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Negros também falam

No documento afonsocelsocarvalhorodrigues (páginas 52-54)

Pensar é sempre tirar um plano do caos. A cultura negra se viu descaotizada através de uma formalização de seu pensamento pela métrica do rap. Através do uso de uma fórmula (atualmente) clássica, a estrutura do rap se resume a dois quesitos:

a) Uma estrutura rítmica. Normalmente, uma montagem musical composta de trechos “roubados” de outras gravações já existentes, acrescidas de uma “base” compassada. Esta é a formalização do que se encaixa na definição de “ritmo” da sigla “rap”. Em sua maioria, este ritmo, ou base, é criado em estúdios de gravação (profissionais ou domésticos) onde o DJ (disc-jockey) usa samplers, ou amostras, de músicas já registradas em alguma outra mídia de execução (discos de vinil, fitas cassetes, compact discs, ou em formato mp3) e as agrega através de uma mixagem, uma mistura, na base principal. Hoje muitos artistas já não usam este sistema, e produzem todo o seu material musical de forma original, sem citações ao trabalho de outros músicos.

b) Um texto escrito, de estrutura rítmica compatível com a métrica da base sobre a qual será recitado, obedecendo a uma rima básica, no qual prevalece um discurso predominantemente coloquial. Esta escritura é fruto de anotações que o artista compositor faz durante seu cotidiano e pode ter, como suporte de registro, desde fragmentos de papel tomados a esmo diante da sua necessidade de escrever determinada idéia, a até mesmo, hábito adquirido recentemente, um caderno destinado a esta função, os black books, antes de uso exclusivo dos grafiteiros, e agora assimilado pelos letristas.

Calcado nestes dois pilares de sustentação, o rapper transita no seu universo criativo fazendo seu trabalho ora em duplas, o DJ (disc-jockey) e o MC (mestre de cerimônia), ora sozinho. Acrescente-se que o rap é uma das manifestações da cultura hip hop, fruto cultural de uma mescla de atividades nascidas no meio urbano, que inclui os músicos, os cantores, os dançarinos de break, os grafiteiros e, mais recentemente, alguns praticantes de esportes radicais como skatistas, bikers e os traceurs, praticantes do Le Parkour. Percebe-se que o constructo do movimento rapper é de alternância, diálogo, ações combinatórias, parcerias e remanejamentos de concepções da alteridade. Nesse sentido, o rap surge como música e poesia, ritmo e silêncio pleno, configurando antes uma desterritorialização da fala. O verbo do

rapper é plural, serve a muitos senhores, canaliza muitas vertentes ideológicas e sintetiza a diversidade de sua fonte criadora: os excluídos, falando por eles nas suas diferentes linguagens expressivas.

O rapper fala de sua negritude reivindicatória, fala de seu espaço e de sua verdade. A verdade é retórica, precisa do discurso para se instalar e se fazer crível. Para o negro rapeiro seu melhor discurso é aquele que expressa a diversidade do público que o ouve, a consciência de que se “vive junto”, e que aposta no despojamento dos limites, dos dogmas, dos preconceitos e dos racismos. Dessa forma, se estabelece um exercício de linguagem, que circula entre os rappers e o público. Mas há algo mais nessa retórica que se constitui para o rapper como uma espécie de revelação da sua subjetividade, como coloca Dina Toledo:

De um lado o “viver junto” ao outro, porque somos seres de linguagem: animal político como animal lógico; mas por outro lado, a linguagem como instrumento de uma autoconfissão, que é a filosofia. A retórica é a possibilidade da autoconfissão: por meio dela eu convenço o outro de mim mesmo. (TOLEDO, Dina. in: LINS, 2007, p.117)

Introduzindo este sistema de leituras múltiplas e de diversidade cultural, o estilo, nascido da experiência afrodescendente, se democratizou pelo mundo afora, tornando-se uma “nação” ideológica, agrupadora de representantes multirraciais e multiculturais, criadora de um espaço impalpável, porém eficaz, de pertencimento que borra as fronteiras físicas das geografias políticas, das cores raciais e das religiões dogmáticas, estabelecendo-se no campo do simbólico, usando, para seu fortalecimento, as dores particulares, as revoltas sociais, os apartheids individuais e as fomes espirituais graças ao seu compósito “música e literatura”. Para Nietzsche, a “dança e a música são as únicas depositárias do sentido” (2007). Podemos acrescer à frase do pensador também a literatura. Estas citadas modalidades das artes fazem coro na estrutura do hip hop e do rap, mas o elo que as une e as transforma em fenômeno cultural único, abarcante, é a atração, muitas vezes irresistível, pelo desafio do enfrentamento com o desconhecido “estrangeiro” – o Outro – e a visceral necessidade que se tem de ser o outro. O rap se configura assim como uma visão de mundo, que se propõe a redefinir o que significa ser um com o mundo.

Um dos discursos mais veementes do rap diz respeito à quebra da hierarquia social, destacando a unificação laboral do homem como ser atuante e interferente no mundo. Porém, pelo seu incisivo discurso, desde o seu surgimento o rap e seus intérpretes vêm se tornando importantes símbolos culturais da violência; demonizado na figura ameaçadora dos jovens

negros incontroláveis do gueto, transformado em alvo da mídia e da polícia, mixado com a expansão da criminalidade, depositário da imagem degradante do “selvagem suburbano”, afeito a badernas, contravenções sociais e depredação pública. Entretanto, trata-se de uma tremenda injustiça imputar aos artistas da palavra cantada esta pecha porque sabemos que a violência na contemporaneidade é estrutural. Não obstante, o rap exibe uma “violência estética”: a força rápida e intensa de seu ritmo, seus métodos de samplear e arranhar discos, seu estilo agressivamente alto e confrontante dão ao rap o vigor estético que aumenta a energia, e também a consciência social e política de seus ouvintes.

Encontramos no ritual do rapper e em sua postura agressiva ecos de Frantz Fanon nas suas reflexões sobre o colonialismo, quando clama por uma atitude radical de união dos oprimidos contra a opressão. Num sistema social e econômico, que deslocou o campesino para as periferias carentes de toda infraestrutura básica das cidades, podemos talvez atribuir aos cidadãos excluídos da urbanidade nas metrópoles do mundo, o papel que Fanon sugere que seja desempenhado pelo campesinato nas sociedades coloniais: o de detonadores das estruturas.

No fogo do combate, todas as barreiras interiores devem fundir-se, a impotente burguesia de negocistas e compradores, o proletariado urbano, sempre privilegiado, o lumpenproletariat das favelas, todos devem alinhar- se com as posições das massas rurais, verdadeiro reservatório do exército nacional e evolucionário; nessas regiões cujo desenvolvimento o colonialismo deliberadamente estancou, o campesinato, quando se revolta, logo aparece como a classe radical: ela conhece a opressão nua, sofre muito mais que os trabalhadores das cidades e, para impedi-la de morrer de fome, é preciso nada menos do que uma explosão de todas as estruturas. (FANON, 2005, p.27)

O rap não nasceu da passividade. Por historicamente conhecê-la, o rapper fez dela sua antítese: a interferência de seu discurso na consciência humana há de ser de questionamento social, ruptura de convenções, reivindicação de direitos e liberdade de ser. Nesse sentido, o rapper é um ator de seu tempo.

No documento afonsocelsocarvalhorodrigues (páginas 52-54)

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