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Como salientado, a afluência da água nas poéticas de Federico García Lorca e Cecília Meireles é corriqueira, erigindo, além dos simbolismos relacionados a Tânatos, também correlações simbólicas com Eros. Num extremo, as águas lutuosas são as águas escuras, estanques, pútridas que carreiam a morte e a desagregação. Noutro extremo, considerando a polivalência do elemento aquático, as águas embalam a vida, carreando

a iluminação e a transcendência. Simbolismo de base, a água vitaliza, purifica e regenera.

Segundo Chevalier & Gheerbrant (2000, p. 21), a água tem valorização feminina, sensual e maternal, sendo a água do lago, noturna, leitosa e lunar, onde a libido desperta. Ainda segundo os estudiosos dos símbolos, mais próximo do Eros grego, o desejo amoroso significa poder de unificação e de conexão, traduzindo-se no sentindo intelectual de união para os místicos. Por isso, “a união sexual é a repetição da hierogamia primeira, do enlace do Céu e da Terra, do qual nasceram todos os seres” (2000, p. 376).

Assim, água e libido enleiam a mística do desejo, erotismo latente, ostensivo na poética lorquiana e ocasional na poética de ceciliana. Em linha com Jesus Antônio Durigan, erotismo origina-se do grego “erotikós” (na etimologia da palavra, eros). No seu dizer, “mais tarde, a psicanálise transformou-o em símbolo da vida, princípio da ação. E sendo seu oposto Tânatos, símbolo da morte, princípio da destruição” (DURIGAN, 1985, p. 30). Citando Freud, o estudioso lembra que as sensações sexuais não são apenas genitais envolvendo também os processos psíquicos. O erótico está para além do sexual, pois as sensações do homem em contato com a natureza, por exemplo, podem estar carregadas de erotismo. Desse modo, o sensual instiga os sentidos como o contato da água no corpo, o que desperta o erótico, mas não necessariamente a libido sexual.

Em Federico García Lorca, o erotismo é efusivo, resvalando para o que os estudiosos apontam como erotismo místico. Ilustrando o erotismo lorquiano isolado do elemento água, sensualidade e vigor despontam como no poema “Casida de la mujer tendida”, de Divan del Tamarit (1936):

Verte desnuda es recordar la tierra. La tierra lisa, limpia de caballos. La tierra sin un junco, forma pura cerrada al porvenir: confín de plata.[...]

Tu vientre es una lucha de raíces, tus labios son un alba sin contorno, bajo las rosas tíbias de la cama los muertos gimen esperando turno. (GARCÍA LORCA, 1989, p. 552-554)

O desejo lorquiano não se contém, derrama-se. Na descrição da mulher, sobejam símbolos da sua nudez, profunda como a terra e isenta de companhias. Ampla nudez, a forma é pura a reinar soberana na natureza: “confín de plata”. Acentuando o hermetismo, o ventre exprime a luta das oposições enraizadas, ao passo que os lábios desenham uma aurora sem contorno. Cerrando o simbolismo erótico com Tânatos, no verso final, “los muertos gimen esperando turno”. Aliança sinistra, na cama, locus do prazer, Tânatos aflora nos mortos que gemem querendo copular, o que sugere a sede de prazer também da morte.

Aliando o erotismo lorquiano às águas, ressuma o fervor dos sentidos na exaltação do mistério sensual. O poema “Casida de la muchacha dorada”, de Divan del Tamarit (1936), tangencia esse erotismo nas águas de Eros:

La muchacha dorada se bañaba en el agua y el agua se doraba. Las algas y las ramas en sombra la asombraban y el ruiseñor cantaba por la muchacha blanca. Vino la noche clara, turbia de plata mala, con peladas montañas, bajo la brisa parda. La muchacha mojada era blanca en el agua y el agua, llamarada. Vino el alba sin mancha con mil caras de vaca, yerta y amortajada con heladas guirnaldas. La muchacha de lágrimas se bañaba entre llamas, y el ruiseñor lloraba con las alas quemadas. La muchacha dorada era una blanca garza y el agua la doraba.

(GARCÍA LORCA, 1989, p. 556- 558)

Versos enxutos, a delicadeza recobre de musicalidade o poema na estrofação alternada das terças e quadras. Em cena, um momento íntimo, o banho lustral de uma

“muchacha dorada” que transmite seu calor à água, dourando-a gradativamente. Por si só erótico, esse quadro poemático envolve o banho, a água, a moça e a natureza. Todavia, a nudez da moça sequer é aventada. O tom ritualístico tinge de elevação o erótico.

Marcante no ritual em curso, a natureza animizada é testemunha da transformação que, verso a verso, se processa. O rouxinol, por exemplo, canta “por la muchacha blanca” na segunda estrofe. Segundo Chevalier e Gheerbrant (2000, p. 791), este cantor mágico da noite, mensageiro da aurora e da separação, “é para todos os poetas o cantor do amor”, aquele que “mostra em todos os sentimentos que suscita, o íntimo laço entre o amor e a morte”. Já nesse momento, a brancura da moça pode indicar certa pureza, o que se opõe a sua tez dourada na primeira estrofe.

Acerca da brancura reiterada, os estudiosos dos símbolos afirmam que o branco é uma cor de mudança nos ritos de passagem através dos quais se operam as mutações do ser, morte e renascimento, podendo introduzi-lo ao mundo lunar, frio e feminóide (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2000, p. 141-142). Ademais, o dourado inicial da pele aciona a transmutação também da água que se torna “llamarada” na quarta estrofe. Em via incessante, a água em contato com o corpo transforma-se em “llamas”. De igual modo, na estrofe final, a moça, que era “blanca garza”, passa a ser dourada pela água.

Essa reversão entre o dourado e o branco, entre a água e as chamas, desvela o ritualismo alquímico do poema. A água erótica toca e sensualiza o corpo, instigando a mudança. Sagrado é o corpo, sagrada é a transformação, por isso o erotismo é místico. Em conformidade, Chevalier & Gheerbrant (2000, p. 119-120) assinalam que o banho é o primeiro dos ritos e, em acepção alquímica, “pode ser interpretado como uma purificação através do fogo e, não, através da água”. Assim, nas abluções herméticas da alquimia, o banho é uma operação de natureza ígnea sendo a água também qualificada como ígnea.

Essa alquimia um tanto rudimentar transcorre em sintonia com a natureza viva. Em García Lorca, a natureza é agente, tem alma e paixões: “vino la noche clara / turbia de plata mala”. A claridade, a prata e o opaco remetem ao isomorfismo ambíguo do astro lunar. Ainda conforme Chevalier e Gheerbrant (2000, p. 739), a prata é símbolo de pureza relacionado à lua, “princípio passivo, feminino, aquoso, frio”, opondo-se ao ouro, “princípio ativo, macho, solar, diurno, ígneo”.

Essa claridade argêntea da lua ilumina a “muchacha mojada”, “blanca en el agua”, líquido que, neste ponto, já se inflamou em “llamarada”. O contraponto das

imagens lunares com as derivações do simbolismo solar traz, numa gradação, o dourado, a labareda e as chamas. Aqui, as imagens do fogo não aludem à conotação sexual, mas à efusão dos sentidos, mística erótica peculiar à poética lorquiana. Nesse sentido, o fogo incendeia a água, indicando a alquimia que transmuta a moça dourada na ave branca. Fogo e água, portanto, emblemam a conjunção dos contrários, as núpcias alquímicas no poema.

O rito prossegue operando alquimias paralelas que articulam novas oposições. Na quinta estrofe, “el alba sin mancha” reitera a pureza aventada nos símbolos do arquétipo lunar. Tal imagem combina-se, porém, “con mil caras de vaca / yerta y amortajada / con heladas guirnaldas”. Segundo o simbolismo védico, a vaca corresponde à aurora primordial e no Tao-Te King (cap. 6) designa a fêmea misteriosa, o princípio feminino, origem do céu e da terra. Por seu turno, o simbolismo upanixádico instrui a relação da vaca com o fogo sacrificial e ainda com a capacidade de iluminação do homem para escapar das limitações da existência (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2000, p. 927). Assim, ao imaculado da aurora afivelam-se estranhas máscaras: mil caras de vaca, rijas e envoltas na mortalha fria das flores, grinaldas decadentes. Culminando as oposições, na sexta estrofe, a água em chamas incendeia as asas do rouxinol. O pássaro-cantor, outrora amante da noite, agora chora ao invés de cantar. E a moça, outrora branca, agora se desfaz “de lágrimas”.

A estrofe final conclui a travessia alquímica. Assim como a fênix se levantava com a aurora, no poema, a “alba sin mancha” prenuncia o êxito da obra. Como o pássaro mítico que evoca o fogo criador e destruidor; a garça branca, obra alquímica, tem o poder de se consumir no fogo para ressurgir no estado inicial (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2000, p. 422). Ao final, esse aspecto desvela-se: “La muchacha dorada / era una blanca garza / y el agua la doraba”. Reversão dos símbolos, o poema termina voltando ao princípio da água ígnea a dourar o corpo da moça, agora garça branca. Assim, encenando um erotismo místico, a água erótica amalgama os contrários, no simbolismo lunar e solar, construindo a obra alquímica, transmutação da moça na ave branca.

Em oposição ao poeta espanhol, o erotismo ligado à água é sutil e pouco ostensivo na poética ceciliana. Nesse particular, os poemas que resvalam para o erótico, revelam também a mística dos sentidos, fascínio do desejo no corpo. O poema “Cavalgada”, de Viagem (1939), ilustra esse segmento pouco explorado na lírica da poeta:

Meu sangue corre como um rio num grande galope,

num ritmo bravio,

para onde acena a tua mão. Pelas suas ondas revoltas, seguem desesperadamente todas as minhas estrelas soltas, com a máxima cintilação. Ouve, no tumulto sombrio, passar a torrente fantástica! E, na luta da luz com as trevas, todos os sonhos que me levas, dize, ao menos, para onde vão! (MEIRELES, 2001, p. 283)

O rio é a grande metáfora do poema, simbolismo das águas que emblema o erotismo febril da poeta. De sensualidade vertiginosa, o que o corpo sente é quase palpável. Isto se dá pela reiteração das imagens nas analogias que fundem suas sensações físicas à eroticidade do fluxo das águas. O ponto de partida é o aceno da alteridade. O toque do outro desencadeia o furor das reações. Sensitivo e receptivo, o corpo desperto pelo desejo responde com impetuosidade.

O verso inicial Ŕ “meu sangue corre como um rio” Ŕ emparelha sangue e rio. Hipérbole e comparação, dessa imagem irradiam as outras, ampliando os sentidos de um desejo caudaloso. Ora, o fluxo do sangue é como o fluxo do rio, porque imenso é também o fluxo do desejo. Ele corre “num grande galope” e “num ritmo bravio” em direção a mão que lhe tenta e provoca. Outra analogia importante, a corrida do desejo tem o impulso de um galope, ágil e indomável. Nesse ponto, significativo é o título do poema Ŕ “Cavalgada” Ŕ que reúne esses simbolismos, pois representa a cavalgada do desejo rumo ao prazer dos sentidos.

A segunda estrofe modula o simbolismo das águas, mimetizando o desejo manifesto. Na metonímia, “ondas revoltas” impelem a busca incontida do prazer. Nesse estado, o corpo é um emaranhado de “estrelas soltas” que tem “a máxima cintilação”. A exaltação do prazer no desejo desperto é avassaladora. Eros, o desejo irrefreável, torna livres as sensações físicas como se fossem estrelas. E também torna máxima a intensidade das sensações. Cintilância e liberdade dizem, assim, do prazer extremo do eu-lírico.

A estrofe derradeira interpõe o colóquio do eu-lírico com o amante. Ela roga, no torvelinho das sensações, que ele ouça a “torrente fantástica” dentro de si. E também, no seu embate interior “da luz com as trevas”, que ele lhe diga para onde a leva nos sonhos de então: “todos os sonhos que me levas, / dize, ao menos, para onde vão!”. A comunhão desponta da intimidade entre os amantes. O diálogo flui, a sintonia não parece impossível. Eros, finalmente, suspira. As águas eróticas deram-lhe alguma sobrevida e a cavalgada, duplicado vigor.

Neste capítulo, a exploração do Eros lorquiano e ceciliano confima o arroubo e o erotismo do poeta espanhol, em contraponto à contenção da poeta brasileira. Com relação à Afrodite, sua presença é ostensiva na poesia lorquiana, encobrindo-se nos seus mitemas na poesia ceciliana. Acerca da lua, o simbolismo lunar é corriqueiro nos dois poetas, modulando com frequência o simbolismo de Eros e Tânatos. E, por fim, acerca do erotismo das águas, no espanhol, a emergência da água revela, muitas vezes, um erotismo místico ligado à efusão dos sentidos. Já, na brasileira, em simbiose com a água ou fora dela, o erotismo é difuso e incidental, pouco perceptível.

CAPÍTULO 3: EROS E TÂNATOS: A INARREDÁVEL DESTRUIÇÃO

O amor é um lembrete da nossa mortalidade. (MAY, 1992, p. 113) O que caracteriza a paixão é um halo de morte. (BATAILLE, 1987, p.16)

Este capítulo discute o duelo de Eros e Tânatos na destruição que, muitas vezes, instauram na poética de García Lorca e Cecília Meireles: de início, o embate opressor à luz das considerações de Georges Bataille e Sigmund Freud; na sequência, o entusiasmo do mito de Dioniso e a elevação do mito de Apolo associados ao simbolismo de Eros e Tânatos; e, por fim, os símbolos emergenciais da paixão tanática, isto é, os símbolos do amor sombreado por Tânatos.