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Álvaro de Campos

No documento Cristo em Pessoa (páginas 36-64)

3 FERNANDO PESSOA

3.2.3 Álvaro de Campos

O poeta ou o homem da modernidade, o engenheiro mecânico e naval, também é o homem da emoção, característica eloquente em seus poemas, como diz o próprio Pessoa, “pus em Àlvaro de Campos toda a emoção que não dou em nem a mim nem à vida” (PESSOA, 2008). Álvaro de Campos viaja pelos sentimentos, ele os expõe e para ele são elementos importantes, como eles diz “Afinal, a melhor maneira de viajar é sentir. Sentir tudo de todas as maneiras./ Sentir tudo excessivamente/ Porque todas as coisas são, em verdade excessivas.”(CAMPOS, 2008). Talvez isso assim seja pelo tempo em que nasceu, ou sua personalidade, impressas nele por Fernando Pessoa. A seguir, há um pouco de sua história.

O seu nascimento também é narrado na mesma carta do “Dia Triunfal”:

Aí por 1912, salvo erro (que nunca pode ser grande), veio-me à ideia escrever uns poemas de índole pagã. [...] Àlvaro de Campos nasceu em Tavira, no dia 15 de Outubro de 1890 (às 1:30 da tarde, diz-me Ferreira Gomes; e é verdade, pois, foi feito o horóscopo para essa hora (por Glasgow), mas era de estatura média [...] (PESSOA, 2008)

E ele continua descrevendo outros aspectos físicos da pessoa literária. Mas o que é relevante aqui é a sua poética, que difere do outro discípulo de Caeiro, pois é o único a

possuir fases poéticas. Os campos foram diferenciados por Jane Tutikian na introdução a obra do heterônimo na coleção de poemas da L&PM como: o Campo pré-Caeiro ou decadentismo, com o poema referente a esse momento: “O Opiário”, em que se revela um eu-lírico descontente e amargurado. “É antes do ópio que a minh’alma é doente.”, diz seus versos, sobretudo já pelo título a que recebeu percebe-se o espírito pessimista frente ao contexto industrial crescente na escrita de Campos.; o Campo Eufórico, quando Campos conhece o mestre Caeiro, o poeta produz sobre a influência de Walt Whitman e prima em seus conteúdos a modernidade, é desse momento os versos “À dolorosa luz das grandes lâmpadas/ eléctricas da fábrica/ Tenho febre e escrevo./ Escrevo rangendo os dentes”(CAMPOS, 2008). E a última fase é a do “Desencanto”, em que o heterônimo se mostra melancólico, tedioso e disfórico. Deste momento, há os versos “Não sou nada./ Nunca serei nada./ Não posso ser nada./ À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.”(CAMPOS, 2008), para exemplificar.

Moisés (1986) escreveu um parágrafo sucinto sobre o poeta, que permite a visão geral de Álvaro de Campos:

Álvaro de Campos é o poeta moderno, século XX, engenheiro de profissão, que do desespero extrai a própria razão de ser e não foge de sua condição de homem sujeito à máquina e à cegueira dos semelhantes, tudo transfundido numa revolta a um tempo atual e perene, própria dos espíritos inconformados: “Na véspera de não partir nunca/ Ao menos não há que arrumar malas/ Nem que fazer planos de papel”. (MOISÉS, 1986, p.300)

A maior parte dos poemas tem métrica livre, frutuoso uso da figura de linguagem onomatopeia, aliteração, hipérboles e metáforas, a extensão varia, também nota-se a utilização de estrangeirismos e neologismos. Num muito conhecido poema, “ODE TRIUNFAL”, datado em 1914, enxerga-se alguns desses fenômenos literários. Por exemplo, nos versos “Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r-r-r eterno!/ Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!”(CAMPOS, 2008) em que se vê o barulho transportado à linguagem lírica, além do empréstimo de sentimentos ao equipamento e o visível exagero ao se expressar.

Como já é de se esperar, pelo projeto de missão pagã do heterônimo criado por Fernando Pessoa, o poeta seguidor do Descobridor da Natureza desaprova a religião, repele-a, afasta-a. Ela é vista como consoladora dos fracos, como se observa nos versos a seguir: “Dá- nos a Tua paz,/ Deus Cristão falso, mas consolador, porque todos/ Nascem para a emoção rezada a ti;/ Deus anti-científico mas que a nossa mãe ensina;/ Deus absurdo da verdade absurda (...)”(CAMPOS, 2008), como esbraveja nesse poema. E, assim, delineia-se o terceiro

A seguir, o ortônimo será o protagonista. Agora de maneira mais detida, olharemos os seus poemas pela perspectiva interpretativa de Garcez (2016). E neste trabalho, a análise do que diz o eu lírico situa-se na arquitetura do método disputatio proposta para releitura da obra de Pessoa em relação com a mística cristã na parte do Sed contra. Isto é, após a questão ou tese em pesquisa no trabalho: Fernando Pessoa parece abandonar a filosofia cristã ao longo da sua trajetória literária, foram vistos os argumentos que colaboram com a

questio, Alberto Caeiro com sua missão paganizadora rejeita o cristianismo, assim também

Reis e Campos, e agora chega-se ao “Sed contra (Mas) há o ortônimo”, ou seja a defesa do que já foi exposto. A seguir, há novamente a estrutura para melhor compreensão do texto até então:

QUESTIO

1. Alberto Caeiro

2. Ricardo Reis Os arguens 3. Àlvaro de Campos

Sed contra: o ortônimo diz...

4 O ORTÔNIMO

Fernando Pessoa escreveu poesias enquanto ortônimo que são “surpreendentes”, nas palavras de Garcez (2016), isso porque revelam outra faceta do seu ethos: a que expõe seu relacionamento com Cristo. Principalmente nos anos 1934 e 1935 há poemas que dedica à Igreja, a Jesus e à Virgem Maria, num tom solene e de devoção, contrariamente aos que foram apresentados pelos heterônimos e pelo próprio poeta quando mais jovem. Apesar de que esses continuam em toda a sua trajetória de escritor, mas nesta seção do trabalho privilegia-se o olhar para o caráter mais pessoal de alguns dos seus poemas, em que muitas vezes são marcados pelas menções a sua mãe, aos irmãos e à ama de leite.

Poemas como “Que velho, minha ama,/ Que velhinho já”( GARCEZ, 2016, p.399), “Senhor, meu passo está no Limiar Da Tua Porta” (PESSOA, 2008), “Minha mãe, dá- me outra vez/ O meu sonho”(GARCEZ, 2016, p.437), “A Igreja Católica cobriu como uma redoma”(GARCEZ, 2016, p.441) e “Mãe de Deu, porque a Deus tu o criaste” (PESSOA, 2009, p.432) permitem vislumbrar um pouco mais do eu lírico nesse plano proposto. E entender o que Garcez (2016) diz nesse comentário no seu livro:

Em minha visão, o ortônimo acabou apresentando um perfil com notas diferentes daquele que seus primeiros editores nos deram. Era “fingidor”? Era; era vanguardista? Sim; era o “raciocinador subtil”, “exato”? Isso também estava patente desde poemas de há muito publicados como “Análise” (que agora se nomeia pelo 1º verso: “Tão abstracta é a ideia de teu ser”) e outros. Mas o que ficou mais claramente revelado no ortônimo das edições críticas e completas foi que, mesmo tendo escrito o poema “Isto” em abril de 1933, ele escreveu outros não tão rigorosamente despersonalizados. (GARCEZ, 2016)

Sendo os versos citados antes do comentário alguns dos que revelam esse outro lado pessoa de Fernando Pessoa. E essa citação foi retirada do livro em que há um segmento dedicados a desenvolver a análise de poemas mais pessoais, ou “não tão despersonalizados”. “Uma faceta não despiscienda” é como se intitula o capítulo do livro, escrito por Maria

Helena Nery Garcez, em que se encontram essas ideias com base em poemas do ortônimo analisados por ela.

Um texto que merece ser transcrito por inteiro, e que a autora analisa é o que vem a seguir, pois é decisivo para compreender este segmento do trabalho, já que pode ser entendido como a “solução” para a questio a que nos propomos aqui. Por isso, segue o poema:

A Igreja Católica cobriu como uma redoma Meus dias serenos.

Chamo-lhe agora, com razões, a Igreja de Roma. Sei mais ou sou menos?

Kabbalahs, gnoses, mistérios, maçonarias Tudo tive na mão

Na busca ansiosa que enche minhas noites e dias. Mas nunca no meu coração.

De que é que me deserdou a verdade? A maçã diabólica

Comi-a, e sou outro, mas quanto?! Oh a saudade Da Igreja Católica!

Qualquer cousa de mim quebrou-se, como uma mó Que caísse mal.

Em pequeno eu seguia, magnanimamente só Sem nada fatal.

(20-4-1934)

(GARCEZ, 2016, p. 261) Garcez em estudo chama atenção, ao analisar o poema, para alguns pontos: a especificidade do assunto, isto é, fala-se da Igreja Católica Apostólica Romana, não de qualquer outra: ele diz “Chamo-lhe agora, com razões, a Igreja de Roma” (GARCEZ, 2016, p.261); além disso, ela nota que a “redoma” que cobriu os dias do eu lírico poderia ser como algo alienante e ruim, mas ele diz que, na verdade, esses foram momentos serenos. Além de que a aparente liberdade da “maçã diabólica”, fruto da ciência do bem e do mal, que ele não resistiu ter em mãos, levou-o a um lugar indesejado, vê-se isso pela pergunta “Sei mais ou sou menos?”. Pois, apesar de agora saber sobre “Kabbalahs, gnoses, mistérios, maçonarias”

(GARCEZ, 2016, p.261), isto é, de obter esse conhecimento, isso não guardou em seu coração, ainda mais, esse o afastou da verdade. Esse somatório de informações o afastou de si mesmo. E, então, ele foi obrigado a prosseguir, depois, por não ser “nada fatal” “magnanimamente só”, ou seja, em solidão e como um sobrevivente. O eu lírico claramente conclui que saber mais não significa ser mais, mas pode acontecer o inverso: ser menos.

A “redoma”, segundo o Dicionário Houaiss (2009) versão eletrônica, é uma “1 espécie de câmpula de vidro usada para proteger certos objetos; 2 cúpula de vidro usada para resguardar alimentos” em seus dois primeiros conceitos, considerados mais relevantes aqui. Assim como a câmpula protege e resguarda alimentos, no caso do poema, também podemos entender que o eu lírico sente-se como que “protegido” ou “resguardado”. E o mais interessante é que neste local, na “redoma”, ele não está cego ou impedido de ver. Pois, como guardado por um vidro, que é substância transparente, pode enxergar tudo ao seu redor.

É assim que a Igreja Católica o fazia sentir-se: protegido, talvez limitado em aparência, mas consciente, livre para enxergar o que estava ao seu redor, sem ser atingido. O que superficialmente parece restrição, uma prisão, na verdade, em essência representa um estado de liberdade, em que se sente “sereno” e com a capacidade de livre escolha.

No terceiro verso, imprime-se na inicial descrição da Igreja outra característica, que inclusive é essencial na análise deste trabalho, pois expõe que o poeta fala da Igreja Católica Apostólica Romana, “a Igreja de Roma”, isto é, ele não fala de doutrinas paralelas. Essas vêm mencionadas em seguida, no quinto verso. Quando Fernando Pessoa escreve em exame de consciência, “Sei mais ou sou menos?”, após conhecer mais dessas chamadas “ciências ocultas”. Ele ainda não se contenta, na verdade, o que expressa é decepção. Assim, é da Igreja Católica que sente falta.

Uma antítese interessante que há no poema expressa essa trajetória de Pessoa. A figura de linguagem está no verso “tudo tive na mão” em oposição à “Mas nunca no meu coração”, confidenciando ao leitor que o domínio desses conhecimentos não foi o suficiente para encher-lhe o coração, inclusive nem capazes foram de adentrar esse limite metafórico do que lhe é central, mais profundo, o seu âmago. A partir desses versos é possível compreender um pouco de como o poeta se enxerga na vida no momento, em solidão e vazio.

No primeiro verso do terceiro quarteto, ele se pergunta “De que é que me deserdou a verdade?” (PESSOA, 2009, p. 261) e, em nota de roda pé, há uma variante sobreposta para essa sentença: “De que fui deserdado pela verdade?” (PESSOA, 2009, p. 261). Essas duas possibilidades de leitura que o autor coloca a fim de decidir qual seria a definitiva monta uma discussão interessante a respeito do que é a verdade. Pois, nesse poema,

Fernando Pessoa está realmente em dúvida sobre a utilidade dos conhecimentos que adquiriu até o momento em vida adulta. E agora ele se questiona se essas informações que lhe fizeram “ser menos” são a “verdade” ou não. Como o prefixo da nota é “Sob”, compreendemos que é secundária essa leitura e a que ele primou é a que vemos no poema reproduzido completamente acima: em que o eu lírico se vê faltante da verdade. Isto é, todas essas noites e dias de “busca ansiosa” em que acabou por caminhar em direção ao “kabbalahs, gnoses, mistérios, maçonarias” acabaram na não verdade, na inverdade ou mentira.

A maçã foi mordida, “Comi-a, e sou outro (...)” (GARCEZ, 2016, p. 261). Esse fruto, que entre as suas simbologias, está a de natureza cristã como o “primeiro pecado” (BECKER, 1999, p.175), foi provado pelo eu lírico do poema e isso o transformou, mas como? Fernando não deixa dúvidas da interpretação neste caso, pois coloca a “maçã” na categoria de “diabólica” e, assim, conta-nos que, no uso de sua liberdade, escolheu, então, aprisionar-se longe daquele é a Liberdade, decidiu viver só, “magnamente só”. Ele agora é pequeno, duro, sofrido por tão amolado que é, como uma “mó”. Nem utilidade tem mais, pois essa pedra pequena circular usada para afiação de facas a que se compara ainda caiu e de nada serve. Em um triângulo invertido, o poema começa em movimento descendente, quando menciona-se a Igreja Católica, instituição que pela própria etimologia da palavra remonta universalidade, grandeza e termina com visão de um miúdo objeto mineral. Essa condução que faz o poema faz-nos volver o olhar para quando eu lírico apresenta-se saudoso de algo daqueles dias serenos e enxerga a antiga sensação de plenitude nesse lugar indicado logo no primeiro verso, lê-se, então, novamente os versos: “Oh a saudade da Igreja Católica”.

Ainda com relação ao local mencionado acima, agora, lembrando sobre a questão da Liberdade e da Verdade também já mencionada, é interessante observar em “O Rei” onde o escritor as reconhece. Notamos que, neste caso, ele a vê nas “mãos presas” de Jesus, morto na cruz, que o olha incessantemente: “Mais me fitam, e mortas sem carinhos,/ As pálpebras de Jesus.”. Nessa visão do filho de Deus crucificado não há delicadeza, nem vida há, mas, em paradoxo, esses olhos, em que extinto está o vigor, o veem de maneira atenta. E continuando com essas ideias paradoxais de olhos mortos que enxergam, agora, ele fala de uma boca muda que fala, e mãos presas que o libertam: “Meu Rei morto tem mais que majestade:/ Diz-me a Verdade aquela boca muda,/ E essas mãos presas dão-me a Liberdade”.

Parece que o eu lírico encontra-se de frente para uma escultura comum às Igrejas cristãs de Roma que é a imagem do Cristo crucificado no centro do altar. E o escritor, então, começaria por personifica-la em seu texto. Algo que em oração é comum aos cristãos, isto é, olhar para a escultura de um Santo e lembrar-se da sua presença real e sobrenatural a fim de

relacionar-se com esse ser: rogar-lhe, pedir-lhe, conversar com ele. Pelos versos, o eu lírico mostra que entende em que lugar encontra-se verdadeiramente livre e em que lugar está hoje. Na conversa com o Jesus crucificado, ele tem conforto, mais que isso, ele parece desembaraçar-se, encontrar a Liberdade. Considerando o poema anterior, em conclusão, compreendemos que depois de ter se atirado a conhecimentos sem fim, na verdade, ele encontra-se mais preso do que liberto, talvez sabendo mais e sendo menos, porém sabe onde encontra também o conforto.

Em outro poema, de Abril de 1934, Pessoa manifesta inquietação mais uma vez em relação ao “lido e do vão”, os versos prosseguem justificando a afirmação: “Na paz da noite, cheia de tanto durar/ Dos livros que li,/ Que os li a sonhar, a mal meditar,/ Nem vendo que os vi,/ Ergo a cabeça [...] estonteada/ Do lido e do vão/ De ler e vazio que há e fiz por noite acabada/ - / Não no meu coração”. Novamente, o conhecimento aqui, o que está procurando não lhe traz a paz, verdade e o contentamento, não lhe mata a sede, na verdade, parece processar uma desfiguração de quem ele é em essência. Ele diz agora em outro poema. “Criança, era outro.../Naquele em que me tornei/ Cresci e esqueci”. Em comparação, talvez, com o livro de Oscar Wilde, Fernando Pessoa, na figura de Dorian Gray, teria se tornado um sujeito que depois de algumas experiências em vida, de decisões tomadas, afastou-se da sua aparência primeira, de infante, ingênuo, puro, para torna-se no presente, então, irreconhecível. O livro lembra que inevitavelmente nós “somos o que somos e seremos o que temos sido” (WILDE, 2012). E diante dessa constatação, Pessoa, no último verso aponta para essa reflexão e como ela não é seguida de uma resposta, mais ênfase dá-se: “Ganhei ou perdi?”, o poeta se pergunta, diante do que ele é, do que tem sido. Porém ainda não é nesse poema que há a resposta.

Ele a responde no primeiro poema transcrito dessa seção: “De que é que me deserdou a verdade?/ A maçã diabólica”. Efetivamente, o eu lírico está longe da verdade, ele perdeu-se, “Qualquer cousa de mim quebrou-se, como uma mó”. O verbo no pretérito perfeito não assume outro significado senão o de algo completo, talvez ainda reparável, mas por enquanto feito. Ele, então, perdeu-se, essa é a resposta. Mas não parece de todo perdido, pois sabe em que momento ele se deixou-se perder, e, alguns versos antes, ele se mostra saudoso desse outro momento, um tempo em que sabia menos, mas era mais; aponta isso quando diz “Oh a saudade da Igreja Católica”. Dessa forma, observa-se que, apesar de uma criação heteronímica com missão paganizadora, obrada pelo poeta português, ainda não lhe passa despercebida a falta que lhe faz a fé cristã.

Em 1915, bem antes de alguns desses poemas acima citados, ele já imagina a importância de sua obra e escreve “Faz-me humilde ante o que vou legar...”. Ele dialoga com a Divindade sobre o seu trabalho e entende que necessita reconhecer suas limitações frente “Esta obra que é tua e em mim começa/ E acaba em Ti./ Sinto que leva ao mar Teu Rio fundo – Verdade e Lei-”. Agora sim, ele encontra o que procura, isto é, encontra-se a si mesmo, chega à verdade e ao Fim. Isso porque entende onde se inicia a obra e onde ela termina, que ela é verdadeira e tem finalidade, que é Dele, termina Nele e é para Ele. Ainda é interessante o que Garcez (2016) comenta sobre o poema:

Chama a atenção que a prece prossiga fazendo um oferecimento de sua obra à Divindade numa fórmula em muito parecida às de orações litúrgicas que rogam que uma determinada ação comece em Deus e nEle termine. (GARCEZ, 2016, p.417)

Ela relembra a seguinte Oração da Liturgia: “Inspirai, Senhor, as nossas ações e ajudai-nos a realiza-las, para que em vós comece e termine tudo aquilo que fizermos. Por nosso Senhor Jesus Cristo, vosso Filho, na unidade do Espírito Santo.”(PAULUS, 2018).

Além disso, assim como essa coerente intertextualidade apresentada, outra foi encontrada durante a pesquisa deste trabalho. O apontamento refere-se ao poema “Pedrouços” de Fernando Pessoa e “TRIOLET, RONDEU, BALADA”, de 1935, que tem semelhança estrutural e temática com o capítulo 13 do livro de Coríntios da Bíblia. Uma melhor verificação dessa leitura torna-se mais simples quando colocamos os textos um ao lado do outro:

PEDROUÇOS

Quando eu era pequeno não sabia Que cresceria.

Pelo menos não o sentia.

Naquela idade o tempo não existe. Cada dia é a mesma mesa

Com o mesmo quintal ao fundo; E quando se sente tristeza

Está tristeza, mas não se está triste. Eu era assim

E todas as crianças d’este mundo Assim foram antes de mim.

1 Coríntios 13, 11-13 11. Quando eu era criança, falava como criança, pensava como criança, raciocinava como criança. Depois que me tornei homem,

fiz desaparecer o que era próprio da criança.

12. Agora vemos em espelho e de maneira confusa,

mas, depois, veremos face a face. Agora meu conhecimento é limitado,

O quintal grande estava dividido Por uma frágil grade alta, de tiras Cruzadas, de madeirinhas, Em horta e jardim.

Meu coração anda esquecido,

Mas não minha visão. De ela não tires Tempo, esse quadro onde o feliz que eu fui Dá-me uma felicidade ainda minha!

Inútil o teu frio curso flui

Para quem das lembranças se acarinha. 22-10-1935 (PESSOA, 2009, p.449) TRIOLET, RONDEU, BALADA –.

Tudo isso é nada.

Balada, rondeu, triolet – Tudo isso o que é?

A espuma do que a vida atira À praia e a tira

De onde a pôs, e a ouviu, a chiar Voltar ao mar.

28-10-1935 (PESSOA, 2009, p.450)

Mas depois, conhecerei como sou conhecido.

13. Agora, portanto, permanecem fé, esperança, caridade, essas três coisas.

A maior delas, porém, é a caridade.

Os dois primeiros textos, “Pedrouços” e o capítulo 13 de Coríntios, falam sobre como uma criança enxerga o mundo e como ela se sente em relação à vida. O primeiro atenta- se a como é percebido o tempo nessa idade, o segundo disserta sobre o comportamento natural de um infante ao falar, pensar e raciocinar.

O poeta português é plástico ao escrever, pinta a cena ao leitor, e assim permite

No documento Cristo em Pessoa (páginas 36-64)

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