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À margem do núcleo central literário

No documento afonsocelsocarvalhorodrigues (páginas 36-39)

A Literatura Marginal, sempre é bom frisar, é uma literatura feita por minorias, sejam elas raciais ou socioeconômicas. Literatura feita à margem dos núcleos centrais do saber e da grande cultura nacional, isto é, de grande poder aquisitivo. Mas alguns dizem que sua principal característica é a linguagem, é o jeito como falamos, como contamos a história, bom , isso fica para os estudiosos, o que a gente faz é tentar explicar, mas a gente fica na tentativa, pois aqui não reina nem o começo da verdade absoluta. (FERRÉZ, 2005. p.12,13)

Como é colocado nesta citação do escritor Leo Ferréz, existe uma “literatura marginal” sendo produzida no Brasil. Sem configurar um salto muito radical ou precipitado entre as primeiras considerações gerais colocadas no texto sobre “Literatura e Poder” que antecede a este, cremos que, ao falarmos desta produção no nosso país, teceremos uma continuação da potência do poder de se escrever, centrado neste recorte da “marginalidade”.

Se chamamos à literatura sua função de mediar pensamentos, rompendo com a mistificação do valor literário e do “missionarismo” intelectual que canonicamente a caracterizou, notaremos a emergência de outros protagonistas na arena do espetáculo público, que desviam a produção contemporânea dos padrões canônicos e, ao mesmo tempo, os reprograma em combinações às vezes não muito confortáveis. A cena literária pós-moderna reconhece a propensão tendenciosa da literatura brasileira a dramatizar o que flui e se manifesta pelos muros, pelas fachadas e pelos recantos recônditos (ou nem tão recônditos assim) das nossas cidades contemporâneas: a acentuada e visível exclusão social, a transmutação econômica da vida coletiva, o depauperamento da soberania do Estado, a regulação dos conflitos de interesses e, até mesmo, o combate à criminalidade organizada. No livro Estéticas da Crueldade, Ângela Maria Dias coloca:

A obscenidade, tomada ao pé da letra, como ‘excesso de cena’, pode tranqüilamente freqüentar, tanto a deriva tardo-naturalista de grande parte da ficção, quanto expressiva parcela do cinema contemporâneo. O coquetel previsível sexo/violência/criminalidade tem circulado bem à vontade entre a linhagem literária, originalmente rubem-fonsequiana – agora inclusive, renovada pelos narradores-habitantes das periferias e das prisões. (DIAS, GLENADEL, 2004. p.18)

Existe um mérito inquestionável que temos que creditar à tecnologia e ao avanço do acesso às mídias permitido às pessoas comuns via a informática, por exemplo a ruptura com alguns entraves que sempre foram problemáticos àqueles que queriam se fazer ouvir. Se nos anos das décadas de 60/70 o mimeógrafo era um recurso (arma?) dos autores que corriam à margem da literatura enquanto máquina gráfica, hoje a disponibilidade de se lançar mão dos recursos de impressão dos computadores, ou mesmo aos blogs do universo da internet, democratizou as leituras das vozes que circulam longe das estratégias e mecanismos do mercado editorial, e diluiu os filtros sociais.

Nossa sociedade criou seus territórios fechados, fortalezas de ideologias de acomodação, e foi vítima de sua própria estratégia: estas fortalezas padecem da falta de circulação de idéias, tornando-se focos de infecção ideológica e estados terminais de cultura. Para oxigenar esta pauta viciada, nada melhor do que ir à rua, aos assentamentos, às periferias e a outros terrenos da indigência existencial. Dos convivas do cotidiano podem surgir os novos vetores e as novas forças da renovação da atmosfera claustrofóbica da nova sociedade que percebe, cada vez mais, a importância criativa dos saberes comuns, que não se circunscrevem às ideologias de grupos nem aos paradigmas estabelecidos: descortina-se na outridade uma nova visão de mundo. Neste enfrentamento com a crueza que acontece no nosso entorno desprivilegiado aflora o gesto da oratura e o gesto da literatura. A troca, o choque, o embate, a interatividade criadora dá-se no campo da cultura, que espelha a sociedade. Nas palavras de Nicolau Sevcenko: “O poeta sente a inquietude e, por isso, sofre

para além das fórmulas garantidas. Não recusa a angústia permanente, abre o peito ao grito dos desajustados, em sua compreensão da literatura.” (SEVECENKO, 1983, p.42)

Seria a visão dos desajustados o grande repositório das culturas, dos mitos, da invenção de outra História? Não estariam os desajustados transitando nas ruas calçadas e nas ruas de esgotos a céu aberto da cidade contemporânea? Se os poetas colhem a “alma encantadora das ruas”, como disse João do Rio (1881-1921), será possível que qualquer pessoa que se interesse em mediar os sentidos contemporâneos possa se eximir de romper com os entraves paradigmáticos e se abrir às visões – poéticas ou cruéis – do cotidiano?

O onírico da arte e o cotidiano da rua se encontram na dimensão mítica, na identidade cultural e na visão do mundo de um povo. Nas palavras de Gilles Deleuze, “a literatura consiste em inventar um povo que falta” 10.

A cumplicidade de ambos cria o laço da comunicação: um ouve o outro, porque compartilham do desejo coletivo na sua expressão escrita, a da literatura, ou na sua expressão oral, a da oratura.

Para que o cotidiano se presentifique é preciso romper com as rotinas industriais da produção cultural. É preciso superar a superficialidade das situações sociais e o predomínio dos protagonistas oficiais. Há uma grande demanda reprimida que solicita uma urgente democratização dos falares e dos escreveres. É cada vez mais necessário um mergulho no protagonismo anônimo, nos “ninguéns” que compõem nossa vizinhança. É cada vez mais importante não só ouvir e ler estes atores sociais, mas reconhecer sua força como identidades culturais na produção do nosso rosto simbólico multifacetado. Estes deslocamentos trazem para nós a alteridade. O cotidiano não é composto de abstrações conceituais e sim de experiências vivas que se tecem no tecido cultural. Só o ouvir destas vozes particulares emergentes das estruturas locais pode oferecer elementos para uma narrativa viva e criativa dos acontecimentos atuais. A literatura pode atender às necessidades reais de uma época e também às suas necessidades subterrâneas. Devemos desenterrá-las e fabularmos.

Porém ainda encontramos as ilhas e os muros das verdades absolutas e das metodologias engessadas. É urgente a interdisciplinaridade na abordagem do social. Precisamos ter atenção aos significados políticos da cidadania e à presentificação do cotidiano na narrativa ética, técnica e esteticamente transformadora onde se encontrarão as transgressões das fórmulas vigentes na sociedade que julga ser hegemônica.

No documento afonsocelsocarvalhorodrigues (páginas 36-39)

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