresentou projeto de escultura do orixá Exu a ser instalada num espaço público do Rio de Janeiro, comissionado pela Prefeitura do Rio. Com a pressão das igrejas neopentecostais esse projeto não foi realizado.

A seguir, destacaremos como o desenlace deste problema está relacionado às proposições políticas acerca do patrimônio afro-brasileiro.

Se no primeiro capítulo apresentamos o processo de patrimonialização das áreas verdes e de águas da cidade – e a atual incorporação de ideias e interesses das religiões afro-brasileira–, neste segundo capítulo exploraremos mais desse processo de patrimonialização quanto os itinerários da Arte Afro-Brasileira. Vimos que o desdobramento do conceito de "patrimônio" em material e imaterial possibilitou uma série de ganhos às religiões de matrizes africanas, a exemplo do tombamento do Terreiro da Casa Branca na década de 1980. Esse tombamento foi importante para que fosse produzido um entendimento jurídico sensível ao argumento que valoriza os chamados lugares de memória ancestral dos cultos afro-brasileiros.

Cabe agora investigar este processo de patrimonialização no que tange os monumentos artísticos. Nisso é fundamental acompanhar a transformação da categoria "patrimônio”, da década de 1930 quando a noção estava restrita a algumas noções básicas até a atualidade com as separações entre patrimônio material e o patrimônio imaterial.

O dispositivo do “patrimônio histórico e artístico nacional” surgiu no Brasil a partir do Decreto Lei n. 25, de 30 de novembro de 1937, na vigência do Estado Novo de Getúlio Vargas. Constituído como marco legal para o registro de bens móveis e imóveis “cuja conservação seja de interesse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu exponencial valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico”. (ARTIGO 1º DO DECRETO LEI N. 25/1937)

Criada essa demanda de conservação, logo em 1938, é instituído o Serviço de Patrimônio Histórico e Nacional (SPHAN), atual IPHAN, cuja atribuição é definir o valor cultural de determinados bens para então protege-los. Neste período vê-se limitação no conceito de patrimônio utilizado, àquele de propriedade “de pedra e cal”, que pouco dizia respeito às manifestações afro-brasileiras.

De acordo com Fonseca, a partir dos anos 70 houve uma mudança sensível nas políticas de preservação que passaram a pontuar não somente aspectos materiais, mas aspectos relativos à cidadania política, aos direitos de identidades coletivas.

“A via da cultura passou a constituir, nos anos 70 e 80, um caminho privilegiado para a elaboração de novas identidades coletivas e um instrumento fundamental para os grupos sociais que as constroem, e que, muito frequentemente, contestam a legitimidade dos ‘patrimônios históricos e artísticos nacionais’.

Essa nova orientação foi buscar apoio na antropologia”. (FONSECA, 1997: 195)

Com tudo isso, em 2016, o processo de tombamento do monumento da Fonte Luminosa dos Orixás do Dique foi aberto pela Fundação Gregório de Matos (Nº SNIIC: ES-11678), que de fato lhe concedeu título de “patrimônio material da Bahia”.

3 ITINERÁRIOS DO CONFLITO DOS “ORIXÁS” DO

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