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"Orixás do Dique": estudo sobre religião e espaço público em Salvador-Bahia

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Academic year: 2021

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ALEXANDRE SAN GOES

“ORIXÁS DO DIQUE”:

ESTUDO SOBRE RELIGIÃO E ESPAÇO PÚBLICO EM

SALVADOR-BAHIA

SALVADOR, BA ABRIL DE 2019

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

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“ORIXÁS DO DIQUE”:

ESTUDO SOBRE RELIGIÃO E ESPAÇO PÚBLICO EM

SALVADOR-BAHIA

Dissertação de mestrado apresentado ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial à obtenção do grau de MESTRE em Ciências Sociais.

ORIENTADORA: Prof.ª. Dr. ª. MIRIAM RABELO

SALVADOR, BA ABRIL DE 2019

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San Goes, Alexandre.

“Orixás do Dique”: estudo sobre religião e espaço público em Salvador-Bahia / Alexandre San Goes. – 2019.

160f. il.

Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFBA, Salvador, 2019.

Orientadora: Profa. Dra Miriam Rabelo

1. Orixás 2. Dique do Tororó. 3. Público I. Rabelo, Miriam. II. Universidade Federal da Bahia. III. Título.

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A G R A D E C I M E N T O S

Para Miriam Rabelo, minha orientadora, faço aceno a um prolongado agradecimento. Sem a paciência de Miriam, seu olhar atento, afiado e exigente certamente não teria tido animo e estímulo, tampouco continuado nesta carreira de cientista social que uma vez desejei seguir ao ver a primeira das muitas aulas dela. Para Clara Lourido, agradeço amabilidade que sempre me emociona e pelo parecer de qualificação de mestrado, que me acompanhou como manuscrito por muito tempo, fonte que eu sempre recorria para organizar as possibilidades do meu pensamento, do meu rumo, da minha ruminação em interação com as dela. Para Eunice Borges, agradeço todas as conversas sobre a pesquisa e sobre a vida, sua doçura e calma me trouxe tranquilidade para seguir adiante, sua amizade é coisa rara que tenho sorte em tê-la. Para Helayna Soares, agradeço a possibilidade de ter na família um ponto de apoio inestimável. Para Maria Palacios, agradeço pelo acolhimento como colega, amigo e vizinho nas muitas conversas que travamos. Para Artem Kild, agradeço imensamente por partilhar dos momentos mais difíceis aos com maior entusiasmo; por fazer do meu cotidiano mais bonito. Para Eraldo Góes, meu pai, agradeço por todo amor que dedicamos à nossa relação; finalizar este trabalho com a sua presença foi o meu melhor presente. No geral para outros tantos que participaram do longo caminho de dúvidas e reflexões que me permitiram entregar o presente trabalho.

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“A curva que descreve a atividade de pensar deve permanecer ligada ao acontecimento como o círculo permanece ligado ao seu centro”.

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RESUMO

O presente trabalho tem por finalidade apresentar o caso relativo aos “Orixás do Dique”. Trata-se de um caso emblemático cujo foco é o Dique do Tororó, espaço público da cidade de Salvador, onde estão instaladas desde 1998 esculturas nomeadas de orixás confeccionadas pelo artista Tatti Moreno em parceria com o Governo da Bahia. Para executar esta tarefa foi necessário recuperar os registros históricos que indicam sua condição de território negro historicamente constituído e utilizado pelos cultos afro-brasileiros. Foi necessário também recuperar a chamada "Bahia afro", isto é, o circuito intelectual, artístico e político de exaltação de alguns elementos afro-brasileiros impressos na cultura baiana e codificados numa linguagem propícia ao turismo e ao entretenimento. Igualmente necessário foi ter explorado o conflito religioso que se procedeu a partir da crítica evangélica encaminhada em âmbito legislativo contra as esculturas. Pondo ênfase na dimensão dos problemas que o caso evoca (tais como a dessacralização espacial, a folclorização dos símbolos afro-religiosos e a censura artística por “intolerância religiosa”), apresentamos resultados que indicam um público afro-religioso, cujo desafio maior é se aglutinar politicamente para determinar os rumos dos problemas que então o aflige.

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ABSTRACT

The purpose of this paper is to present the case related to the "Orixás do Dique". This is an emblematic case which focuses on Dique do Tororó, a public space in the city of Salvador, where since 1998 the sculptures named orixás made by artist Tatti Moreno have been installed in partnership with the Government of Bahia. In order to perform this task, it was necessary to recover the historical records that indicate its status as a black territory historically constituted and used by the Afro-Brazilian cults. It was also necessary to recover the so-called "Bahia afro", that is, the intellectual, artistic and political circuit of exaltation of some Afro-Brazilian elements printed in the Bahian culture and encoded in a language favorable to tourism and entertainment. It was also necessary to explore the religious conflict that proceeded from the evangelical criticism sent to the legislative council against the sculptures. Emphasizing the scale of the problems that the case evokes (such as spatial desacralization, the folklorization of Afro-religious symbols and artistic censorship for "Afro-religious intolerance"), we present results that suggest an afro-religious audience whose political agglutination to determine the course of the problems that afflict it.

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S U M Á R I O

INTRODUÇÃO...10

1 BIOGRAFIA ESPACIAL DO DIQUE DO TORORÓ...19

1.1 MEMÓRIAS DO DIQUE: A PAISAGEM URBANA EM PROCESSO ...24

1.2 A BACIA DE OXUM: O PROCESSO RELIGIOSO NA PAISAGEM ...44

1.3 À GUISA DE CONCLUSÃO E CONEXÕES ENTRE ESPAÇOS PÚBLICOS SAGRADOS ...61

2 TRAJETÓRIA DO MONUMENTO DA FONTE LUMINOSA DOS ORIXÁS ...68

2.1 O PROCESSO POLÍTICO DAS ESCULTURAS ... 71

2.2 O PROCESSO ARTÍSTICO DAS ESCULTURAS ... 80

2.3 À GUISA DE CONCLUSÃO E CONEXÕES ENTRE BENS CULTURAIS AFRO-BRASILEIROS... 104

3 ITINERÁRIOS DO CONFLITO DOS “ORIXÁS” DO DIQUE...108

3.1 A POLÍTICA REATIVA DOS EVANGÉLICOS... 110

3.2 RESPOSTAS DO POVO DE SANTO ... 129

3.3 À GUISA DE CONCLUSÃO E CONEXÕES ENTRE CONFLITOS RELIGIOSOS LEGISLATIVOS ... 147 CONSIDERAÇÕES FINAIS...151 REFERÊNCIAS...155

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INTRODUÇÃO

O Dique do Tororó é um logradouro público de Salvador-Bahia, notadamente singular dentre o panorama de paisagens urbanas desta cidade. Com águas que se avolumam em 110 mil metros cúbicos, numa área de 25 mil metros quadrados, este Dique tem em suas contiguidades algumas dezenas de árvores seculares, apenas remanescentes de um tempo no qual predominavam na paisagem, em distintos tons de verde. O Dique atual é expressão tanto a expansão dos bairros que o limitam, como do movimento das avenidas que lhe permitem conectar diferentes partes da cidade. Delimitado pelos bairros: do Tororó, em sua margem esquerda, e do Engenho Velho de Brotas, em sua margem direita; ao Sul, pelo bairro do Garcia, em proximidade ao da Federação; e, ao Norte, pelo principal estádio de futebol da cidade. Constitui, naturalmente, um local propício a diferentes usos e interações, a exemplo da que se apresenta a seguir.

SEXTA-FEIRA, 16 DE NOVEMBRO DE 2018

De madrugada, um pequeno grupo de pessoas, as quais predominavam no uso de roupas brancas, avança em procissão pelas margens do Dique. A esse passo, as árvores são amarradas a tecidos brancos, denominados “ojás”, por que sacralizados em rituais pertinentes aos cultos afro-brasileiros.

O evento, intitulado “Alvorada dos Ojás”, então em décima segunda edição, ocorre anualmente integrado ao calendário do Novembro Negro, um programa de atividades em que diferentes entidades se engajam na luta contra o racismo e intolerâncias. Organizado pelo Coletivo de Entidades Negras (CEN), com o apoio institucional da Secretaria de Promoção da Igualdade Racial do Estado da Bahia.

O coordenador nacional do CEN, Marcos Resende, comenta que: “as pessoas, às vezes, não entendem porque veem um tecido tão bonito, tão bem cuidado, colocados nas árvores... E depois amanhã vão levar tudo, dar fim no tecido... É isso que a gente quer, nós queremos que a árvore seja tratada com dignidade, por que o ambiente é de onde vem a energia que a gente precisa para respirar, de onde vem a vida.... Por que sem as folhas nós não temos vida, não temos orixá. Então, as árvores representam ancestralidade, estar fincado à terra, olhando o futuro sabendo em que local está no mundo. Por mais que as pessoas às vezes não entendam o cuidado, o zelo, a delicadeza de se fazer um evento como esse, de se cuidar das árvore, de passar a madrugada inteira colocando os ojás nas árvores... na verdade o que a gente tá fazendo com isso é dizendo para as árvores e para nossos ancestrais: nós te amamos, nós te respeitamos, o que nós

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estamos fazendo aqui é um gesto de amor e por isso nós viemos assim arrumados, nós tomamos um banho de amaci, nós fizemos uma obrigação antes de chegar aqui para dizer justamente para essas árvores da cidade de Salvador: nós te amamos, independente de que religião seja, independente do comportamento que vocês tem com relação a religião de matriz africana... O que nós estamos dizendo é que toda e qualquer religião deve aprender a amar. E fazer atos simbólicos... que quando a cidade acorde ou quando as pessoas da cidade percebam entendam que isso é para trazer mais paz, trazer mais tranquilidade, é para fazer com que as pessoas de desacelerem e façam uma reflexão esse branco, essa beleza do pano das árvores…”.

Um outro dos presentes explica a importância dos ojás: “é o que segura o ori, é o alá de oxalá”, fazendo compreender que amarrá-los às árvores propicia que espere por alvorecer auspicioso à cidade, logo a acordar. (EXTRAÍDO DO CADERNO DE CAMPO DO AUTOR)

Caminhar por vias públicas tem sido emblema de variados movimentos reivindicatórios contemporâneos em todo o mundo 1, alguns dos quais participam da luta por direitos. 2 É preciso reconhecer igualmente que estas caminhadas são também motivadas pela busca da exposição pública, pois a urbis é ainda o local primordial de captura da atenção público ao que está justamente a ocorrer. 3 Assim, a Alvorada dos Ojás pode ser interpretada: como ocorrência de caminhada na qual religiosos afro-brasileiros se expressam no espaço público, conforme termos próprios às religiões de matrizes africana. Devido ao papel histórico das diferentes religiões no espaço público soteropolitano, torna-se relevante questionamento sobre o espaço e o público atualmente marcados por conflitos que, de algum modo, envolvem os cultos afro-brasileiros. 4

1 A exemplo da caminhada de imigrantes mulçumanos na cidade de Luton (interior da Inglaterra), com os gritos de protestos “vá para o inferno o Reino Unido e a polícia britânica...”. O caso europeu de conflito com os imigrantes é, ainda mais, abrangente: quer entre Alemanha e países do leste europeu; quer entre França e países do continente africano.

2 A Parada do Orgulho Gay e a Marcha da Maconha são exemplos notáveis. O primeiro constitui caso dos mais destacados de eventos ao ar livre que agora expõem publicamente o que outrora se restringia aos limites dos guetos. A roupagem de divertimento traz visibilidade positiva aos movimentos LGBT’s, mas também estimula redes de turismo e entretenimento que se beneficiam diretamente ou indiretamente destas Paradas. Por sua vez, a Marcha da Maconha se aplica ao movimento de pressão, com fins claros para influenciar o debate público por mudanças na legislação, visando alterar a regulamentação do comércio e do uso da substância cannabis.

3 O que está a ocorrer... no Brasil contemporâneo, sem dúvidas, é a crescente proliferação de igrejas evangélicas neopentecostais, que salienta o crescimento de eventos como a Marcha para Jesus, cultos empreendidos em locais públicos.

4 A presença pública afro-religiosa em Salvador se expressa em múltiplos âmbitos, da participação crucial nas festas populares da cidade à sua toponímia formal e informal. Esta particularidade religiosa local está conectada ao fato de a história da formação social baiana ter recebido larga contribuição das religiões

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afro-Definindo o objeto das investigações: o caso dos “Orixás do Dique”

Às nossas investigações preliminares sobre religião e espaço público em Salvador, o caso dos “Orixás do Dique” surgiu preliminarmente como controvérsia religiosa instalada na Câmara Municipal de Salvador em 1998, quando vereadores evangélicos passaram a criticar as doze esculturas modeladas pelo artista plástico Tatti Moreno, e que desde então passaram a figurar na paisagem do Dique do Tororó. A referência escultórica é evidente: aos orixás, os deuses das religiões afro-brasileiras. Dentro das águas, estão representados Oxalá, Xangô, Oxum, Iansã, Ogum, Iemanjá, Nana e Logun-Edé. Em terra estão as esculturas de Oxossi, Eua, Oxumaré e Ossain. A controvérsia, no entanto, extrapolou o domínio da mera crítica religiosa. Pois as esculturas haviam sido encomendas pelo establishment político da época, de modo que a contestação evangélica foi logo percebida como escândalo público de “intolerância religiosa”.

E então algumas questões nos pareceram legítimas: como o Dique se constituiu como espaço público para os soteropolitanos? Qual a história e quais as diferentes formas de ocupação desse espaço? Qual a relação dos cultos afro-brasileiros com o Dique e com as estátuas de Tati Moreno? Qual projeto espacial deu sustentação à construção das estátuas e como foi recebido pelos diferentes segmentos religiosos? Assim, poderíamos compreender o motivo do desagravo evangélico, bem como a reação por parte das elites políticas e intelectuais.

É claro que partíamos de uma avaliação retrospectiva sobre o conflito religioso, já que do auge do escândalo já haviam se passado quase vinte anos. Talvez por isso fomos levados a notar a importância histórica do caso na trajetória do fenômeno da “intolerância religiosa” no Brasil contemporâneo, sobretudo quanto aos seus desdobramentos institucionais – no legislativo municipal, mas também em outras agências estatais.

Assim, nossa investigação exploratória se concentrou nos detalhes midiáticos do caso, temporalmente quase que limitados a 1998, mas também atenta aos desdobramentos institucionais ainda vigentes. Como exemplo da proposta aprovada em 2015 pelos vereadores da cidade indicando a instalação de uma bíblia gigante no Dique ao lado das esculturas dos orixás, sob argumento de que se estaria incentivando o pluralismo religioso. Ou o exemplo da recomendação conjunta expedida pela Procuradoria Regional

brasileiras. Embora tenham sido marginalizadas, por inicialmente remeterem ao cotidiano de negros escravizados, conquanto aspectos dessa religiosidade passaram a ser progressivamente valorados socialmente, os cultos afro-brasileiros obtiveram relativo prestígio – ainda que se tenha permanecido a condição de negativamente privilegiados da maior parte dos seus aderentes.

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Eleitoral na Bahia e pelo Ministério Público do Estado da Bahia, em 2016, visando eliminar das ruas toda propaganda eleitoral que atentasse contra a liberdade de crença religiosa ou propagasse a intolerância, ódio ou preconceito contra quaisquer religiões, em especial as de matrizes africanas; em referência ao ocorrido em 2014, quando um candidato a deputado federal baseou toda a sua campanha na proposta de retirar tais esculturas do Dique.

Sem dúvida, é uma realidade mundial o fato de escândalos públicos serem motivados por conflitos religiosos de alta intensidade. 5 O caso brasileiro tais conflitos têm avançado muito em função da expansão de um tipo específico de protestantismo chamado por alguns autores de neopentecostalismo, que estimula o confronto à outras religiões como o catolicismo e as religiões de matrizes africanas. Em termos históricos, o caso do “Chute da Santa” foi o primeiro caso a repercutir como escândalo público esse conflito iniciado por religiosos do chamado neopentecostalismo. O caso do “Chute da Santa ocorreu em 1995, quando uma liderança da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) desferiu golpes contra a imagem da Nossa Senhora Aparecida, num programa de televisão em dia dedicado a esta entidade do catolicismo, que é considerada padroeira do Brasil e por isso motivo do feriado nacional. A imprensa noticiou o fato por diversas semanas, e logo então formou-se uma opinião pública crítica ao ato do bispo. Tão estrondosa foi a repercussão que a IURD teve que publicamente reconsiderar a posição do seu bispo, afastando-o do cargo.

Embora não possa ser equiparado ao caso do “Chute da Santa”, o caso dos “Orixás do Dique” teve também alguma abrangência nacional, igualmente foi noticiado pelos principais jornais do país, não obstante exposto como peculiaridade da Bahia. Avaliando por contraste os casos do “Chute da Santa” e dos “Orixás do Dique”, mesmo que tenha sido muito mais escandaloso em função do ataque estar direcionado ao catolicismo, as

5 Em cidades tão distintas como são Paris (França), Rio de Janeiro (Brasil) e Baga (Nigéria) por exemplo. Os ataques ocorridos na sede do jornal francês Charlie Hebdo pela organização paramilitar islâmica, as agressões a adeptos do candomblé em favelas do Rio de Janeiro dominadas por “traficantes evangélicos”, os ataques a cristãos promovidos em Baga pelo Boko Haram, todos esses três casos, mesmo que muito diferentes, compartilham, para além da definição de situação de “intolerância religiosa”, o fato de terem sido escândalos públicos. Na França, a sede do jornal Charlie Hebdo, acusado de veicular expressão xenófoba e racista em publicações que retratavam Maomé, foi vítima de ataque terrorista que vitimou dezenas de pessoas. A “intolerância religiosa” foi compreendida, por um lado, como praticada por religiosos islâmicos, em revanche à laicidade francesa, por outro lado, como praticada por laicos franceses, cuja princípio de expressão pública é explicitamente antirreligiosa. O debate da liberdade de expressão é aqui estruturador, e de fato orienta a discussão. O polo de conflito está entre laicos e religiosos islâmicos. Noutro turno está o caso da Nigéria e do Brasil, que apresentam uma situação a qual os polos de conflito é são religiosos. No caso do atentado em Baga, foram atentados comandados por um grupo radical islâmico, tendo cristãos como vítimas. O caso do Rio de Janeiro é exemplar para os conflitos acontecidos em todo o Brasil, onde evangélicos neopentecostais aparecem sempre como agressores, tendo como vítimas adeptos afro-brasileiros do Candomblé e da Umbanda.

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repercussões do primeiro caso não se mostrou tão duradouras quanto as do segundo. Embora ambos tenham ido parar no sistema judicial, consideramos que o caso dos “Orixás do Dique” foi o único a ser mais do que mero escândalo público. Mesmo tendo se tornado uma referência história do conflito, o “Chute da Santa” não evoluiu paralelo ao desenlace da “intolerância religiosa” como problema público. Com os “Orixás do Dique” foi diferente, pois até muito recentemente a tentativa de censura artística conduzida por políticos evangélicos se mantem atualizada nos espaços legislativos onde atuam.

Neste sentido, percebemos que o caso dos “Orixás do Dique” já não era meramente um fato escandaloso, mera pauta jornalística, mas problema público que envolveu diversos atores e agências estatais. Nestes últimos vinte anos de exposição permanente das esculturas, se proliferaram inúmeros instrumentos formais para o combate à “intolerância religiosa”, de modo que há esforços de um público afro-religioso e de instituições governamentais e do sistema judicial para responder a esse engajamento evangélico na política baiana.

Assim, fomos levados a explorar a “intolerância religiosa” como um problema, que diz respeito a um público formado por uma comunidade de seres afetados pelo conflito e dispostos a agir e alterar os rumos dos acontecimentos. Neste itinerário de investigação passamos a buscar compreensão sobre as transações que configuram este Dique como espaço público da cidade, destacando os processos religiosos iniciados pelos cultos afro-brasileiros, bem como compreender as consequências dos monumentos escultóricos inspirados nos orixás do Dique por meio da caracterização das condições do aparecimento, defesa e crítica.

Mais do que um registro histórico, que investiga somente o processo de controvérsia no qual as esculturas instaladas no ano de 1998, a presente discussão busca defender que o caso do “Orixás do Dique” é paradigmático em razão da importância do local para os cultos afro-brasileiros e em consequência para o conflito religioso instaurado por evangélicos e que se desenrola no seio de instituições estatais.

Definindo os aspectos teóricos-metodológicos da pesquisa

Segundo o dicionário Aurélio, o termo “público”, cuja raiz semântica está na palavra em latim publicu, é relativo, pertencente ou destinado ao povo, à coletividade, ou ao governo de um país. Na sequência numérica deste verbete são apontadas outras acepções: tudo que é do uso de todos, ou que está aberto a quaisquer pessoas; tudo que é

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do conhecimento de todos, ou apenas o que não é manifestadamente secreto; todos a quem uma mensagem artística, jornalística, publicitária, etc. possa ter destino.

Consideramos necessário apresentar como concebemos espaço público, já que se trata de um conceito tanto fundamental às ciências sociais como também frequentemente pensado em termos genéricos e não problemáticos. A depender das teorizações, espaço público pode remeter a ideias bem distintas. É possível sinalizar duas ideias fundamentais recorrentes: a ideia de livre expressão, no que se compreende o espaço de comunicação; e a ideia de “cena pública”, no que se compreende o espaço para visibilidades. A primeira sugere uma abordagem do espaço público como espaço de comunicação, de troca racional de argumentos – consideramos J. Habermas como o grande expoente desta posição. A segunda sugere uma abordagem atenta à “cena pública” mesma, ou seja, ao que aparece digno da atenção de espectadores prontos a fazer um juízo de apreciação – consideramos Hannah Arendt como principal expoente dessa linha. Não será possível confrontar estas diferentes abordagens, para explicitar que nossa predileção é pela associação do espaço público como “cena de aparecimento” de um público orientados por “juízos de gosto”. Para dar conta dessa questão nos aproximamos da discussão de John Dewey que vinculou o público a situações problemas de um modo inovador.

Considerando o estoque de conceituações sobre “o público” na filosofia e nas ciências sociais, as do filósofo pragmatista John Dewey merecem ser destacadas porque Dewey está atento ao que nos parece crucial: ao papel prático dos conceitos filosóficos. Não somente porque podem auxiliar o rumo a um futuro ideal e inexistente, mas porque permitem apontar solvências a problemas estritamente factuais. Dewey faz questão de lembrar que no ofício de descrever o mundo, um conceito além de expressar determinadas ideias, como enfatizam os teóricos normativos, pode atuar como ferramenta resolutamente prática.

Foi John Dewey (1952) quem observou que faz parte da natureza de qualquer experiência dois aspectos que, combinados, a encerram: um elemento ativo que é tentativa, outro passivo que é sofrimento. Para Dewey, quando experimentamos alguma coisa passamos por alguma coisa, isto é, agimos sobre ela; do mesmo modo que esse objeto da experiência, em seguida, nos faz alguma coisa em troca. De acordo com este autor, a conexão entre estas duas fases da experiência é justamente o que lhe confere valor. A experiência não pode ser entendida como mera atividade, pois:

“a mudança será uma transição sem significação se não se relacionar conscientemente com a onda de retorno das consequências que dela defluam. Quando uma atividade

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continua pelas consequências que dela decorrem a dentro, quando a mudança feita pela ação se reflete em uma mudança operada em nós, esse fluxo e refluxo são repassados de significação. Aprendemos alguma coisa. Não existe experiência quando uma criança simplesmente põe o dedo no fogo; será experiência quando o movimento se associa com a dor que ela sofre, em consequência daquele ato. De então por diante o fato de se pôr o dedo no fogo significa uma queimadura. Ser queimado será apenas uma simples modificação física, como o queimar-se um pedaço de lenha, se não for percebido como consequência de uma outra ação”. (DEWEY: 1952: 192) Como consequência, a experiência é então sempre experiência de determinadas coisas interagindo. Com este conceito de experiência, Dewey recupera um sentido da experiência que remete sempre às relações de continuidade. Perceber tais continuidades na experiência significa refletir e discernir entre o que se faz e a sua consequência. Para Dewey (1952: 201), a reflexão na experiência é o ato de aceitar a responsabilidade pelas futuras consequências oriundas uma ação atual.

Na descoberta das relações entre os atos e as consequências que delem derivam, tem-se o valor da experiência. Seguindo Dewey, concordamos que compreender uma experiência ou uma situação empírica é pensa-las com inteligência, isto é, a partir das ocupações que na vida comum provocam interesse, fazendo desse pensamento método para resolver problemas verdadeiros. Há problemas verdadeiros e aqueles que são simulados; é preciso saber distingui-los. Para este autor, essa distinção necessária dá-se em função da reflexão sobre as consequências de um acontecimento, não ser máquina registradora das informações julgadas de antemão completas por si mesmo oriundas de tal acontecimento. Para Dewey, essa segunda alternativa não é compatível com o verdadeiro ato de pensar, e de pensar problemas, de discernir o que se faz das mudanças no mundo provocadas por este determinados fazer. O ato de pensar implica necessariamente:

“a consciência de um problema, a observação das condições, a formação e a elaboração racional de uma conclusão hipotética e o ato de a pôr experimentalmente em prova. Ao mesmo tempo em que o ato de pensar resulta em conhecimento, em última análise o valor do conhecimento subordina-se ao seu uso no ato de pensar. Pois não vivemos em um mundo fixo e acabado, e sim, em um mundo que evolui e onde nossa principal tarefa é a visão prospectiva e onde a visão retrospectiva – todo o conhecimento como coisa distinta da reflexão é retrospectivo – tem valor na proporção da solidez, segurança e fecundidade com que garante os nossos negócios com o futuro”. (DEWEY, 1952: 208)

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Destarte, o que podemos perceber como notável da experiência de amarrar os ojás nas árvores do Dique é que é fruto do pensar no que pode se suceder se assim o fazer. Um dos participantes da experiência nos disse, enquanto envolvia os tecidos nas árvores do Dique do Tororó: “eu acho que a gente merece respeito, porque a nossa religião não é diferente de nenhuma outra, por que orixá é isso, é respeito, é compaixão com o próximo, é união, é família e nem todo mundo sabe disso...”, no que completa dizendo que “a forma da intolerância acabar é fazendo isso, é fazendo esse mutirão para amarrar os ojás para divulgarmos a paz. Não é somente com palavras, mas também com imagens com a expressividade”.

Consideramos essa fala como inteligente modo de pensar, um pensamento expresso com correlatos (respeito, da compaixão, da união, da família...) vividos na dinâmica religiosa dos adeptos e aplicados para o enfrentamento do conflito. Trata-se de um pensamento que reflete e confia nas consequências que pode haver de objetos familiares como os ojás nas árvores de lugares públicos de Salvador. Deste modo, a “cena de aparecimento” da alvorada dos ojás no Dique revela os vínculos com o lugar empreendidos pelo público afro-religioso, como também o desafio de angariar forças na resolução dos seus problemas.

O conceito de “público” de Dewey está presente em seu texto “O público e seus problemas” de 1927 é exemplo deste pressuposto que coaduna considerações teóricas e fatos empíricos. Dewey está interessado em fixar conceitualmente o público a partir da extensão e do escopo das consequências das ações que se fazem importantes ao ponto de precisarem ser inibidas ou promovidas. Isto quer dizer que o público consiste em tudo aquilo que for afetado pelas consequências indiretas das transações e que por isso reivindicam trata-las sistematicamente. Nosso autor dá a entender que a importância política do conceito de público está ancorada na possibilidade que determinados grupos têm para generalizar suas questões, fazendo com que um problema antes visto como localizado e sem importância passe a interessar a toda uma coletividade. As reflexões de Dewey apontam para um público que está sempre vinculado a determinadas situações problemas, quer dizer, situações que têm consequências inclusive para quem não necessariamente participa das transações que as caracterizam.

O trabalho de problematização é então responsável por engendrar o público de uma dada situação, de modo que rastreá-lo quer dizer o mesmo que localizar os investimentos que efetivamente instauram problemas públicos. É preciso reconhecer que tanto o público

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como os problemas que lhes orbitam estão inseridos num processo simétrico de emergência.

Nosso intuito aqui é reconstruir as mediações fundamentais para o público emergente conduzido por problemas públicos, mas que também os conduz, relacionados de algum modo aos cultos afro-brasileiros em Salvador. Queremos com isso qualificar o fato político talvez dos mais relevantes no Brasil contemporâneo que é o que legitima e recepciona em âmbito político formal as reinvindicações políticas de religiosos afro-brasileiros. Voltando ao episódio da Alvorada dos Ojás, consideramos como digno de nota que a titular da Secretaria do Promoção da Igualdade Racial do Governo da Bahia, Fabya dos Reis, tenha participado da experiência com os ojás das árvores no Dique.

Definindo a estrutura dos capítulos: organizando os resultados da pesquisa

Para o melhor entendimento de como esta pesquisa foi desenvolvida apontaremos três frentes de investigação, que não por acaso referem-se a cada um dos capítulos. A primeira frente de investigação faz referência ao espaço, ou à ocupação espacial de lugares da cidade pela religiões afro-brasileiras – como é feito no Dique. A segunda frente de investigação faz referência aos estudos sobre os contextos políticos e artísticos responsáveis por viabilizar a Arte-Afro-Brasileira como arte pública – como são as esculturas dos orixás no Dique. A terceira frente de investigação faz referência ao conflito em si, ao modo como tem dinamizado as instituições estatais.

Assim, essa dissertação vê-se constituída por três capítulos. O primeiro item é o primeiro capítulo, onde se discute o Dique do Tororó, ressaltando suas particularidades históricas e os vínculos do Candomblé com a paisagem. O segundo capítulo é onde se discute o processo das esculturas de orixás, recuperando as relações entre arte, política e religião responsáveis pela existência pública de tais monumentos no Dique. O terceiro capítulo apresenta discussão sobre como evangélicos instauraram controvérsia parlamentar a partir das esculturas. Assim como fizemos da Alvorada dos Ojás o episódio factual que dá o tom desta introdução, os outros capítulos também são precedidos por episódios relacionado às respectivas discussões.

É importante que se considerem os capítulos desta dissertação como se completando uns aos outros e possuindo resultante sempre cumulativa. Do contrário, os problemas aqui abordados ficarão desarticulados; disformes com relação às ideias, interesses e instituições que os ensejam; amorfos e indiferentes ao público que lhes permitem emergir.

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1 BIOGRAFIA ESPACIAL DO DIQUE DO TORORÓ

OUTUBRO DE 2017

As águas do Dique do Tororó exalavam odor malcheiroso, forte o suficiente para fazer das experiências com o lugar um recorrente gesto de autocensura olfativa. No fluxo de automóveis das vias movimentadas e engarrafadas que margeiam o espelho d’água, de dentro das habitações populares que se aglomeram e preenchem as encostas dos arredores, o transeunte e o morador, todos próximos ao Dique se viram afetados pela paisagem.

Tão logo a situação se fez crítica, fez-se também escândalo midiático a reproduzir histórias de desconforto com o lugar. O passageiro de um ônibus a indagar sobre os motivos do mau cheiro. O motorista deste mesmo ônibus a fazer uso de máscara hospitalar nas sete voltas diárias pelo Dique que lhe obriga o seu itinerário. O dono do restaurante instalado no píer a reclamar da fuga da clientela. O barqueiro a rememorar a antiguidade da poluição no Dique. O turista desavisado... A situação, incontornável a qualquer dos transeuntes, dominou a atmosfera por semanas, sem que nenhuma das autoridades públicas reivindicassem a solução do problema. Ao contrário, foi notícia, transformada na polêmica “De quem é o Dique? ”, o jogo de responsabilidades entre órgãos da administração pública municipal e estadual. Adeptos civis se manifestaram. Um dos grupos foi de religiosos do Candomblé, liderados pela AFA (Associação de Proteção Afro-ameríndia), que organizaram o protesto Ato em Defesa das Águas Sagradas do Dique.

Nesta oportunidade, o Jornal Correio estampou manchete: “A fedentina exalada pelo Dique nas últimas semanas tem atrapalhado até mesmo os rituais religiosos”. O sacerdote do Terreiro Vodun Zo, o Doté Amilton Costa, foi entrevistado por esta reportagem destacando que fazia oferendas no Dique há mais de 43 anos, mas que este ano, por causa do mau cheiro, não iria cumprir o ritual no local: “Faço isso desde quando me entendo por gente e fiz até quando o Dique estava sendo restaurado. Mas, como é que vai colocar oferenda com aquele mau cheiro? Tá tudo sujo e a natureza vai rejeitar, porque pra gente precisa que tudo esteja despoluído”.

A sacerdote do Terreiro Ilê Asé Omo Omin Tundê, Mãe Rita de Oxum, também foi ouvida explicando que “com aquele mau cheiro gritante, não tem como colocar as oferendas, porque os orixás se sentem incomodados”. Ocorrido no dia 20 deste mesmo outubro, o Ato em Defesa das Águas Sagradas do Dique foi transmitido ao vivo pela Rede Bahia de Televisão em seu telejornal matutino. O presidente da AFA, também ogã da Casa de Oxumarê, o Leonel Monteiro, foi o porta voz do evento. Comentou que: “esse mau cheiro vem nos preocupando, porque

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ninguém tomou nenhuma atitude e ali é um dos locais considerados uma extensão dos terreiros. Ali é uma área historicamente considerada sagrada para as comunidades de matrizes africanas.

Terreiros de Candomblé depositam anualmente suas oferendas às divindades ligadas às águas”. Monteiro finalizou argumentando que “para que a gente possa manter a ligação com o sagrado, a natureza precisa estar preservada. Segundo eles, quando a água está poluída, tem alguma alteração, o axé está desequilibrado e isso impede o culto. Isso impede a perpetuação do ato de levar o presente às águas”.

Após uma série de pressões públicas, a Companhia de Desenvolvimento Urbano do Governo do Estado contratou empresa especializada para operar de limpeza e melhorar a oxigenação das águas. Em novembro deste mesmo ano, a situação crítica já havia arrefecido. (EXTRAÍDO DO CADERNO DE CAMPO DO AUTOR)

Neste capítulo propomos pensar o Dique do Tororó, com ênfase na sua condição de território negro 6 historicamente constituído. O Dique é um lugar público de Salvador cuja configuração atual dá-se muito em função do que foi dinamizado à paisagem na intervenção urbanística finalizada em 1998 – quando finalmente lhe fizeram vitrine oficial para o turismo e atrativo para o lazer dos locais –, mas também em função de um itinerário ainda mais longínquo. A tarefa de biografar este Dique requer o registro das trajetórias mutualmente transformadas 7 pelo tempo, que, memórias da paisagem, são histórias da cidade de Salvador e de seus habitantes, muitos dos quais negros oriundos das tradições afro-brasileiras.

Com base numa literatura historiográfica, estudos como o Jussara Dias (2006) têm recorrido à classificação funcional para exemplificar quais usos territoriais o Dique tivera ao longo da história urbana da cidade. Três funções territoriais básicas são caracterizadas: 1- como área de proteção, sobretudo entre os séculos XVII e XIX, destinada a isolar a cidade construída em seu limite oriental e impedir possíveis invasões estrangeiras; 2- como área utilizada pelos cultos afro-brasileiros através do recolhimento de espécies vegetais, oferendas e rituais desempenhados principalmente nas águas; 3- como área dedicava para fins turísticos e recreativos, a partir do último quartel do século XX.

6 O termo território negro desenvolvido por Raquel Rolnik para pensar a situação espacial da população negra nas cidades brasileiras.

7 O que chamamos aqui de trajetórias mutualmente transformadas refere-se ao argumento, a ser desenvolvido mais adiante, sugerido pelo antropólogo Tim Ingold (2015), dos processos formativos e transformativos referentes à totalidade dos seres vivos e da paisagem enquanto partes integrantes à autotransformação do mundo. Para este autor: “é somente por causa de sua imersão comum nos fluxos do meio que pessoas e paisagem podem se envolver” (INGOLD, 2015: 199).

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Que o aspecto funcional do Dique como local de aguadeiro e abastecimento esteja negligenciado por esta abordagem constitui fato por demasiado curioso, já que uma breve atenção à história informa que foram mais de três séculos de usos daquelas águas pela população soteropolitana em afazeres dos mais cotidianos. Assim, valendo-nos da crítica a classificações de lugar conforme modelos funcionais e formais de ocupação de área, enfatizaremos nosso propósito de situar as emergências da paisagem do Dique como caminhos em desenvolvimento. O objetivo aqui não é negar a facticidade daquelas três funções básicas apontadas pela literatura, senão encará-las como experiências de desenvolvimento das trajetórias sensíveis do/ ao lugar.

O capítulo é composto por três partes: duas seções principais que se complementam e que antecedem a terceira destinada a apresentar breves considerações conclusivas. Na primeira parte, apresentarei aspectos que caracterizam a paisagem do dique na história, incluindo aí o exercício de uma linha temporal do próprio espaço. Aprofundarei alguns dos aspectos mencionados na linha sob o critério das funcionalidades apontadas pela literatura, com foco nas intervenções urbanas do poder público cujos resultados foram cruciais para o enredo do Dique do Tororó. Na segunda parte, apresentarei o candomblé como a religião que historicamente foi vinculada ao espaço, através dos seus múltiplos rituais de sacralização. As dinâmicas próprias ao Candomblé serão assim consideradas, apenas no que permitem compreender quais os principais componentes religiosos presentes no Dique. Concluirei o capítulo recuperando discussões, já entrevistas nas seções anteriores, sobre os espaços de mato e de águas da cidade de Salvador que são considerados sagrados pelos cultos afro-brasileiros.

1.1 MEMÓRIAS DO DIQUE: A PAISAGEM URBANA EM PROCESSO

Convém logo anunciar a assertiva que orienta todo o desenlace desta seção: a paisagem do Dique atual é o resultado das formações históricas que repousam no dinamismo do lugar como um irredutível campo de experiências. Considerando que, desde meados do século XIX, seu dinamismo tem sido caracterizado conforme vetores tipicamente urbanoides, algumas das experiências relativas ao Dique apontam para esse caráter urbano da paisagem.

Voltemos ao episódio referido no início do capítulo. Naquele outubro de águas mau cheirosas e coloração esverdeada, a paisagem do Dique foi experiência de desconforto..., por que experiência de crescimento e decomposição de microalgas..., por que experiência de concentração de altos níveis de fósforo e de nitrogênio nas águas responsáveis pela

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nutrição das algas..., por que experiência de descarte inadequado de lixo nas águas. São estas experiências formadas pelo encontro de trajetórias que mutualmente se transformam. São experiências que reforçam e orientam outras experiências 8. Um exemplo: a Aula Pública no Dique promovida pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).

Os seis microscópios montados pelos professores do Instituto de Biologia da UFBA estavam dispostos uniformemente num dos decks do Dique, prontos para despertar a atenção dos transeuntes. Numa aula que mais pareceu aventura de investigação microscópica, os participantes foram convidados a ser testemunhas daquilo que estava submerso: o contínuo de vida, de crescimento e decomposição, das microalgas, esses organismos ativos no sistema hídrico do Dique, correlacionado à urbanização de Salvador.

Tal como sugere Tim Ingold (2015), refletindo sobre a formação da paisagem, consideramos fundamental descartar a explicação convencional da transformação histórica da natureza como uma sucessão de superfícies materiais que se substituem uma após outra. Há algo nesta explicação que é de uma perda irrecuperável, que é a descrição das relações transformativas da própria superfície, que por sua vez não é superfície do mundo, mas no mundo. O argumento de Ingold afirma que “as formas da paisagem – como as identidades e capacidades dos seus habitantes humanos – não são impostas sobre um substrato material, mas surgem como condensações ou cristalizações de atividade dentro de um campo relacional” (2015: 90).

Os conceitos de espaço e paisagem: algumas implicações

Antes de apresentar os processos de transformação da paisagem do Dique, é preciso registrar o nosso entendimento sobre os termos espaço e paisagem. Os significados destes termos são diversificados na literatura geral das ciências sociais, tanto quanto foram utilizados ao longo da história intelectual, por vezes de modo formal o suficiente para sequer serem definidos com precisão (ROUGERIE, 1991). Com base nas considerações tecidas pelo geógrafo Rougerie (1991), de que é possível sustentar uma concepção em

8 Fundamental aqui retomar a noção de experiência de John Dewey, no que permite compreender que “é tanto quanto na natureza [is of as well as in nature]. Não é a experiência que é experienciada, e sim a natureza – pedras, plantas, animais, doenças, saúde, temperatura, eletricidade e assim por diante. Coisas interagindo de determinadas maneiras são a experiência” (DEWEY, 1958: 4).

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que ambos os termos estão imbricados, avançaremos em algumas das implicações conceituais para o presente trabalho.

Partindo das proposições teórico-metodológicas do antropólogo Tim Ingold e da geógrafa britânica Doreen Massey – autores que se aproximam em vários sentidos não obstante a recusa de Ingold em utilizar o conceito de espaço –, utilizaremos a noção de espaço de Massey (2005) para ressaltar as implicações políticas irredutíveis a qualquer espaço e a noção de paisagem de Ingold (2015) para recuperar a ênfase na terra/ água/ céu então ligados às práticas cotidianas e aos usos habituais.

As orientações de Massey, com sua definição de espaço como “simultaneidade de histórias até então” (2005: 183), se revelam preciosas para o registro da multiplicidade de histórias que se fizeram encontrar em momentos da história espacial do Dique. De acordo com esta autora, trata-se de uma esta reconceituação que:

“coloca em pauta um grupo de diferente de questões políticas. Não pode haver suposição de coerência preconcebida ou de comunidade ou identidade coletiva. Em vez disso, o acabar juntos [throwntogetherness] do lugar exige negociação. (...) O mero fato de termos de continuar juntos, o fato de não podermos (mesmo que queiramos, e isso, em si mesmo, não deve, de forma alguma, ser suprimido) ‘purificar’ espaços/lugares. Neste acabar juntos, o que está em questão são os termos do compromisso dessas trajetórias (tanto ‘sociais’ quanto ‘naturais’), essas estórias-até-agora, dentro (e não apenas dentro) daquela conjunturabilidade” (MASSEY, 2005: 204, 205).

Tim Ingold (2015: 193, 194), ao recuperar a história da palavra paisagem – remontando ao início da Idade Média –, pôde notar diferenças consideráveis no uso desta palavra: outrora “engajamento imediato, muscular e visceral com a madeira, a grama e o solo” pelos modeladores medievais da terra; atualmente paisagem passou a ser identificada com cenário ou arte descritiva, oriundo “da óptica distanciada, contemplativa e panorâmica”. O autor observa que este atual sentido dado à palavra foi derivado da linguagem de representação pictórica desenvolvida no século XVII, reforçado com o desenvolvimento posterior da cartografia e da fotografia a partir da ideia da paisagem como algo a ser projetado em uma placa ou tela. Totalmente contrário a esta ideia, Ingold insiste, com base naquela formulação dos modeladores medievais da terra, de que a paisagem é sempre formação contínua, impossível de ser meramente “observada”.

De acordo com Ingold:

“Ao invés de pensar em nós mesmos apenas como observadores, trilhando nosso caminho ao redor dos objetos espalhados pelo

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chão de um mundo já formado, devemos imaginar-nos, em primeiro lugar, como participantes, cada um imerso com todo o nosso ser nas correntes de um mundo em formação: na luz solar nós vemos, a chuva na qual ouvimos e o vento no qual sentimos. Participação não se opõe a observação, mas é uma condição para isso, assim como a luz é uma condição para se ver as coisas, o som para ouvi-las, e a sensação para senti-las”. (INGOLD, 2015: 197)

Assim, a noção de paisagem de Ingold tem o mérito de reconhecer o terreno, tanto quanto o meio atmosférico como zona de processos formativos e transformativos. Isto quer dizer que a paisagem não é o produto da soma de “objetos” e de “superfície”, mas “materiais em movimento”. Das implicações do conceito proposto por Ingold ao nosso itinerário de investigação, descortinamos um mundo de práticas cotidianas, de “materiais em movimento”, que caracterizam a formação contínua da paisagem do Dique.

Neste sentido é que podemos retornar à problematização da historiografia que aponta os três usos mais habituais na trajetória urbana do Dique: como fosso aquático destinado a proteger os administradores da cidade antiga; como área verde e de águas destinadas aos cultos afro-brasileiros; e como área dedicada ao lazer e turismo. Já mencionamos que a atividade de aguadeiro se fez uso habitual no Dique.

Do nosso ponto de vista, não há como desconsiderar a diferença que as águas do Dique produziram na vida de parcela significativa da população soteropolitana, tanto quanto a diferença que produziram colaborando à formação contínua da paisagem.

Memórias de aguadeiro: o (o)caso das lavadeiras do Dique

Na história do povoamento de Salvador, as águas do Dique formaram um dos principais redutos de aguadeiro. Podemos situar, como um desses usos habituais de aguadeiro, a atividade das lavadeiras que daquelas águas retiraram todo o seu sustento. Este grupo composto basicamente por mulheres negras e pobres, constituiu uma extensa rede de colaboração. Com jornadas de trabalho geralmente coletivas, as lavadeiras do Dique partilhavam das responsabilidades sobre as “trouxas de roupas” da clientela, de um modo tal que mesmo em períodos de doença, parto ou obrigação religiosa esse tipo de interação com as águas continuava.

Se retornamos aos relatos de viajantes à Bahia do século XIX, chegamos talvez a um dos primeiros registros pormenorizados que se tem notícia sobre o Dique. Sob o olhar atento e minucioso, Maximiliano de Habsburgo, arquiduque da Áustria em viagem ao

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Brasil de 1860, descreveu a paisagem do Dique como aventura do qual participou interessado nas atividades dos milhares de lepidópteros coloridos e beija-flores em sobrevoo, das plantas aquáticas e margens num complexo e maduro entrelaçamento, dos jacarés de focinho e outros tantos animais.

O profundo encantamento que Habsburgo expressou para com o Dique deveu-se à predominância da vegetação tropical na paisagem. No entanto, não pode deixar de observar o que nomeou de “cenário humano”, registrado primeiro como ausência (“as margens desertas de moradores”) e depois como presença (“as negras que lavavam e tomavam banho”). Mulheres negras em atividade, que, embora aparecessem como “cenário humano” como personagens destoantes da imagem de “matas tropicais intocadas” sugeridas pelo relato, eram participavam ativamente da paisagem do Dique da década de 1860.

Quase um século depois, a fotografia de Pierre Verger (conforme expresso na figura 1) relata novamente a atividade destas mulheres negras lavadeiras de roupa no Dique. No entanto, apresenta também construções nas margens outrora descritas como “desertas de moradores” por Habsburgo. De acordo com a argumentação que traremos em pormenor mais adiante, as transformações urbanas processadas em Salvador e mais particularmente no Dique fizeram-no experimentar maior contingente de pessoas e moradias.

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As lavadeiras do Dique participaram ativamente da paisagem até pelo menos o último quarto do século XX. Em finais da década de 1960, a intervenção urbana responsável por adicionar como margem do espelho d’agua a Avenida Costa Silva fez com que essas mulheres tivessem que buscar outro lugar para desempenhar a mesma atividade. Na reportagem do Jornal da Bahia que circulou em 23 dezembro de 1969, há a seguinte descrição: “as máquinas vieram, os homens, e com eles as escavadeiras. E com ele o vento. A poeira subia e descia sobre as roupas alvas, que secavam no gramado”. Este registro, que apresenta o derradeiro momento para as lavadeiras do Dique, foi intitulado pelo jornalista responsável pela reportagem como “progresso”, ainda que o corpo da matéria tenha sido melancólico.

O que podemos compreender desde já – a partir destes três registros em diferentes momentos sobre as lavadeiras–, é que a trajetória do Dique lança luz para uma série de outras trajetórias de personagens reais ou imaginários, muitas delas promovidas ou inibidas mediante intervenções do poder público. Antecipado pelo primeiro encontro das trajetórias da poeira e daqueles panos brancos, a vida das lavadeiras no Dique foi completamente inviabilizada ante os processos de urbanização do espaço.

Conforme veremos mais adiante, a Avenida Costa e Silva atual dá chance para que outros encontros possam ocorrer, a exemplo das manifestações de cunho político dos mais diversas. Isto nos faz retornar à consideração inicial de que a paisagem é dinâmica por que é histórica, é diversa por que é resultado do encontro de diferentes “materiais em movimento”.

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Figura 3- O Dique em 2018

As figuras 2 e 3 apresentam registros fotográficos do Dique em diferentes momentos de sua trajetória. Conforme o nosso pressuposto teórico-metodológico, descrever a trajetória do Dique é o mesmo que descrever as interações entre as trajetórias que ali mutualmente se transformam. Para tanto, iremos desenvolver uma linha do tempo que indique brevemente alguns desses encontros transformativos entre pessoas e paisagem, para na sequência aprofunda-los – quer nos tópicos subsequentes, quer ao longo desta dissertação.

Uma linha do tempo do espaço

1549 – Desembarque de Tomé de Sousa na Baía de Todos os Santos, no que ele funda a cidade de São Salvador. Das suas explorações ao interior do continente resulta relato que comtempla um lugar “afastado com extenso volume aquífero e vegetação”. Há interpretações que sinalizam este local como ambiente primitivo anterior às obras que derivaram o Dique do Tororó atual.

1624 – Invasão holandesa na Bahia. O chamado “Dique do Holandeses” foi obra dos invasores na tentativa de evitar contra-ataques luso-brasileiros. No século XIX, o historiador Vilhena foi o primeiro a associar este “Dique dos Holandeses” ao local do “Dique do Tororó”, permanecendo até hoje quem ainda o faça. Uma controvérsia historiográfica foi empreendida por historiadores na década de 1950, sendo novamente

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recuperada na década de 1990; estes buscaram desfazer a informação de que o local do “Dique do Tororó” fosse obra de invasores holandeses.

1714 – Ampliação do Dique de Defesa da Cidade Alta. Consistiu em obra do plano de fortificação de Salvador, executada pelo vice-rei do Brasil Vasco Fernandes César de Meneses. Suas águas contornavam a velha cidade construída, do Forte do Barbalho até o Forte de São Pedro. É considerado como o “Dique do Tororó” primitivo.

1802 – Registro do primeiro projeto de intervenção urbana para o local. O primeiro que veio a ficar somente no papel, não sendo executado. Este plano visava construir um Jardim Botânico, nos moldes ao que alguns anos depois foi construído no Rio de Janeiro em função da chegada da Família Real Portuguesa no Brasil.

1810 – Primeiro aterro das águas do dique. O motivo: construir a conexão entre os bairros Nazaré e Brotas, no que a região foi nomeada de Galés. A explicação para o nome advém do código criminal de 1830, que determinava sanção criminal cujos réus devessem andar com correntes de ferros nos pés no emprego de trabalhos públicos, a este tipo de sanção denominou-se “galés”. Isso quer dizer que o primeiro aterramento do Dique do Tororó foi realizado por escravos acorrentados. A escravidão só foi oficialmente abolida no Brasil em 1888.

1859 – Obra de aterramento para estrada que daria acesso ao bairro do Rio Vermelho, atualmente conhecida como a região da Vasco da Gama. As principais avenidas que ligam o centro antigo da cidade aos bairros da orla e vice-versa foram construídas no decorrer do século XX (com destaque para a Av. Sete de Setembro e a Av. Oceânica), de modo que a construção desta estrada em meados do século XIX foi demasiado importância para o desenvolvimento urbano destas partes da cidade e do próprio Dique. Esta situação antecipou o aspecto de transição que atualmente muito bem caracteriza o espaço. 1861 – Publicação do livro Bahia 1860. Esboços de viagem de Maximiliano de Habsburgo, arquiduque da Áustria. O autor conta sobre sua estada em Salvador, onde permaneceu poucos dias, mas suficientes para descrever a vida na cidade da Bahia. Viajante naturalista e profundo conhecedor de espécies botânicas, Habsburgo teve com admiração a natureza do velho Dique – curiosamente o apresentou enquanto entreve para o avanço da urbanidade citadina.

1871 – Construção da Fonte do Tororó. Sua tecnologia foi inovadora para a época, de bomba manual idealizada por Antônio Lacerda, mesmo engenheiro construtor do Elevador Lacerda. Por diversos períodos de estiagem, quando a cidade não contava com outro meio de resolver problema de abastecimento, assim como outras fontes, foi

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sobremaneira utilizada por diferentes governos e população. Em 1981, o Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural do Estado da Bahia (IPAC) faz o tombamento.

1876 – Inauguração da linha da Companhia de Trilhos Centrais, com veículos de transporte movidos a tração animal, no entorno do espelho d’água.

1898 – Projeto de intervenção para o “aformoseamento”. Em razão das comemorações do IV Centenário de Descobrimento do Brasil, o projeto indicava construção de Jardim Botânico, mais também de ZOO. Contudo, não foi executado.

1899 – A administração municipal de Dr. Silva e Lima defendeu projeto de instalação de luz elétrica, com justificativa deu que a área poderia ser aproveitada para lazer. O desenvolvimento do Dique enquanto espaço urbano, assim como em outros lugares da cidade, está muito relacionado ao advento da iluminação pública. Em 1979, as Avenidas Costa e Silva e Vasco da Gama obtiveram expansão da iluminação ao longo do entorno do Dique.

1935 – Semana do Urbanismo organizada pela Comissão do Plano da Cidade de Salvador. O projeto apresentado para o Dique visava transformá-lo num efetivo parque urbano. 1940 – Projeto de implantação do campus universitário na região, cuja execução não se cumpriu. Em 2017, a aula pública organizada por professores e alunos da UFBA para tratar do episódio de poluição no Dique ocorreu neste mesmo local.

1950 – Inauguração do Estádio Octávio Mangabeira (Fonte Nova). Este estádio substituiu o antigo campo da Graça; a escolha pelo Dique se deu muito em função deste já ser utilizado por desportistas do ramo aquático. Após o desmoronamento de parte da arquibancada do estádio ocorrido em 2007, a estrutura foi implodida. Logo foi reconstruída e reinaugurada em 2013, servindo aos jogos da Copa do Mundo (2014) e das Olimpíadas (2016). Em ambos os formatos arquitetônicos do estádio, da arquibancada têm-se visão privilegiada para o espelho d’água do Dique.

1959 – O Dique é reconhecido pelo seu valor “natural” no conjunto arquitetônico e paisagístico tombado em Salvador, portanto, incluído na lista de bens a serem preservados e protegidos pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). 1960 – A administração municipal de Heitor Dias contratou o arquiteto Diógenes Rebouças para formular projeto para o Dique. Neste projeto, se destaca a intenção de fazer do espaço lazer, com construção de cais submerso que levaria até o Estádio, além da instalação de play grounds. No entanto, boa parte destas obras previstas não foi completada.

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1967 – A administração municipal de Antônio Carlos Magalhães executa obra na parte oeste do Dique, resultando no aterro do chamado “Dique pequeno”, já iniciada com entulhos da população. / Construção da Avenida Contorno, e sob este motivo a construção da ligação entre Avenida Centenário e a Avenida Vasco da Gama. Houve desapropriação de casas no entorno, que, segundo consta, pertenciam a muitas das lavadeiras que trabalharam nas águas do Dique.

1969 – Atuação da Secretaria de Turismo do Governo Estadual com articulação para reformas pontuais, sobretudo de limpeza e melhorias no serviço dos barcos utilizados como transporte. A reforma foi inaugurada no dia do aniversário do governador Luís Viana Filho, numa festa pública nomeada de “Noite Veneziana”.

1970 – A administração municipal constrói cais e implanta espécie de pedalinhos para fins turísticos. / Instalação de um posto de gasolina. / A imprensa repercute negativamente a notícia de que tanto os poluentes emitidos pelo posto de gasolina quanto esgotos domésticos poluíam o Dique.

1975 – Elaborado o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano de Salvador. Neste, o Dique do Tororó foi incluído no Sistema de Áreas Verdes, cujo objetivo principal é regulamentar o uso de áreas verdes da cidade. Contudo, somente foi instituído em 1985. 1980 – O Dique se torna um “cemitério de carros usados”, situação que permaneceu até finais da década de 1990.

1982 – Construção do Terminal de ônibus da Estação da Lapa. Certamente foi responsável por aumentar o tráfego de veículos em toda a região próxima do dique. Em 2014, o terminal passou a contar com integração à estação do metrô homônima contiguamente instalada.

1986 – Implantação do Programa de Utilização dos Recursos naturais do Dique do Tororó pela UFBA e Secretaria da Educação e Cultura do Estado (na prática fez substituição das redes e tarrafas dos pescadores por outras mais adequadas; fiscalização da pesca coibindo práticas irregulares, bem como informes educativos; combate a pragas como o caramujo biomphalaria; suspensão imediata do esgoto doméstico despejado nas águas; mutirão de limpeza).

1989 – Projeto de Indicação à Prefeitura pela Câmara Municipal para concorrência pública de empresas privadas interessadas em explorar “o potencial turístico do Dique” e propor obras. O projeto não foi aprovado.

1992 – A administração municipal de Salvador junto a UFBA e Universidade Católica lançam proposta de Intervenção no Dique. O projeto do engenheiro Robério Bezerra

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indicou espaços que seriam destinados a atividades comerciais (tais como lojas de venda de flores, artesanato e restaurantes); a construção de passarelas que ligariam “pelo alto” bairros como Brotas, Tororó e Garcia. Esse projeto quis ainda reorganizar as pedras portuguesas da calçada segundo mosaicos de desenhos inspirados no leque de Oxum e no cajado de Oxalá (opaxorô).

1994 – O Bloco Apache do Tororó, criado na década de 1970, apresenta projeto às administrações municipal e estadual de recuperação do Dique. A ideia básica do projeto era a ligação entre recuperação ambiental e a transformação do local em área para cultura e lazer. Sua participação no projeto seria de coordenação dos eventos culturais. A sede do Bloco está na Avenida Costa e Silva, na chamada Praça do Folclore.

1995 – A administração estadual através da CONDER propôs projeto de revitalização do Dique pelo Programa Bahia Azul (com visou conduzir para as redes de drenagem todo esgoto antes despejado no Dique, contou com auxílio da EMBASA para construção de bacia de contenção). A segunda etapa deste projeto previu recuperação de praças do local, sobretudo a área do Jardim baiano.

1996 – Início das obras de Recuperação ambiental e instalação de equipamento de lazer pela CONDER. / Organizada a 1ª Lavagem do Dique, por blocos carnavalescos de afoxés (Filhos de Gandhy, Hare Krishna, Filhas de Oxum, Apache do Tororó).

1997 – Inauguração da etapa de despoluição do projeto da CONDER. O evento foi marcado pelo ato simbólico, tanto quanto prático de autoridades, como o prefeito e o governador, lançando 11 mil filhotes de peixes.

1998 – Inauguração da última etapa da Reforma empreendida pela CONDER: deck para pesca, pista de cooper e a Fonte Luminosa dos Orixás do artista Tatti Moreno. A festa de inauguração contou com apresentações de blocos afro e cantores do Axé Music, como Margareth Menezes, com o hit “Toda cidade é d’Oxum”. Evangélicos organizaram protesto com ato-símbolo de “abraçar o Dique”, numa malsucedida intervenção para que as 12 esculturas que compõem a Fonte Luminosa de Moreno não permanecessem no Dique.

2006 – Plantio da árvore Baobá, defronte a escultura que representa o orixá Ossain. Foi inciativa da Casa de Oxumarê em parceria com a Secretaria Municipal da Reparação (SEMUR) e o Centro de Estudos Afro-orientais (CEAO).

2008 – A Caminhada do Povo de Santo pela primeira vez ocorre no local, com o ato-símbolo de “abraço ao Dique”. Esta mobilização que visa lutar contra a intolerância religiosa com o pedido de “respeito ao povo de santo” aconteceu no Dique em sua 4ª

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edição, sendo repetidos nos anos de 2011, 2012... Têm o apoio de diversos órgãos governamentais.

2015 – A Câmara Municipal de Salvador aprovou a proposta de indicação ao prefeito da vereadora Cátia Rodrigues para colocação de uma Bíblia na Dique do Tororó. Não foi executado, haja vista o prefeito Antônio Carlos Magalhães Neto ter aplicado veto ao projeto.

2016 – Projeto de Indicação da Câmara Municipal de Salvador ao Governo da Bahia para criação do Projeto Parque Aquático do Dique do Tororó, que consiste basicamente na adequação do Dique para a prática do Remo. Trata-se de um projeto de resgate à tradição comum em meados do século XX da atividade de regatas.

2018 – Volta da interdição do tráfego de veículos aos domingos, das 8h às 13h, no Dique do Tororó para a realização do Projeto Rua De Lazer. Em 2015, este projeto vigorou em fase experimental por alguns meses.

* 2019 – Previsão para ser instalado um novo circuito do Carnaval de Salvador: na área interna do Estádio da Fonte Nova e no perímetro da Avenida Costa e Silva.

Memórias topográficas: construção holandesa? artificial ou natural?

Em meados da década de 1990, a trajetória urbana do Dique foi revisitada numa polêmica de jornal. O jornal A Tarde estampou “A verdadeira História do Dique” da edição de 27 fev. 1995. O objetivo do artigo publicado, assinado pelo historiador Waldir Freitas Oliveira, era recuperar o debate acadêmico proposto pelo historiador Cid Teixeira na década de 1950 que contestava a versão mais popular do Dique como construção holandesa na Bahia do século XVII.

À luz e letras da imprensa local, curiosamente, este debate historiográfico trazido por Oliveira antecede a intervenção urbanística no Dique da década de 1990, de um modo semelhante ao fato de o Cid Teixeira anteceder em poucos anos a decisão do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) de tombamento do local em 1959. Conforme veremos mais adiante, as circunstâncias de valorização patrimonial do Dique do Tororó estão relacionam ao interesse intelectual e político de legitimá-lo como lócus da “baianidade”. E como tais são circunstâncias orientadas por constelações de interesses, no curso de trajetórias mutualmente transformadas pelo tempo.

A seguir, discutiremos algo mais sobre esta polêmica historiográfica. Iniciemos com o aspecto topográfico, já que é ponto chave na discussão. De acordo com Godofredo Filho (1996):

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“Se examinarmos as plantas disponíveis da cidade do Salvador, portuguesas, holandesas, ou outras, da era colonial, em quase todas encontramos o Dique, com as mais variadas dimensões de extensão e de largura. Na de Frézier, por exemplo, ele aparece como centopeia contraída; na de Massé e na Topográfica de Joaquim Viera da Silva, semelha um grande lagarto espalmado ou dá ares, talvez, de um sáurio fóssil”. (GODOFREDO FILHO, 1996: 208)

Um exame destas plantas permite entender detalhes da referida polêmica. É necessário, pois, recuperar brevemente a invasão holandesa na Bahia, voltando ao século XVII.

Quando navios holandeses cruzaram o mar da Baía de Todos os Santos, o domínio ibérico sobre o território da urbis brasileira foi comprometido. Foi em maio de 1624 que uma esquadra de 26 navios e cerca de 3.400 holandeses aportaram na cidade de Salvador, então cidade capital do Brasil, em razão dos conflitos em torno do domínio comercial atlântico. Quando uma armada luso-espanhola de mais de 50 navios conseguiu retomar o controle, em março de 1625, os invasores já haviam avançado para o interior da cidade com intervenções pontuais.

O maior dos feitos holandeses na Bahia foi o alagamento do rio das tripas cujo resultado foi a inundação na região que intermedeia o Mosteiro de São Bento e o Convento de São Francisco, área demasiado próxima às instalações dos poderes coloniais. Oportunamente chamada de “Dique dos Holandeses”, tal região alagada cumpriu a função de proteção em caso de contra-ataque iminente. Conforme expresso na figura 4, a planta desenhada pelo engenheiro militar francês em expedição científica pelas américas no século XVIII, o Amédée François Frézier:

Referências

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