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À sombra da tradução: uma forma de reler os clássicos

CAPÍTULO I – E STUDOS COMPARADOS : UMA REVISÃO TEÓRICA

1.3 À sombra da tradução: uma forma de reler os clássicos

Apesar de não se configurar como nosso principal objetivo, a questão da tradução não poderia ser subestimada, pois, além do texto em português, lidamos com dois textos em outros idiomas: o grego e o espanhol.

Manteremos, em relação ao texto cubano, a versão original, traduzindo apenas algumas palavras ou expressões extremamente importantes para a compreensão da trama, em notas de rodapé. Em relação ao texto de Eurípides, não faremos uma tradução direta do grego: optamos pela tradução empreendida pelo grupo Trupersa. A escolha deveu-se, para além da afinidade acadêmica, em razão do profundo reconhecimento e respeito devidos a um trabalho

49 realizado em parceria entre os alunos e professores da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais.

A referida tradução mantém os ecos do texto original, demonstrando o quanto uma boa tradução é capaz de comunicar-se e tornar mais próxima do cidadão comum o que esteve relegado apenas ao meio acadêmico. Encontramos nessa potente tradução um universo de referências e motivações capazes de contribuir para o desenvolvimento de nossa investigação. Interessa-nos, portanto, o critério tradutório, a metodologia seguida e o aspecto paratextual adotado pelo grupo, uma vez que o texto clássico aproxima-se do leitor comum, desviando-se

do “tradicional” caminho que verte apenas para o leitor acadêmico.

Neste caso, enquanto esforço tradutor, o grupo referido não se limita apenas à tarefa de traduzir o idioma, mas também seus referentes culturais. Assim sendo, a tradução não apenas melhora o nosso entendimento do texto original como nos oferece a oportunidade de difundir e atualizar, no sentido positivo, o texto clássico. A tradução, por fim, não deixa de possuir originalidade, sem que, com isso, minimize a qualidade da obra adaptada. Diferentemente de outras traduções é adequada à divulgação da cultura clássica na sociedade atual, em especial porque a peça foi também apresentada através da representação teatral em diversos espaços públicos da cidade de Belo Horizonte (e região), ao ar livre, recuperando o espaço cênico do contexto grego.

O grupo Trupersa cumpre, assim, o seu papel de divulgador da tradição clássica em nosso meio, fugindo ao academicismo e aos limites antes impostos por traduções, que embora boas, muitas vezes limitam o entendimento do grande público. Por esse mérito incomparável, nota-se que essa tradução difunde o texto de Eurípides e o torna amplamente conhecido por nosso público, pois elenca estratégias visando a uma tradução que possa ser lida na cultura de chegada sem ser díspar ao estabelecido pelo autor.

50 Portanto, no campo da linguagem literária teríamos uma experiência-limite: a tradução, que vai além da dialética, da oposição entre exterioridade e interioridade, original e cópia. Em especial, em se tratando do texto teatral, assumimos o posicionamento de Pavis, quando se trata de distinguir a tradução literal da tradução teatral. A tradução do “texto

teatral” ultrapassa a interlingual. Isto quer dizer que a tradução do texto teatral é mais do que a busca de equivalência entre textos, é acima de tudo um processo de “apropriação” e

transposição e transcriação (PAVIS, 2008: 124-125).

Para além dos desvios e traições, a tradução garante ao original uma sobrevida, mesmo que isto implique a metamorfose do original (MARQUES, 2001: 20-24). No processo de transposição de uma língua para outra, temos a figura do tradutor. Por isso, a grande particularidade desse processo em relação aos demais processos de recriação é a

“aproximação”.

Embora detentor de uma tarefa complexa, o tradutor tem o direito de interpretar aquilo que lê em outro idioma. Essa tarefa pendular, que oscila de um idioma a outro, exigiria amplo conhecimento da cultura-fonte e não apenas da cultura receptora, amparando-se numa possível equivalência linguística e de sentidos. André Lefevere apresenta um conceito complexo para explicar o potencial da tradução enquanto método: a reescritura (refração), que pode redimensionar os significados de um texto e revelar a autoridade e poder envolvidos na escritura. Ainda para Lefevere, para o leitor que desconhece a língua original de um texto, a tradução seria o próprio original (LEFEVERE, 1992: 109-110). Ou seja, a tradução amplia o conhecimento do texto fonte e possibilita que o mesmo seja lido em culturas e idiomas

diversos. Nesse contexto, acreditamos que a noção de “ultrapassagem” é viável para

definirmos o que Lefevere considera importante no papel do tradutor: a ultrapassagem, pois

ela é um dos elementos responsáveis pela sobrevivência de um texto e pela “entrega” deste

51 O que torna clássico um texto continua subjugado a explicações que ultrapassam nosso entendimento. Se o gosto, o estilo ou a universalidade são importantes para o tradutor, ao receptor importa o sentido contextualizado na obra recuperada, uma vez que a tradução

precisa “acomodar-se” a essa nova roupagem (LEFEVERE, 1992: 19). Márcio Selligmann-

Silva, por exemplo, aborda a questão do papel do tradutor a partir dos dispositivos: sombras e tradução. Isso signica que falar em tradução exige que também se trate das sombras, e se falamos de sombras, falamos também de seu projetor: as luzes. Na persistência de um

pensamento que concebe a tradução “como uma sombra, ou seja, uma imagem plana e sem

detalhes, escura, do original” (SELLIGMAN-SILVA, 2011: 12), o tradutor é condicionado a um espaço da secundidade. Vale pensar em elementos cruciais para a compreensão desse processo que relega, ao tradutor e a seu objeto, a tradução, um não lugar, ou um espaço

indefinido no processo de “travessia” de um texto original para outro idioma.

Daí se exigirem elementos pontuais para se repensarem outros dispositivos, tais como a inter-relação entre corpo, luz e sombra. Dessa forma, pode-se compreender o corpo como a matriz ou o original, a luz como o processo que reflete a tradução, e a sombra como o

resultado desse processo refletor. Desse modo, “a tradução para ser encarada como uma

sombra que precisa ser entendida como o resultado último de um processo que se inicia com o

original, que, por sua vez, seria compreendido, por assim dizer, como a sua luz originária”

(Idem: 13).

Para Selligman-Silva, esse resultado sombrio é a própria tradução empalidecida, menor que a original, cujo ensombrecimento seria resultado da dificuldade procedente da própria diferença entre as línguas. O tradutor seria o pior dos obstáculos, pois não poderia executar uma tradução que refletisse o original, mas nos ofereceria apenas a sombra, o mero contorno da obra sem explicitar seus sentidos originais (Idem: 15).

52 ...fiquemos com essa figura do tradutor como skiagrapho, ou seja, como um tipo

particular de pintor que se utiliza de sombras para dar a ilusão do colorido do original. (...) Ou seja, diante dessa aproximação que esboço aqui, espero que fique claro o quanto a teoria das artes e a teoria da tradução poderiam ganhar se dialogassem mais do que tem ocorrido até hoje (Idem: 15-17).

O ponto em comum entre a obra original e a tradução seria o que Aristóteles denominou como mímesis – imitação, cópia (ARISTÓTELES, 1966: 1447ª). Não obstante, não consideramos nem a tradução e tampouco o tradutor como meras sombras na prática tradutória (SELLIGMAN-SILVA, 2011: 26-27). Seria desvalorizar um processo de convergência, adaptação e diferença: “o tradutor não seria mais o escritor de sombras, mas o criador mesmo do diáfano corpo da cultura, que se constitui via saltar. Über-setzen” (Idem: 32).

Seria adequado, então, criar outro dispositivo para se pensar a tradução, as dificuldades exigidas para esse empreendimento e os resultados, quase sempre multifacetados, dessa produção. Nesse caso, a metáfora do espelho quebrado poderia oferecer um novo direcionamento para nossas intenções. Para além dos discursos que veem no espelho a inversão, temos no espelho quebrado as possíveis alterações, quiçá deformações, que o processo tradutório poderá nos oferecer. Primeiro, porque a própria imagem refletida num espelho quebrado indica as múltiplas variações desse processo e os possíveis resultados; depois, esbarramos na sintaxe a gerar dificuldade na transposição das línguas. Numa determinada frase, a própria condição de uma palavra pode afetar definitivamente o sentido da outra. Seria quase afirmar que a tradução é um processo impossível, mas isso não é verdade.

Assim, a tradução, como no sentido original italiano, traduzione, poderia ser uma

“traição”, pois a cópia simula tanto a fidelidade quanto a traição. Por essa razão é que, sob a

beleza ou a maior receptividade da obra, paira o conceito de traição. Há uma espécie de

“movimento” existente na transmissão de informação, seja perpassando uma mesma língua

53 a outra no rio da linguagem, algumas ideias podem naufragar por não conseguir, na inversão dialógica de correntes, nadar entre as duas línguas.

Walter Benjamin apresenta um caminho “possível” nessa relação entre original,

tradução e o seu ponto limite onde o processo de tradução se apresenta como uma forma. A partir da tese “a Tradução é uma forma” (BENJAMIN, 2001: 131), Benjamin reconceitua a tarefa do tradutor: trans-pôr e trans-formar, entenda-se formar noutra língua, reformar na língua da tradução a arte do original. Se a tarefa é possível, então a tradução é possível. Assim, gostaríamos de pontuar o posicionamento de Benjamim, pois a tradução garante ao original uma sobrevida. E através da tradução poderíamos garantir o alcance da obra a um público vário. Reafirmamos que, ao assumirmos o posicioamento de Benjamim estaríamos valorizando a tradução como uma forma de manter vívida a obra clássica.

Portanto, a tradução brota do original, e, no mais das vezes, atualiza a glória do original. Desta forma, para Walter Benjamin a tradução se relaciona com o original a partir da

possibilidade de ultrapassar a vida deste: nas traduções “a vida do original alcança, de

maneira constantemente renovada, seu mais tardio e vasto desdobramento” (Idem: 195). Ora, a tradução parece-nos um problema insolúvel e se a fidelidade de uma tradução ao texto de partida é questionada, torna-se difícil atribuir-lhe um verdadeiro valor. Para sermos bem sucedidos, advogaremos não pela traição, mas pela liberdade que pode levar à fidedignidade do texto traduzido, capturando a sua essência. O mesmo texto, sempre um outro em sua constante dialética, reconstrói, aos poucos, tudo o que um dia designáramos como original. Nesse processo tenso, de ultrapassagens, diálogos e traições, a obra do passado insere-se numa anterioridade que chamaremos de “tradição”. A tarefa do tradutor fundamenta-se, assim, sobre uma teoria em que os textos se interligam e dialogam, traduzindo-se mutuamente.

54 A tradução poderia ser compreendida como um processo de contínua reinscrição cultural, uma vez que, quando se opta por dar notoriedade à diferença, o tradutor está também, por meio do texto, transformando a perspectiva cultural, que incide sobre a obra a ser traduzida.

Assim, ao pensarmos os desafios enfrentados pelo tradutor, identificamos a tradição cultural, pois a transferência do conteúdo de uma obra para outro código linguístico vale-se, principalmente, de duas margens com identidades distintas e constituídas por um contexto histórico, cultural e social diverso. Será necessário ressignificar os signos e valores compatíveis com o original e com o novo, mesmo que as duas margens compartilhem elementos culturais comuns.

Para Pavis, “traduzir é uma das maneiras de ler e interpretar um texto (...), e a tradução dramatúrgica é necessariamente uma adaptação (...) e uma ‘apropriação ao nosso presente”

(PAVIS, 2008: 127-128). Sujeito de fronteira, o tradutor se torna um intérprete por excelência, pois reinterpreta outras culturas e as transcodifica, nos orientando depois em como dar conta do texto-fonte e transportá-lo ao nosso presente.

Em relação à tradução, devemos tratar o texto teatral de forma especial, devido a sua particular relação com o receptor, o público. Embora ele se manifeste como texto escrito, é, contudo, determinado para ser falado no palco e é nessa encenação que ele realiza, de fato, sua função. Assim, o texto dramático resulta em uma comunicação direta com o espectador.

Nesse sentido, é possível que uma tradução mantenha o significado de um texto original? É possível uma sobrevida ou uma ressurreição? Ora, o trabalho do tradutor não se restringe às expressões linguísticas adequadas, mas cabe a ele buscar também, nos elementos teatrais, situações a lhe propiciar uma realização compatível com as funções originais. Possível ou não em sua integridade, nos interessa, fundamentalmente, a recuperação dos clássicos ao longo da história, adaptados à realidade que circunda cada público receptor. No

55 entanto, há uma tendência em insistir na análise dos aspectos em que um determinado autor não se aproxima de outros e uma desconsideração do que se pode firmar como sua individualidade. Daí, se considerarmos pertinente a ideia de que os autores mortos se consolidam e afirmam sua imortalidade nos autores do presente, através da tradição/tradução, poderemos, então, visualizar um autor sem preconceitos e poderemos abordá-lo criticamente com maiores probabilidades de sucesso (ELIOT, 1989: 22).

A tradição insiste no diálogo com o cânone para recuperar o que houve de instigante, inquieto e desafiador nas obras do passado; seria o caminho percorrido pela obra ao longo do tempo, mas também sobre as relações sociais erigidas em torno dela, ou seja, a obra renasce a partir de um diálogo entre os autores do presente em relação aos do passado para entrar na tradição e dela participar, pois a herança do passado é algo tão somente obtido mediante grande esforço.

Desse modo, quaisquer das definições apresentadas para tradução e adaptação, a transposição, a interpretação e a recriação apresentam-se como procedimentos-chave. Todas as noções apontam para o fato de haver um ponto de partida com um ou vários sentidos pré- determinados que não pertencem ao adaptador ou ao tradutor, mas que são por ele reinterpretados primeiro, para, em seguida, serem recriados, reexpressos (HALL, 2005: 40) .

O título principal, Medeia em seus espelhos, justifica-se porque o espelho nos oferece simultaneamente a imagem do real e o seu duplo, nos possibilita confrontos, desdobramentos e inversões, visto que as elaborações em torno do mito de Medeia compreendem um extenso e complicado entrelaçamento de lendas da mitologia. Assim, o espelho representará as variantes do mito de Medeia em suas releituras para a dramaturgia grega, brasileira e cubana. O prazer da descoberta de um texto em outro, neste mundo que é da literatura dramática, está intimamente relacionado ao ato da especulação. Até porque observamos o palco tal qual o espelho.

56 Assim, se Medeia é uma estrangeira, excluída por não corresponder aos parâmetros gregos de mulher, é também triplamente deslocada (por trair a família; por perder a legitimidade de uma pátria e ter dificuldade de pertencimento a qualquer outro país e por ser uma mulher que desafia as convenções); também Virgínia, Ismael e María encontram-se mergulhados nesse fosso que promove a exclusão daqueles que não se inserem no perfil idealizado pela sociedade colonialista europeia.

Não se pretende esgotar o assunto, nem proferir “verdades absolutas”, mas propor uma

comparação, apontando para a vasta rede de confluências que entretece os ricos exemplos de conexões com o mito grego Medeia: Eurípides, Nelson Rodrigues e José Triana. Essa

reapropriação engendra um caminho “iluminado” pela contemporaneidade, e nos faz

questionar a todo instante sobre a emergência da revitalização dos clássicos, que exige do leitor contemporâneo um esforço de reconhecimento; talvez não da importância do mito em si, mas quem sabe das motivações desse reaparecimento. Por isso, é inegável a necessidade de compreendermos essas reescritas. Que sociedade é essa, exigente do reaparecimento de temas universais como conflitos familiares, traição, amor e ódio, vida e morte, vingança e perdão? O que a história de uma traição matrimonial, de uma vingança terrível, de uma mulher que não tinha nada a perder poderia ressignificar em tempos e espaços tão distintos do grego da Era Clássica?

Ora, o homem ocidental moderno necessita afirmar o seu lugar na difusa tradição cultural que o cerca, levando-se a buscar deliberadamente a incorporação do velho ao novo em um processo de desconstrução e reconstrução por meio dos recursos estilísticos encontrados, por exemplo, na ironia e da inversão, pois “cabe o distanciamento e o deslocamento para se pensar o universo da cultura, em geral, o da literatura, em particular” (MARQUES, 2002: 49-50).

57 Assim, a nova semente lançada por Nelson Rodrigues e José Triana nos faz relembrar que os gregos, brasileiros e cubanos enfrentaram condições sócio-históricas adversas e sombrias, com sonhos tão despedaçados e crenças tão abaladas quanto o de qualquer cidadão da polis. A esperança na melhoria das condições de vida dos oprimidos e marginalizados são complementados através da renegociação e reconfiguração das identidades culturais e de suas subjetividades. Culturas previamente silenciadas ressurgem e recuperam o seu espaço como parte da nova nação e os binários raciais, renegociados em função de uma humanidade comum, ultrapassam as linhas divisórias racistas em prol de uma causa nacional.

Nesse sentido, podemos dizer que há um aspecto significante de Medeia como uma agente socialmente transgressiva em suas ações, elevando-a a um nível heróico, tornando-a uma igual, se não superior ou adversária para seus colegas do sexo masculino. Ela é a vingadora, a juíza e a carrasca.

De Ésquilo a Eurípides, reconhecemos a persistência fecunda da tragédia ou da ideia de trágico ao longo dos tempos. A questão do sacrifício, da hamartía, da reviravolta, da fortuna trágica, da hýbris, da luta contra a ordem estabelecida, da vida que emerge da morte

foi incorporada pelos autores contemporâneos à sua própria tragédia enquanto “forma”

artística digna de ser revificada. Pretendemos, portanto, discutir aspectos dessa reelaboração, analisando as motivações políticas, sociais e ideológicas dos autores em questão e, em especial, o lugar do trágico em suas obras.

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