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CAPÍTULO I – E STUDOS COMPARADOS : UMA REVISÃO TEÓRICA

1.2 Ecos da tradição: a paródia, a apropriação e a adaptação, na recriação dos clássicos

1.2.2 A adaptação e a apropriação como ecos da tradição

A adaptação pressupõe ressignificação e, nesse sentido, podemos dizer que a renovação dos clássicos é sempre uma releitura iluminada pelas luzes da contemporaneidade. É certo que as noções de apropriação e adaptação se assemelham na sua capacidade de

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“reconstruir” o passado, bem como na assimilação de alguns aspectos dos textos-fonte. A

apropriação costuma ser dificilmente perceptível até mesmo pela forma como se apresenta aos nossos olhares, vorazes em identificar a mais ínfima relação de um texto “cópia” com o seu

“original”. “No entanto, os textos apropriados não são claramente assinalados ou

reconhecíveis como no processo de adaptação” (SANDERS, 2006: 26)4. Assim, Julie Sanders particulariza e distingue adaptação de apropriação, demonstrando que ambas se diferenciam na forma como explicitam a sua intenção intertextual, pois a apropriação pode nos oferecer um produto cultural renovado (Ibidem). Esse movimento de transposição requer um determinado grau de fidelidade ou equivalência, e a adaptação poderia constituir-se enquanto tentativa de tornar compreensível ao público atual textos considerados relevantes (Idem: 19).

Para Sanders, há duas categorias de apropriação: textos embutidos (embedded texts) e apropriações contínuas (sustained appropriations). Os textos embutidos seriam aqueles que, embora não se definam claramente como adaptações, reelaboram um texto (ou textos) em novos contextos de representação. As apropriações contínuas, por outro lado, tornariam subliminares as referências e os textos utilizados na sua escritura, ou seja, o autor não declara abertamente a fonte inspiradora. O texto final deve, assim, transitar entre a homenagem e o plágio (Idem: 26).

O pastiche e a paródia têm sido confundidos com adaptação. Embora os três sejam práticas dialógicas, o pastiche se traduz por uma imitação estilística de um dado autor e a paródia por uma transformação lúdico-irônica do hipotexto; já a adaptação, em particular as de obras distantes no tempo que se valeram de convenções estético-linguísticas remotas, preza pela manutenção do sentido original de um texto e pela preservação de determinadas referências culturais.

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Tradução minha de: “But the appropriated text or texts are not always as clearly signalled or acknowledged as

43 O próprio trabalho da adaptação e dos adaptadores dependerá do processo aferido dessa cultura tradicional cultivada (PAVIS, 2008: 13) e do apoderamento desses em relação à cultura-fonte (Idem: 15), adequando-a ao presente. Por meio desses procedimentos, inserem- se na contemporaneidade os reflexos e ecos do passado. É nesse aspecto que julgamos prudente afirmar a imortalidade dos clássicos, pois eles “hibernam para renascer mais

pujantes” (DOURADO, 2003: 59-60). Contudo, qual seria a intenção de quem, consciente ou

inconscientemente, apodera-se do passado e o faz revisitar o presente?

Uma análise prévia das peças selecionadas – Medeia, de Eurípides; Anjo Negro, de Nelson Rodrigues e Medea en el espejo, de José Trina – aponta para diversas questões relativas não apenas ao fazer artístico da contemporaneidade e à identidade cultural, mas também à atualização dos temas gregos em função das condições culturais das sociedades brasileira e cubana.

Sob tal pressuposto, vale lembrar que a identidade cultural na América Latina encontrava-se amarrada ao seu passado colonial ou ao anseio de cada colonizado em se aproximar de um branco (europeu) e negar sua origem, visto que o colonizador, em geral, relega o colonizado à condição de inferiorizado. Esse distanciamento étnico-cultural só é possível a partir de uma construção histórica empreendida pelos europeus através da colonização. Antes da colonização, ao africano não era concebível o sentimento de inferioridade. A negação de si e da identidade, dos valores e da cultura africanos, foram sentimentos, de certo modo, impostos pelos europeus (FIGUEIREDO, 1998: 64). Assim, justifica-se a violência empreendida e a exploração que, gradativamente, provocará a invisibilidade do negro.

Identificamos, por exemplo, tanto no caso do negro rodriguiano Ismael – homem bem sucedido, formado em medicina (curso de prestígio para a elite brasileira da época), tomado pela teoria do embranquecimento – quanto no caso de María – a mulata que recusava o

44 reconhecimento de sua imagem refletida no espelho, em razão dos traços que a aproximavam do grupo social excluído na sociedade cubana – temos a recusa da etnicidade negra e a busca pelos ideais estéticos da população branca.

Segundo Franz Fanon, “o negro quer ser branco e o branco incita-se a assumir a condição de ser humano” (FANON, 2008: 27), ou seja, na tentativa de afirmar a superioridade

branca sobre a negra, o segundo grupo, de forma passiva, confirmaria sua inferioridade. Assim, nesse importante estudo realizado por Fanon em relação aos conflitos psicológicos do negro na sociedade branca, esse sujeito negro pode ser “aprisionado” numa alienação imposta pelo racismo e pela ideologia colonial, que acaba por constituí-lo como indivíduo inferior. Fanon propõe a desalienação do negro, libertando-o de si mesmo. Portanto, acreditamos na importância do teórico para a interpretação das personagens Ismael, de Nelson Rodrigues e María, de Triana. Também a esse respeito, José Petrônio Domingues (2002: 579-580) e Teresinha Bernardo (2007: 78) discorrem que esse processo de branqueamento não ocorre somente no campo biológico, mas também como fenômeno psíquico. Para Maria Aparecida

Silva Bento, “quando se estuda o branqueamento constata-se que foi um processo inventado e

mantido pela elite branca brasileira, embora apontado por essa mesma elite como um

problema do negro brasileiro” (2002: 25). Para Andreas Hofbauer esse conceito é um produto

histórico-cultural e para o entendermos precisamos também compreender o significado de ser negro e escravizado no Brasil Colônia (2006: 29); pois, ainda que a escravidão fosse uma ação recorrente na história da humanidade, a questão fenotípica ligada ao africano traz outros vieses para se explicar a ideologia do branqueamento, já que “o critério de cor traz uma nova

qualidade aos processos de inclusão e exclusão” (Idem: 35) do negro no seio da sociedade.

Assim, Ismael e María buscam a branquitude enquanto elemento aproximador dos valores culturais da civilização da metrópole. Esse comportamento, no entanto, representa o esquecimento das suas origens culturais: Ismael tem o desejo de ser poderoso, de possuir as

45 mesmas propriedades do ser e do ter do branco; a María, não conseguindo afirmar sua humanidade, não podendo se afirmar, resta fazer-se branca através do seu corpo e do seu pensamento, relacionando-se com um homem branco.

Neusa Santos Souza nos apresenta uma explicação para a impiedade do racismo do branco contra o negro na intenção de destituir-lhe de sua identidade. É a partir da construção desse ideal de branqueamento que o sujeito se reformula erroneamente, pois nega sua

identidade em detrimento da “posse” de uma “face” que não lhe pertence: a branquitude, pois, “o negro, no desejo de embranquecer, deseja a própria extinção (...) é o desejo de não ser ou não ter sido (...) e o sujeito negro a repudiar a cor, repudia, radicalmente o corpo” (SOUZA,

1983: 3).

Fanon e Souza nos propõem como se efetiva a construção e/ou desconstrução do

“outro” e como o negro constrói sua identidade através da ideologia colonizadora. Nesse

sentido, as adaptações de Rodrigues e Triana vêm ao encontro de nossa interpretação de

Medeia, pois incorporam uma ação redentora similar às personagens criadas por um e outro: a

morte dos filhos. Ao cometerem o filicídio ocorre o despertar dessas personagens que

estiveram “adormecidas” por um tempo, e, ao destruírem sua descendência, elas pensam que

conquistam sua libertação. Talvez aqui esteja uma hipótese para a recuperação dos clássicos em territórios cujos contextos históricos clamaram por um mito libertador. Nas referidas peças, podemos considerar que é matar a prole.

Portanto, a adaptação é capaz de dar vida a uma obra inspiradora e reconstituí-la no contexto atual de sua recepção, concebendo uma múltipla rede de adaptações apresentadas ao olhar das novas gerações de leitores. No entanto, para que essa recepção seja bem sucedida, o público leitor precisa reconhecer as referências “mitológicas” reapresentadas ao seu olhar sob outra roupagem (PAVIS, 2008: 43).

46 A adaptação, então, apresenta dupla função: a de transformar a herança em elementos novos e veicular uma crítica contemporânea, fundamentada na transgressão paródica realizada. Assim, podemos dizer que a adaptação é um processo de reinterpretação, o que frequentemente implica na remodelagem cultural do texto original ou fonte (SANDERS, 2006: 97).

Em nosso caso, a adaptação se estende para além da alusão e se apresenta como uma reelaboração em que a fonte é bem conhecida: o mito de Medeia. Assim, a possível adaptação, apropriação ou paródia trabalha com um texto-fonte conhecido e reconhecível, é reescrito continuamente, reelaborado e reinserido em novos contextos para o deleite de novos públicos, conforme se pode verificar nas peças teatrais que dialogam com o mito em questão.

Julie Sanders particulariza e distingue “adaptação” de “apropriação”, defendendo que

ambas se diferenciam na forma como explicitam a sua intenção intertextual. Enquanto a adaptação faz referência à relação com o texto original, a apropriação aponta certo distanciamento da fonte. Enquanto a adaptação opera de maneira mais direta sobre o original, a apropriação distingue-se pelo potencial de modificá-lo (SANDERS, 2006: 26). Nesse entrecruzamento proposto pela apropriação e pela adaptação, renasce o conceito de cultura. Nesse caso, o uso da ampulheta, metáfora empregada por Patrice Pavis, ilustra a

“transposição” desse processo.

A transferência cultural não apresenta um escoamento automático, passivo, de uma cultura para outra. Ao contrário, é uma atividade comandada muito mais pela bola

“inferior” da cultura-alvo e que consiste em ir procurar ativamente na cultura-fonte,

como que por imantação, aquilo de que necessita para responder às suas necessidades concretas (PAVIS, 2008: 43).

Podemos compreender essa transposição como um processo ativo, mais influenciado pela cultura-alvo, em sua busca sedenta pela cultura-fonte como mecanismo de inspiração, do que o contrário. Aqui não cabe o sentido de inferioridade, mas pensar os sentidos de

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autenticidade e simulacro surgidos em virtude da necessidade de se legitimarem “textos- fonte” autorizados.

No debate em torno do significado dos termos adaptação e apropriação no campo da intertextualidade, encontram-se, potencialmente relacionadas ao processo criativo, a dependência e a originalidade de um autor. No desdobramento intertextual, nascente da

metáfora das “dobras da memória”, proposta por Calvino, valorizamos a nossa capacidade de

reconhecimento dos ecos e reflexos da tradição canônica em textos modernos. Essa capacidade de releitura dos autores que nos propomos a estudar, apresenta-se como um elemento chave para a nossa compreensão do gênero adotado em cada um deles para fazer ressurgir um mito surpreendentemente apropriado, adaptado e parodiado através do tempo. Tempo esse responsável pelas inúmeras camadas que recobrem esse mito e se responsabilizam pelas nuances advindas das novas formas de pensar, ver e se relacionar com o mundo.

Em termos de linguagem teatral, a recuperação do mito realizada nas obras de Eurípides, Nelson Rodrigues e José Triana apresenta-se atemporal, permeada por questões particulares ao contexto histórico que cada autor experienciou, referenciando, evidentemente, a Grécia Antiga pós-guerra do Peloponeso, no caso de Eurípides, o Brasil da década de 1940, em Nelson Rodrigues e a Cuba pós-revolucionária, de José Triana.

A persistência do trabalho desses autores afugenta o esquecimento e promove a sobrevivência de obras clássicas através das dobras quase mortíferas do tempo, o que pressupõe a adaptação como forma de reavivar leituras, gerando releituras contínuas do considerado imortal (SANDERS, 2006: 24).

É preciso ainda reforçar que esse processo de “recriação” que deseja a adaptação, a

apropriação e/ou a paródia se entrelaçam à “intertextualidade”. Sem o conhecimento de tais

48 que um clássico provoca nas colunas da tradição. As apropriações contínuas, por outro lado, são aquelas que tornam ainda mais subliminares as referências e os textos utilizados na sua escritura. Nesse sentido, torna-se pertinente a discussão sobre os direitos autorais, pois, uma vez que o autor não declara abertamente a fonte de inspiração, o texto final deve transitar entre a homenagem e o plágio.

De fato, essa perspectiva pode ser criticada se ampliarmos a compreensão da noção de apropriação e refletirmos sobre a possibilidade de ela estar inevitavelmente presente, em maior ou menor nível, em qualquer adaptação, assumida ou não, dialogando com incontáveis textos, reconhecidos ou não.

Devemos ter em vista que a análise proposta das obras de dois dos autores (Nelson Rodrigues e José Triana) enfocados nesse trabalho referencia criticamente seu precursor (Eurípides), ao abordar Medeia como uma obra revisitada. Vemos, nesse sentido, tais autores a partir de suas capacidades de parodiar, adaptar, apropriar, de trazer à tona lacunas, ausências, silêncios, ruídos e presenças do texto canônico.

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