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Cristo em Pessoa

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Academic year: 2021

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JÚLIA CAMILA DE CARVALHO GOMES

CRISTO EM PESSOA

Florianópolis 2018

Universidade Federal de Santa Catarina

Centro de Comunicação e Expressão

Curso Letras-Português

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CRISTO EM PESSOA

Trabalho Conclusão do Curso de Graduação em Letras-Português do Centro de Comunicação e Expressão da Universidade Federal de Santa Catarina como requisito para a obtenção do Título de Bacharel em Letras-Português

Orientador: Prof. Dr. José Ernesto de Vargas

Florianópolis 2018

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CRISTO EM PESSOA

Este Trabalho Conclusão de Curso foi julgado adequado para obtenção do Título de “Bacharel” e aprovado em sua forma final pelo Programa de Graduação em Letras-Português

Florianópolis, 26 de Novembro de 2018. ________________________

Prof. Pedro de Souza, Dr. Coordenador do Curso Banca Examinadora:

________________________ Prof. José Ernesto de Vargas, Dr.

Orientador

Universidade Federal de Santa Catarina

________________________ Prof.ª Salma Ferraz de Oliveira, Dr.ª Universidade Federal de Santa Catarina

________________________ Prof. Leonardo Teixeira de Oliveira, M.e

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e as graças que recebi Dele são incontáveis e são elas que permitiram a apresentação deste trabalho.

Também à minha família, em especial, aos meus pais. À minha mãe que sempre esteve ao meu lado e incentivou-me os estudos, perseverou comigo frente a todas as dificuldades, sempre me fortalecendo, cuidando de mim e me educando. Também ao meu pai que me acolheu em sua casa nos anos finais da faculdade, em Santa Catarina, e me apoiou com muito carinho em todos os momentos.

Ao meu noivo, Caetano de Freitas Medeiros, que me ajudou em diversos momentos da graduação, com sua amizade, atenção e cuidado. Também à sua família, sempre muito acolhedora e amorosa.

Ao meu orientador José Ernesto, por ter aceito me orientar e ter trabalhado comigo ao longo de todo este ano a fim de realizar e apresentar este trabalho de conclusão de curso. Pela sua ajuda, com sugestões, correções e direcionamentos.

Às minhas amigas, que contribuíram para a meu desenvolvimento acadêmico por meio do companheirismo e dos conselhos que me deram em vários momentos.

Aos professores das universidades, da Universidade de Brasília, onde cursei dois anos Letras-Português, e da Universidade Federal de Santa Catarina, onde realizei os últimos anos de graduação. Pela responsabilidade e dedicação dos docentes ao ensinar e orientar os meus conhecimentos. A todos os trabalhadores dessas instituições que permitiram o bom funcionamento dos centros de ensino e, dessa forma, colaboraram com a minha formação.

Aos colegas de turma das universidades, que foram companheiros na realização das tarefas de disciplinas e também no comparecimento às aulas.

Por fim, àqueles que participaram direta e indiretamente da minha graduação em Letras-Português, mas que não foram mencionados aqui.

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judaico-cristã na obra de Fernando Pessoa. Para tanto, o livro “No Tabuleiro Pessoano”, de Maria Helena Nery Garcez, foi utilizado como base teórica. Como o escrito foi motivo da abordagem desse tema e se tornou central na discussão do trabalho, foi feita também uma breve biografia da autora, com intuito de apresenta-la aos leitores. Para estruturação do desenvolvimento deste estudo foi utilizada a arquitetura do método de estudo medieval,

disputatio. E por ele, relacionaram-se os poemas dos heterônimos de Fernando Pessoa e

também os do ortônimo. A partir dessas análises poéticas, chegou-se à conclusão de que o cristianismo é influência constante na obra do poeta português.

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Helena Nery Garcez, was used as a theoretical basis. Since the writing was the reason for this topic and it became central in the discussion of the work, a brief biography of the author was also made, as intente to present her to the readers. To structure the development of this study, it was used the architecture of the medieval study method, disputatio. Therefore, the study of Fernando Pessoa´s poems were made by relating the writing of the heteronyms, created by the portuguese author, using the composition of the method cited. From these poetic analyzes, it was concluded that Christianity is a constant influence on the work of the Portuguese poet.

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INTRODUÇÃO...15

1 MARIA HELENA NERY GARCEZ...18

2 DISPUTATIO...23 3 FERNANDO PESSOA...28 3.1 FERNANDOEM PESSOA...28 3.2 OS HETERÔNIMOSDE PESSOA...33 3.2.1 Alberto Caeiro...33 3.2.2 Ricardo Reis...37 3.2.3 Álvaro de Campos...41 4 O ORTÔNIMO...44 5 HETERÔNIMOS...56 CONCLUSÃO...62

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No curso de Letras e Literatura Vernácula na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), estudei diversos autores da literatura brasileira e portuguesa, entre eles, Fernando Pessoa. E gostei muito dos poemas desse autor português, mas não havia pensado em fazer o trabalho de conclusão de curso sobre ele até recentemente. Quando, então, tomei conhecimento, a partir da sugestão de leitura, do livro “No Tabuleiro Pessoano”, de Maria Helena Nery Garcez, por parte de uma amiga. Desde o primeiro contato com essa obra, entendi que ela seria tema para o meu trabalho final do curso de Letras na UFSC, pela afinidade de interesse com o assunto.

A autora, Maria Garcez, é natural de São Paulo, cursou Letras Neolatinas na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, no mesmo local fez seu mestrado e doutorado. Também foi Professora Titular de Literatura Portuguesa na mesma instituição. No trabalho aqui em questão, ela protagoniza Fernando Pessoa, em seguida, seus heterônimos: Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos. Como a autora anuncia na apresentação do livro: “Jogam neste tabuleiro os heterônimos ‘Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos, mais discretamente, e o Ortônimo”(GARCEZ, 2016). Dessa forma, já aí se explica o título “No Tabuleiro Pessoano”: como um jogo de xadrez, eis as peças, eis os jogadores.

A partir da leitura, então, do trabalho de Garcez, suscitou-me a ideia de escrever sobre um tema pouco abordado na universidade1: a literatura mística cristã em relevo também

na obra de Pessoa. Conhecer a intertextualidade da literatura religiosa nos escritos do poeta português foi muito revelador, principalmente, porque durante o curso ele apenas foi abordado como vanguardista do período moderno pelas linhas de crítica literária biográfico-psicanalítica, histórico-sociológicas, e as que focam no próprio texto poético, porém não contemplaram esse assunto que realmente me instigou pesquisar.

Sandra Abido, que também estudou a professora da Universidade de São Paulo, em sua dissertação de doutorado, comenta sobre a base teórica que Garcez usou nos trabalhos que estamos estudando aqui:

Nos dois estudos, o embasamento estético em conceitos pareysonianos axiais – como os de forma (como organicidade completa, autônoma e indivisível, cujo significado primeiro remete a seu próprio corpo sensível) e o modo de

formar (como depositário do verdadeiro conteúdo poético) – permite a Maria

Helena Nery Garcez desvelar sentido contidos no próprio rosto físico da poesia pessoana, ou melhor, desvelar o seu próprio rosto físico como 1 Digo “pouco abordado na universidade”, pois, considerando o meu desconhecimento dessa parte da obra de Fernando Pessoa e também o de colegas de curso com quem comentei o tema escolhido para o meu trabalho de conclusão de curso, entendo que os poemas do escritor português que tratam da religião cristã são mais raramente trazidos para a sala de aula de um programa de graduação.

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significado, “conteúdo expresso”, coincidência perfeita de fisicidade, de forma e conteúdo. (SANDRA, 2002, p.34)

É dessa maneira que a professora colocou os jogadores em cena em seu livro. Assim, ela compreende o “próprio rosto físico” dos poemas e pelas reflexões a cerca da poesia ortônima, principalmente, leva os leitores a uma nova visão, que então, interessou-me muito como matéria de pesquisa e estudo.

É preciso destacar, no entanto, que, neste trabalho de conclusão do curso, entende-se mais a obra de Garcez em espécie de releitura. Pois, entre os personagens pessoanos, mais do que em um jogo amigável de xadrez, como poderia sugerir o título da obra estudada “No Tabuleiro Pessoano”, penso em continuar essa discussão séria dos poetas, em via teleológica. Levando os poetas para uma disputatio2, que, por enquanto, pode ser entendida como uma

discussão, lugar em que são expostas as dúvidas, as objeções, que, no fim, são vertidas pelo

mestre em uma reflexão, expondo, então, a sua palavra sobre o assunto.

Para tal estudo, organizou-se o trabalho da seguinte maneira: pequenas introduções aos heterônimos e ortônimo Fernando Pessoa; depois exposição da relação entre os poetas baseado no método de estudo medieval dialógico, a disputatio; e uma conclusão.

Objetivos

A seguir, será exposto o tema central de pesquisa e finalidades do estudo. Objetivo Geral

A ideia central do trabalho é estudar os heterônimos e o próprio ortônimo, pesquisados pela professora Maria Helena Nery Garcez em seu livro “No Tabuleiro Pessoano”, sob a perspectiva dialógica de estudo medieval disputatio, buscando compreender, principalmente, a relação de Pessoa com Cristo, isto é, com a mística cristã.

Assim, o propósito desta tese de conclusão de curso é observar como se comporta o próprio Fernando Pessoa em relação aos seus poetas criados e qual é seu posicionamento diante das ideias expressas por cada um desses personagens escritores em relação à tradição judaico-cristã.

Objetivos Específicos

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Os objetivos específicos são:

 Apresentar a autora do livro usado como base teórica neste trabalho, a fim de conhecer um pouco mais do seu contexto de pesquisa literária (que corresponde ao capítulo 1);

 Descrição breve do método disputatio (Capítulo 2);

 Definir o processo de criação e atuação dos heterônimos de Fernando Pessoa como poetas em geral e também em relação à fé cristã (Capítulo 3);

 Relacionar essa atividade literária com a do ortônimo, quais são as semelhanças e contrastes, isto é, no que convergem e divergem no que tange à fé cristã (Capítulo 4);

 Relacionar a vida literária de Pessoa com a prática argumentativa disputatio, colocando em evidência o seu diálogo pessoal com a mística cristã (Capítulo 5).

Partindo desses objetivos, pretende-se desenvolver um estudo e concluir, assim, qual seria a o posicionamento de Pessoa frente às suas criações poéticas no que tange à religião cristã.

1 MARIA HELENA NERY GARCEZ

DNA

De minha mãe, a bússula, o amor à poesia, ao estudo. De meu pai, o amor aos bichos, ao mar,

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às coisas humildes. (GARCEZ, 2013)

O tema “Cristo em Pessoa” foi escolhido a partir do objeto de interesse da autora deste trabalho frente às reflexões a respeito da pouca literatura sobre a obra de Fernando Pessoa e sua relação com os escritos de mística cristã. Dessa maneira, baseando-se na crítica literária de Maria Helena Nery Garcez e na releitura do jogo pessoano, entre ortônimo e seus heterônimos, pelo método medieval dialógico disputatio, a seguir, veremos um pouco mais sobre os dois assuntos.

Maria Elena Nery Garcez nasceu em São Paulo, como ela mesma diz, “Não sei se feliz ou se infelizmente... Sou paulista já há alguns bons anos.” (GARCEZ, 2018). Ela escreveu uma página sua intitulada “Maria Helena Nery Garcez, por ela mesma:” no site com nome “Jornal de Poesia”. Além desse comentário, ela também compartilha uma pequena autobiografia sua, ao contar que seu pai era do Vale do Paraíba e sua mãe era filha de imigrantes italianos, de Itatiba. Ela diz que:

Com o pai aprendi, não por palavras mas por sua vida, a amar a natureza, os animais, as coisas simples, a comida caseira, os doces das fazendas, o cafezinho, a atravessar as ruas da cidade grande, o gosto de por ela perambular e um certo tipo de humor... Minha mãe, embora não romântica em sua vida prática, gostava de recitar poemas que aprendera de cor quando estudara no Ginásio Culto à Ciência de Campinas... (GARCEZ, 2018)

Já pelo resgate histórico desse excerto escrito por Maria Helena entende-se a origem da sua vocação pela área das Letras e ela mesma expressa essa influência, então, que sua mãe exerceu nesse sentido, contando como foi apresentada ao mundo literário. Além disso, Garcez diz-se, nesse relato na internet, orgulhosa de ter estudado sempre em escola pública, segundo ela “Na escola pública do tempo, em que se procurava que o povo tivesse, de fato, acesso ao saber.”.

Agora, sobre a vida profissional da autora de “No tabuleiro pessoano”, obra que compõe a base teórica deste trabalho, é interessante mencionar que, atualmente, ela é professora titular aposentada da Universidade de São Paulo. E ministra cursos, além de orientar pesquisas no Programa de Pós-Graduação em Literatura Portuguesa na mesma universidade. Sua trajetória acadêmica é significativa, assim como as aventuras literárias a que se propôs. Dessa forma, a seguir, será retomado um pouco de seu percurso como profissional da área de Letras, a fim de estabelecer uma apresentação da pesquisadora por trás da obra aqui estudada.

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Maria Elena Nery Garcez graduou-se em Letras Neolatinas pela Universidade de São Paulo em 1964. Também fez uma especialização em Diplôme D’études Françaises, na Aliança Francesa Université Brasil e tem o Lower Certificate In English, pela University of Cambridge, Inglaterra, além do Proficiency in English, na Cultura Inglesa University of Cambridge Brasil. Com relação a sua pós-graduação, Garcez realizou o mestrado em Letras (Língua e Literatura Francesa) pela Universidade de São Paulo também concluído em 1968; depois continuou os estudos em um doutorado em Letras (Literatura Portuguesa) na mesma instituição. Além disso, ela fez livre-docência em Letras (Literatura Portuguesa) no mesmo local e concluiu em 1981. O seu endereço profissional atual, então, é a Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas, Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas, tudo isso de acordo com seu currículo lattes, última vez atualizado em 12 de Maio de 2018.

Na Universidade de São Paulo (USP), a professora lecionou muitas disciplinas relacionadas à literatura portuguesa. Cito algumas, como “Língua Portuguesa I-VI” na graduação e “Mário de Sá-Carneiro: poesia e prosa”; “Fernando Pessoa: Leituras intertextuais”; “Do épico em ‘Lusíadas’ e ‘Mensagem’”; “Leitura e interpretação da poesia de Alberto Caeiro”; entre outras. E na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP, doravante) também disciplinas como: “Teoria do Poema: Literatura Portuguesa” e “Fernando Pessoa – obra poética”. Da mesma maneira, na Universidade Católica de Campinas, no Centro de Extensão Universitária, no Centro Universitário Ibero Americano Brasil, na Faculdade de Pedagogia da Sociedade de Ensino Piratininga e na Universidade do Vale Paraíba, sempre instruindo matérias ligadas, principalmente, a autores portugueses.

As linhas de pesquisa de Garcez também se mostram convergentes com a literatura portuguesa, assim, sua formação ganha bastante consistência e relevância para o trabalho desenvolvido aqui. A seguir apresento-as:

 Poéticas de expressão portuguesa;  Textos.Contextos.Intertextos.

Também, na mesma perspectiva, seus projetos de pesquisa:

 O estilo sublime o estilo humilde e outros estilos (2014- Atual);  A diversidade das poéticas e a dinâmica dos gêneros (2009-2013);

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 Leitura e interpretação da poesia, ficção e crônicas à luz da estética de Luigi Pareyson (base teórica muito influente no livro “No tabuleiro pessoano) (2005-2009);

 Imagens do Brasil na poesia e na prosa de Vitorino Nemésio (1996-2000);  Autores portugueses e brasileiros da virada do século XIX-XX (1994-2006);  Motivos das Navegações na Literatura Portuguesa Moderna (1992-2002);  Do Épico em Os Lusíadas e Mensagem (1992-2002);

 Estudo diacrônico do épico: da Antiguidade à época Moderna (1987-1997);  A estética de Luigi Pareyson (1978-1992);

 Cristianismo e Esoterismo em Fernando Pessoa (1978-1985);  Alberto Caeiro na tradição da poesia da Natureza (1978-1982).

A partir dessa listagem, notamos a predominância de estudos voltados para a literatura portuguesa e também que o estudo escolhido para este trabalho de conclusão de curso, ou seja, “Alberto Caeiro na tradição da poesia da Natureza”, na verdade, situa-se, em ordem cronológica, nas primeiras pesquisas de Garcez. Porém mesmo no seu estudo mais recente, “O sublime e o estilo humilde e outros estilos”, de 2014, o interesse pelo advento do cristianismo e suas influências nos valores e mentalidades das épocas se mantém. Assim, vemos uma continuidade de pesquisas sobre o assunto que envolve a problematização abordada neste trabalho de conclusão de curso.

Maria Elena Nery Garcez também já recebeu o Mérito Cultural da União Brasileira de Escritores, em 1999; o Prêmio Antero de Quental, pela Embaixada de Portugal, em 1991; foi vencedora do Concurso de Poesia Cora Coralina, do Ministério da Cultura, em 1986, e também o concurso Vertente/Escrita de Poesia, Revista Escrita de Poesia.

E entre suas publicações mais relevantes em revistas, cito cinco títulos: “Uma faceta ortônima ‘non despicienda’”; “Mensagem: Profissão de Fé Poética”; “Motivos das Navegações na Poesia Portuguesa do Século CC: António Gedeão”; “A viagem de Vasco da Gama na Virada do século e Singularidades de um simbolista português” e “Uma Leitura Ascético-Mística do Heterônimo Álvaro de Campos” 3. E os destaques feitos pela própria

Garcez:

 Poemas completos de Alberto Caeiro – Introdução, Comentários, Notas e Cronologia;

 O tabuleiro antigo (Uma Leitura do Heterônimo Ricardo Reis);

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 Alberto Caeiro, “Descobridor da Natureza?”;

 Alberto Caeiro. In:Fernando Cabral Martins, no Dicionário de Fernando Pessoa e do Modernismo Português;

 Uma poética grávida de impactos. In: Aparecida de Fátima Bueno, Annie Gisele Fernandes, Hélder Garmes, Paulo Motta Oliveria, Literatura Portuguesa – História, memória e perspectivas.

Assim, apesar de se basear em um dos primeiros trabalhos acadêmicos de Garcez, o livro escolhido para ser desenvolvido aqui, “No Tabuleiro Pessoano”, sobressai-se, já que é composto por três trabalhos que são estudos de destaque em seu currículo lattes: “Alberto Caeiro/ ‘Descobridor da Natureza’?”; “O tabuleiro antigo: Uma leitura do heterônimo Ricardo Reis”; “Uma Leitura Ascético-Mística do Heterônimo Álvaro de Campos” e seus textos sobre o ortônimo. Na apresentação do livro, a autora disserta sobre a constituição da obra:

O jogador que dá início à primeira partida é Alberto Caeiro, sobre o qual defendi uma tese de livre-docência na USP, em 1981, convertida em livro em Portugal (1935), mas somente agora é que vem à luz no Brasil, para participar nesse certame pessoano, apresentando-se com seu título: Alberto

Caeiro/ “Descobridor da Natureza”?

O jogador que aparece em seguida é Ricardo Reis, com toda sua solenidade e elegância, no livro que inspirou a aula por mim ministrada no concurso da titularidade da USP, em 1990, O tabuleiro antigo. Uma leitura do

heterônimo Ricardo Reis, publicado pela Edusp, também em 1990.

(...)

O que este livro recolhe de mais novo em minhas lides pessoanas são as reflexões sobre a poesia ortônima. (GARCEZ, 2016)

Não há menção a Álvaro de Campos nessa citação, pois esse heterônimo sobre o qual a autora escreveu não foi incluído no livro em questão, assim, o que foi escrito neste trabalho sobre ele foi estudado num texto seu publicado em outra oportunidade4.

Por fim, mais por motivos de curiosidade, a seguir, apresentamos as obras literárias pessoais de Garcez. Em um texto seu, a autora identifica que sua criação literária está marcada pela circunstância espacial de sua vida, logo, a vivência em São Paulo é fator muito influente de sua escrita. Suas publicações foram: Conta-gotas, 1987; Telhado de Vidro, 1988; Em trânsito, 1997; Poemas do bom, do mau e do médio humor, 2013. Segue-se um dos seus poemas, este intitulado “A cidade I”:

Sepulcros caiados

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Gritando grafites!

São Paulo, comoção da minha vida... Viola que nem por fora é bela! Cadê o toicinho daqui?

O gato comeu... Cadê o gato? Fugiu pro mato... E cadê o mato? O fogo queimou...

O fogo que água apagou... A água que o boi não bebeu

Porque imunda das abluções infindas De milhões de fariseus.

Há algo muito podre no reino das Multimarcas... Ó grita dos grafites,

Grita que os céus se alevanta!

(GARCEZ, 1987) É dessa maneira que a seção sobre a autora do livro usado como base teórica deste trabalho finaliza. Com os versos de Garcez, então, escritora, poetisa e professora.

2 DISPUTATIO

Neste segmento, será abordado o método de ensino que fora utilizado em universidades medievais, disputatio. Já que a intenção é utilizá-lo como perspectiva de leitura da obra de Fernando Pessoa neste trabalho, ou seja, pretendemos aprofundar no ethos do poeta por essa nova via.

Para entender o que é a disputatio, a seguir Joaquim de Carvalho explica que:

A disputatio consistia no diálogo entre o mestre e os alunos acerca de determinada tese ou assunto; ao contrário da lectio, que implicava a atitude passiva, despertava a atividade intelectual dos alunos. Tornou-se, por isso, o processo demonstrativo dos conhecimentos adquiridos e da respectiva compreensão e aplicação doutrinal (...). (CARVALHO, 2018)

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A partir da leitura dessa explicação sobre a disputatio, observamos que ela foi um método de ensino universitário usual entre professor e discente. Além disso, que se baseava no diálogo como fonte de produção e difusão de conhecimento. A sua estrutura, então, era composta por argumentos pro, contra e a solutio, isto é, expunha-se uma tese positiva, outra negativa e terminava-se com uma resolução. É nesse formato que se apresentam muitas obras de literatura teológica e filosófica desse momento. Por exemplo, a Suma Teológica de Santo Tomás de Aquino, que se pauta nessa técnica.

Uma das principais críticas a esse modelo consiste na afirmação de que esse processo de disputas orais e teóricas, apesar de requerer um notável esforço memorativo e desenvolver a capacidade dialética, também de oratória, gerava discussões sem ligação com a realidade e apenas atentas à lição de fatos. Seria, assim, um abuso do sofismo5 e não

interessante como prática pedagógica e de ensino.

Porém, Oliveira (2013) retoma o assunto em seu trabalho “A Escolástica como Filosofia e Método de Ensino na Universidade Medieval: uma reflexão sobre o Mestre Tomás de Aquino” sob uma nova visão. Segundo a autora, “a Escolástica, mais do que um método de ensino baseado na disputatio ou de uma forma de leitura, é a maneira que os homens medievais encontraram para realizar suas ações.”(p.5). Ela explica que, na verdade, era um modo de pensar que permeava a sociedade, desde o mais humilde dos homens até o soberano (OLIVEIRA, 2013). E a fim de defender a atividade e evidenciar a sua relação com a realidade prática das pessoas, a autora do artigo analisa uma das questiones de Santo Tomás de Aquino: sobre o respeito. Visto que é um assunto amplamente pensado na cotidianidade, seja de maneira explícita ou implícita, pela vivência do respeito ou falta dele, entende-se a importância do seu trato e o entrelaçamento de teoria e prática que Oliveira (2013) enxerga nesse modelo.

A Suma Teológica não foi resultado de discussões em sala de aula, ela nasceu com o intuito de servir aos alunos de teologia que procuravam os conhecimentos acumulados em um documento, para facilitar o aprendizado. Assim, seguindo o método apresentado: em todos os temas abordados havia uma sentença, a apresentação dos argumentos favoráveis, o

5 “Sofistas”, segundo o Dicionário de Nomes, Termos e Conceitos Históricos, é um “termo que, na Grécia antiga, designava, a partir do século V a.C., os professores que ‘vendem a sabedoria ao primeiro que aparece’”(AZEVEDO, 1997, p.385). Assim, nesse sentido pejorativo da palavra, veiculado principalmente por Platão e Aristóteles, neste trabalho, entende-se também por “sofismo” um esforço concentrado em reproduzir um argumento com raciocínio lógico bem organizado, porém de conclusão duvidosa, sem real preocupação com a verdade. Apesar dessa conotação, sabe-se hoje que os sofistas eram professores, na verdade, preocupados com o desenvolvimento concreto de seus alunos e, portanto, que não merecem tal descrédito (AZEVEDO, 1997).

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contrário e, em seguida, a posição do professor/do autor. A disputa (disputatio) é, segundo Ricardo (2018):

(...) um formato específico de discussão na qual, observada com rigor a logística silogística, ambos os debatedores procedem dialeticamente à procura da verdade. Este método difere a) quer das discussões vulgares que os homens, sem base em premissas bem definidas, costumam travar no dia a dia, b) quer ainda da discussão dita “socrática”, que consiste numa série de interrogações por que o adversário é paulatinamente conduzido a admitir a tese defendida pela parte contrária. [1].

A partir do exposto, logo se observa que não é fielmente isso que será feito no trabalho de conclusão de curso em questão. O que agora se propõe é apenas o uso da arquitetura da disputatio como modelo de diálogo entre os heterônimos de Pessoa, já que foi observada essa mesma relação de discussão e contraposição de discursos na organização de seus poemas.

Para entender como é construído esse modelo, a seguir há uma das questões de Santo Tomás para que visualmente o leitor se situe, isto é, mais importante do que ler o seu conteúdo, é depreender a sua estrutura:

Art. 1 - Se o respeito é uma virtude especial distinta das outras.

O primeiro discute–se assim. – Parece que o respeito não é uma virtude especial distinta das outras.

1. – Pois, as virtudes se distinguem pelos seus objetos.[...]

2. Demais. – Assim como devemos honrar e cultuar às pessoas constituídas em dignidade, assim também às excelentes pela virtude e pela ciência. [...]

3. Demais. – A lei nos obriga a pagar o muito que devemos aos homens constituídos em dignidade conforme aquilo do Apóstolo: Pagai a todos o que lhes é devido: a quem tributo, etc. [...]

Mas, em contrário, Túlio coloca o respeito na mesma divisão em que entram as outras partes da justiça, que são virtudes especiais.

SOLUÇÃO. – Como do sobredito resulta, as virtudes devem distinguir–se, numa certa ordem descendente, conforme à excelência das pessoas para com as quais temos algum dever. [...]

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. Como dissemos, a religião, por uma certa sobreeminência, se chama piedade filial; e contudo esta, propriamente falando, se distingue daquela. Assim também, a piedade filial, por uma certa excelência, pode chamar–se respeito, e contudo o respeito propriamente dito distingue–se da piedade.

RESPOSTA À SEGUNDA. – Quem está constituído em dignidade não só se acha num estado de excelência, mas, tem um certo poder de governar a súblitos. Por isso, exerce a função de princípio, enquanto governador dos antros. [...]

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RESPOSTA À TERCEIRA. – A justiça especial propriamente dita, nos manda dar uma parte igual ao que alguma causa é devida. [...] (AQUINO, 2018)6

Notamos, então, o esquema descrito acima de maneira clara. Houve uma sentença, os argumentos contrários (quatro), e o sed contra. Após isso há a solução e a resposta às quatro objeções. Essa é uma questio mais simples, menor. É assim que se estrutura de maneira escrita esse método e é com base nessa construção que será pensada a obra de Pessoa. O esquema abaixo permite a compreensão visual da ideia:

1. Fernando Pessoa, constituído na tradição cristã, parece não permanecer fiel a ela depois da sua criação poética pagã.

1. Alberto Caeiro, mestre dos demais, possui a missão paganizadora.

2. Ricardo Reis, de herança neoclássica, segue o mestre e se revela contrário ao cristianismo.

3. Álvaro de Campos, o engenheiro, também tem o mesmo posicionamento em assonância com Caeiro.

Mas, Sed contra, Fernando Pessoa também tem a sua poesia ortônima, que de maneira mais pessoal, retoma a tradição cristã.

SOLUÇÃO.- Fernando Pessoa, apesar do gnosticismo também patente na sua obra, revela-se aberto à mística cristã até o fim da sua atividade literária.

RESPOSTA AO PRIMEIRO. – Alberto Caeiro reflete a tradição judaico-cristã por meio da intertextualidade dos seus poemas com textos de Francisco de Assis e bíblicos.

RESPOSTA AO SEGUNDO.- Ricardo Reis em sua poesia evoca imagens próprias do mundo cristão, logo, não lhe é ausente esse conhecimento.

RESPOSTA AO TERCEIRO.- Álvaro de Campos não está de todo fora do contexto religioso considerando a questão da luta ascética, tema presente nos seus poemas, e que é característico de formação humana cristã.

É dessa forma que se pensou estruturalmente este trabalho, isto é, como se fossem colocadas em uma sala as quatro pessoas de Fernando Pessoa: Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campo e o ortônimo. Da mesma maneira que acontece oralmente na disputatio:

(...) entre um defendens, que afirma uma tese, e um arguens, que a impugna. O arguens tem de provar sua impugnação de forma silogística. O defendens toma então o silogismo ou os silogismos do arguens e começa a conceder (concedo ou transeat) as premissa que considerava verdadeiras, a negar (nego) as que julga falsas e a distinguir (distingo) as que avalia como ambíguas ou apenas parcialmente. (...) No decorrer a argumentação, intervêm igualmente explicações de significação, petições de exemplos, indicações de

6 Nessa questio, foi suprimido tudo o que se segue depois do primeiro período de cada parágrafo. Isso foi feito para que o texto ocupe menor espaço. Apesar da modificação, mantém-se assim mesmo a coerência do texto em questão, pois apesar da alteração, não há interferência no que pedimos ao leitor que preste atenção: à sua estrutura textual, ou seja, sua organização.

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exceções em exemplos, declaração de sofismas e negação de pressupostos. (MORA, 2004)

No lugar dos silogismos e de defendens e arguens, aqui, há Pessoa educado na tradição cristã e seus heterônimos com a missão de paganizar o mundo. O seus instrumentos são os versos, falam em poesia, na subjetividade das figuras de linguagem, em imagens e sensações que causam ao leitor. No intelecto há uma vontade de expressar-se pela escrita e por ela decifrar a sua natureza humana.

Portanto, o método medieval clássico de busca do conhecimento, a disputatio, aqui será utilizado no sentido do seu modelo arquitetônico, especificamente o que consta, por Santo Tomás, na Suma Teológica. E também trará enfoque apenas na faceta dialógica do modelo, sendo, então, claro que não serão usados silogismos e outras técnicas do tipo. Os procedimentos, no caso, de investigação serão poéticos e as habilidades exploradas serão as de escritor.

A seguir, chegam à sala de discussão os arguens e defendens: Pessoa, o ortônimo e heterônimos. A questão: Cristo em Pessoa, a tradição judaico-cristã na sua poesia. Serão apresentados os indivíduos a partir da leitura do livro de base teórica do trabalho, a autora Garcez (2016), que inicialmente suscitou o desenvolvimento de interpretação da obra de Fernando Pessoa por essa via, pois foi ela uma das que encetou o desvelamento da mística cristã na obra do autor português.

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3 FERNANDO PESSOA

Depois de apresentada a base teórica deste trabalho, segue-se aos conteúdos em análise, mais precisamente, Fernando Pessoa, o indivíduo poeta. Na seção que se segue há uma apresentação biográfica breve do escritor português. E, depois, a partir do livro “No Tabuleiro Pessoano”, de Garcez, será exposta uma apresentação dos heterônimos analisados por ela dentre outros autores de literatura portuguesa que também escreveram sobre o tema. Além da apresentação do ortônimo, na mesma perspectiva. As citações com versos dos poemas de Fernando Pessoa, ou os poemas completos, foram retiradas do site intitulado “Arquivo Pessoa”, que é uma base de dados online de escritos do poeta português. 7

3.1 Fernando em Pessoa

Seus pais foram Joaquim de Seabra Pessoa, com atuação profissional na área do serviço público e também foi crítico musical, e Maria Madalena Pinheiro Nogueira. Fernando Pessoa nasce, então, dia 13 de Junho de 1888 em Lisboa. E o pequeno já enfrenta dificuldades nessa pouca idade, pois seu pai falece de tuberculose em 1893 e a sua família é obrigada a se mudar para casa da tia de Fernando e viver com menos recursos financeiros. Esses acontecimentos marcaram a sua vida.

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Pouco tempo depois, o irmão que ganhou em 1894 também falece, logo, três perdas já: o pai, a casa e o irmão. É nesse mesmo tempo que nasce o seu primeiro personagem literário, o Chevalier de Pas ou o Cavaleiro do Nada, que “o escrevia cartas” ou ele as escrevia e mandava para si mesmo. Em meio a sua infância e adolescência, Fernando ganha e perde mais irmãos, algo que deixou influência em toda a sua vida.

Como se pode ver pelos poemas que escreve, por exemplo, no poema “Aniversário”, de 1929, quando o poeta escreveu pelo heterônimo Álvaro de Campos: “O que eu sou hoje é terem vendido a casa. / É terem morrido todos, /É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...” (CAMPOS, 2008). Há um aspecto autobiográfico nesses versos por corresponderem à realidade da história de vida de Fernando Pessoa; e sendo assunto de um dos seus textos, é possível depreender que ele pensava sobre o fato, que o tocou como marco na sua existência.

Em 26 de Julho de 1895, está datada a sua primeira poesia: “A Minha Querida Mamã”, nota-se aí uma relação de laços pessoais com a arte literária. Essa arte, longe de superficial, estava na profundidade do íntimo de Pessoa.

Em 1894, a mãe de Pessoa casa-se com o comandante João Miguel Rosa, cônsul de Portugal na cidade de Durban, colônia inglesa na África do Sul. E mudam-se para lá em 1896.

Assim, é na África que Fernando Pessoa frequenta a escola, no início, um centro de ensino de freiras irlandesas da West Street. Lá ele começa a aprender o inglês e faz a primeira comunhão. Depois estuda na Durban High School. Ele faz tudo em tempo admirável, pois pela considerável inteligência pulam-no de ano e termina aos três, o que normalmente se faz em cinco anos.

Nas férias do seu padrasto e suas, toda a família vai passar uma temporada em Portugal, é neste momento que Fernando Pessoa se matricula no curso de Superior de Letras em Lisboa, em 1906. Um ano depois, ocorre uma greve dos estudantes em revolta a uma medida de João Franco, político dominante da fase final da monarquia constitucional portuguesa, e o jovem poeta abandona o curso. Procura, então, montar uma tipografia, a “Empresa Íbis – Tipografia Editora- Oficinas a Vapor”, mas mal chega a funcionar. Depois funda em Porto a revista Águia e começa alguma atividade de tradução. Mas, dentre as várias atividades que se ocupou, a principal delas foi escrever.

Fernando Pessoa não deixa mais Portugal, seu país de origem, lá que firma-se, cria amizades, passeia, namora e essencialmente escreve. E também lá falece, por fim, em 1935, quando internado no hospital com uma cólica hepática.

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Há três momentos que valem ser destacados: a criação dos três heterônimos que serão visitados neste trabalho:

- Alberto Caeiro, que segundo Fernando, nasceu em 1889, um ano depois do próprio escritor e falece em 1915 em tempo coincidente como suicídio do seu grande amigo, Sá Carneiro;

- Ricardo Reis, que nasceu em 1887;

- Álvaro de Campos, que nasceu em 15 de Outubro de 1890.

Porém mais informação sobre esses poetas se seguirá nas seções seguintes do trabalho; as datas apontadas acima foram dadas pelo próprio Pessoa em escritos que deixou (que também serão vistos nos capítulos seguintes deste trabalho). Esses acontecimentos merecem atenção, afinal, o fenômeno da heteronímia é de grande destaque no poeta Pessoa, que além de escrever seus poemas, então, os escrevia e assinava com outros nomes, alguns recebiam mais que uma assinatura, uma verdadeira história, por isso, é que são chamados de heterônomos.

No “Livro do Desassossego”, assinado por um desses heterônimos de Fernando Pessoa, o Bernardo Soares, há uma passagem que interessa, pois adentra o universo religioso do escritor, assunto em destaque neste trabalho. É o momento em que o autor discorre sobre sua história com a missa. Entendemos-no como parte da história do escritor português, porque o romance citado é visto como uma espécie de autobiografia do poeta. A seguir, o trecho o qual me refiro:

Na grande praça dominical há um movimento solene de outra espécie de dia. Em São Domingos há a saída de uma missa, e vai começar outra. Vejo uns que saem e os que ainda não entraram, esperando por alguns que não estão vendo quem sai.

Todas estas coisas não têm importância. São, como tudo no comum da vida, um sono dos mistérios e das ameias, e eu olho, como um arauto chegado, a planície da minha meditação. (SOARES, 2011, p.185)

Construída pelo semi-heterônimo, o livro, segundo pesquisadores do autor, e como há no “Dicionário de Fernando Pessoa” (2008), é sua auto-biografia, sem gênero definido, repleto de ideias sem ordem específica, isto é, reflexões e diários, de caráter mais

prescritivo do que descritivo e até “pré-escrito”, como se o ato de dizer fosse igual ao fazer .

Pela leitura do excerto vemos que Fernando Pessoa é espectador de uma cena tipicamente dominical: a frequência às missas. É uma “espécie de dia”, ou seja, é um momento da semana que não se apresenta normal, regular, mas tem sua especificidade. Ele diz que é domingo, dia considerado pelos cristãos como o “dia do Senhor”, data de

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ressurreição de Jesus Cristo, segundo a tradição católica. Mas, como em outros momentos, o poeta português parece fazer uma palinódia, apesar do adjetivo especificador para referir-se a esse instante, isolando-o dos demais, depois ele diz que “todas estas coisas não tem importância”.

Garcez (2016) fala desse fenômeno na obra do português, ela lembra o poema “Ascensão”, de 1913, em que se inicia com o verso “Quando mais desço em mim mais subo em Deus...” e o seu fim é “Em Deus...Mas o que é Deus? E existe Deus? Isso importa?” (PESSOA, 2008). Apesar do tom inicial ser solene, reverente até, o fim é abrupto, pois ao longo da leitura dos vinte e dois versos não se imagina que os dois últimos estariam em dissonância completa e proposital com o que estava no início do texto.

Saliente é, porém, notar, a partir do primeiro verso citado, o conhecimento do eu lírico a respeito da mística cristã, já que no seu poema ele repete um movimento comum descrito por santos em seus escritos: saber que quando “desço em mim mais subo em Deus”. Como também diz Santo Agostinho em um sermão seu “Diminuamo-nos em nós próprios para podermos crescer em Deus; humilhemo-nos na nossa baixeza, para sermos exaltados na sua grandeza” (PESSOA, 2008) ao comentar a passagem da Bíblia. Além do capítulo três de São João: “Nisso consiste a minha alegria, que agora se completa/ Importa que ele cresça e que eu diminua” (PESSOA, 2008), Pessoa fala do mesmo processo em seu poema. O que é intrigante, pois alguém parece conhecedor da vida interior de um cristão depois mostra-se em dúvida e até cético em relação à Divindade, no verso “E existe Deus?”. O mesmo acontece neste próximo poema “Quando Cristo, Rei da Lei/ Voltou ser, após os três/ Dias que Deus deu ou fez,/ Viu logo nascer do chão/Quem lhe roubasse o caixão/ E disse: Já me enganei./ Adeus, vou morrer de vez!”(GARCEZ, 2016, p.426), de 1930, em que ele novamente retira o ar de reverência e faz do poema uma blague, como nota a professora Garcez (2016).

Essa contradição resume bem a questio desta produção textual, pois o que à princípio observamos é que Fernando Pessoa frente à mística cristã parece não se manter fiel a ela.

Mais evidências desse argumento se vê no livro “Fernando Pessoa: Resposta à Decadência”, de 2013, quando Haquira Osake, o autor destaca um trecho sobre o poeta “Nasci em um tempo em que a maioria dos jovens haviam perdido a crença em Deus”(SOARES, 2008), escreve Pessoa na voz de Bernardo Soares (ou Vicente Guedes) no Livro do

Desassossego . Ou seja, o poeta, segundo interpretação de Osake, nasceu num momento em

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decadentismo expressado por Nietzsche com a sua célebre frase “Deus está morto”(OSAKE, 2013).

O que ele quer dizer, então, é que o sobrenatural e principalmente a religião cristã havia perdido a sua influência social. E ainda adianta a consequência dessa decisão, pois continua sua reflexão dizendo que com essa ruptura origina-se a “angústia metafísica” e a dor de não ter nenhuma certeza, de ter de apoiar no homem falível. E esse sentimento também é exposto nos poemas de Fernando Pessoa, seja pela tentativa de suplantar a religião por meio da criação de outra sem Deus, liderada pelo heterônimo Caeiro, seja pelos momentos em que reconhece novamente na Igreja Católica a verdade que precisa e almeja e que lhe traz uma tranquilidade na alma.

Essa sensação de vazio e desesperança, de aniquilamento, vê-se em poemas como o “Quando é que o cativeiro”, de 1931, nos versos “Ah, só eu sei/ Quanto dói meu coração/ Sem fé nem lei, Sem melodia nem razão/ Só eu, só eu/ E não posso dizer/ Porque sentir é como o céu,/ Vê-se mas não há nele que ver”(PESSOA, 2008), ou em “A minha vida é um barco abandonado/ Infiel, no ermo porto, ao seu destino. (...)”(PESSOA, 2008). A sensação penosa vem de um interior sem uma crença, algo em que confiar absolutamente, pois está “sem fé”; não há uma sequência a seguir, um caminho, nem o raciocínio que o ajude a chegar nesse reconhecimento de uma “melodia”. Ele encontra-se desamparado, a ermo. Um verdadeiro sentimento de solidão e sofrimento, que até condiz com o temperamento do poeta, pois o escritor passava muitas vezes por profundos momentos de depressão em que não conseguia nem mesmo escrever.

Mas o interessante é que apesar da imagem que vem à mente de muitos leitores de sua poesia, do retrato de um rapaz de terno, taciturno, sério, talvez enternecido, como vimos também em seus poemas, essa figura é provável que não corresponda completamente à sua pessoa, ou pelo menos não a defina. Como pode-se ver pela fala de um familiar transposta a seguir, que conta um pouco do outro lado do escritor.

Para finalizar, então, resolvemos também chama atenção a esse outro interessante aspecto da história do escritor português que é abordado na Introdução da Edição de Obras Escolhidas sobre ele, da L&PM, a seguir, todo o parágrafo em destaque:

Logo após a morte do poeta, o irmão João Nogueira faz uma conferência e afirma que ninguém na família adivinhava que Fernando Pessoa, “uma pessoa muito inteligente e muito divertida”, “resultaria em gênio...”. A verdade é que o mundo também levou muito tempo para descobrir. (PESSOA, 2016, p. 16)

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Humildade? Pode ser que sim. Mistério? Também. A fala transparece essas sensações. Pois, mesmo repousando ao lado de reis e heróis de Portugal, onde jaz seu sepulcro atualmente em Portugal, Fernando Pessoa era essencialmente um irmão, “uma pessoa muito inteligente e muito divertida”.

Assim, relevante é lembrar no final deste capítulo que os meandros desse versificador são muitos e faltam ainda vários a ser descobertos pelos textos que deixou. Dentre os escritos que ainda não foram amplamente estudados estão os que irão ser abordados no decorrer deste trabalho, mais especificamente na literatura do ortônimo.

A seguir, mais de perto, serão as abordadas personagens literárias de Pessoa. 3.2 Os Heterônimos de Pessoa

3.2.1 Alberto Caeiro

Segundo Massaud Moisés (1981), Alberto Caeiro,

“nascido” a 8 de maio de 1914 e mestre dos demais, é o poeta que foge para o campo, pois sendo poeta e nada mais, poeta por natureza, deve procurar viver simplesmente como as flores, os regatos, as fontes, os prados, os prados, etc., que são felizes apenas porque, faltando-lhes a capacidade de pensar, não sabem que o são: “O essencial é saber ver,/ Saber ver sem estar a pensar, / Saber ver quando se vê, / E nem pensar quando se vê, / Nem ver quando se pensa (MOISES, 1981, p. 300)

O autor, quando se refere à data de nascimento do heterônimo, na verdade, possivelmente refere-se à Carta sobre a Gênese dos Heterônimos, que traz uma data fictícia por meados dessa época. Ou ao primeiro poema escrito de Alberto Caeiro, o “Guardador de Rebanhos”, que também localiza-se nessa data. De toda forma, o importante é que, a partir desses dois documentos, é possível observar que características tem o heterônimo. Nota-se como é uma personalidade criada com mundividência e caráter próprio já nesse momento.

Por exemplo, no trecho da Carta a seguir, pode-se conhecê-lo mais:

Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com um título, O Guardador de Rebanhos. E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro. Desculpe-me o absurdo da frase: aparecera em mim o meu mestre. Foi essa a sensação imediata que tive. E tanto assim que, escritos que foram esses trinta e tantos poemas, imediatamente peguei noutro papel e escrevi, a fio, também, os seis poemas que constituem a Chuva Oblíqua, de Fernando Pessoa. Imediatamente e totalmente... Foi o regresso de Fernando Pessoa Alberto

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Caeiro a Fernando Pessoa ele só. Ou, melhor, foi a reacção de Fernando Pessoa contra a sua inexistência como Alberto Caeiro. (PESSOA, 2008)

Conhecido como o dia triunfal, o dia em que Fernando Pessoa concebe Caeiro, é nessa carta que o escritor português descreve todo o dia com muito entusiasmo e ainda expõe ao amigo o novo heterônimo em seus pormenores. Ele já o apresenta como nascido em Lisboa em 1889, um ano depois do nascimento do próprio Pessoa, além disso, relata que passou a maior parte da sua vida em Ribatejo e morreu em 1915. Também, que apesar de ser o Mestre, o escritor português mostra que ele não chegou a ter mais que a instrução primária e que não exerce nenhuma profissão, tem estatura média e “embora realmente frágil (morreu tuberculoso), não parecia tão frágil como era” (PESSOA, 1935). Assim ele continua, com mais detalhamentos físicos seus.

Com base no exposto, Caeiro já nesse momento parece importante e singular, sua figura torna-se aos poucos mais distinta do Pessoa. No primeiro poema do heterônimo citado, pode-se entender melhor as suas particularidades poéticas:

IX - Sou um guardador de rebanhos Sou um guardador de rebanhos. O rebanho é os meus pensamentos

E os meus pensamentos são todos sensações. Penso com os olhos e com os ouvidos

E com as mãos e os pés E com o nariz e a boca.

Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la E comer um fruto é saber-lhe o sentido. Por isso quando num dia de calor Me sinto triste de gozá-lo tanto, E me deito ao comprido na erva, E fecho os olhos quentes,

Sinto todo o meu corpo deitado na realidade, Sei a verdade e sou feliz. (CAEIRO, 2008)

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Em análise, evidencia-se que os versos que são irregulares, sem esquema rítmico, apenas o octossílabo do primeiro verso repete-se no último, mostrando relevância especial a essa parte do poema. Ele diz “Sou um guardador de rebanhos” e “Sei a verdade e sou feliz”, frases que resumem quem ele é como encontra a felicidade. Também chama atenção o “dístico intermédio” (Martins, 2017, p.101) da primeira estrofe que cria a oposição “pensamento” e “sensação”. Ele é um “guardador de rebanhos”, rebanhos esses que são pensamentos, porém os pensamentos são sensações e a seguir ele as cita pelos seus meios fisiológicos: mãos, pés, boca, etc. Certamente, isso salienta um eu lírico que, provavelmente, prima as sensações, isto é, o que pode ser sentido, assim confirma o comentário “sua poesia vem direta da sensação sem precisar da consciência” (MARTINS, 2017, p.97), diz Martins no seu livro introdutório de Pessoa.

O heterônimo Caeiro expõe-se ainda como o poeta do presente, pois há predominantemente verbos relacionados aos sentidos humanos no tempo atual, como o verbo “ser” no presente do indicativo: “Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la”. As afirmações são categóricas e acontecem no momento de fala, vê-se pelos verbos “deito”, “sinto”, “fecho” e o verso “Sinto todo o meu corpo deitado na realidade”. Portanto, a partir da análise da poesia e do comentário ao documento citado anteriormente, Caeiro se apresenta ao público leitor como o heterônimo Mestre, que vem transmitir aos seus discípulos uma “verdade” e que, segundo Martins, ela “se poderia designar mais precisamente por uma recusa do sentido como organização coerente”(MARTINS, 2017, p.106).

Ainda sobre o mesmo poema, a autora Maria Helena Nery Garcez, em seu trabalho “Alberto Caeiro/Descobridor da Natureza” salienta outra característica do heterônimo: a natureza presente como tema central da sua poesia. Mais do que isso, ela estudou o poeta como um contestador da linguagem mística cristã e da subjacente visão de mundo que nela se consubstancia. Revelando, então, uma longínqua, mas não desimportante intertextualidade com São Francisco de Assis, outro grande poeta da natureza, como um modelo de antítese concebido. A seguir, vejamos o que ela diz a respeito do heterônimo da natureza:

“Sejam como eu...” propõe Caeiro no poema (237), fazendo concorrência a outra sentença evangélica, a famosa “Aprendei de mim...”, no livro de S. Mateus XI, 29, Caeiro apresenta-se como modelo a ser seguido, como Mestre e até mesmo como pastor (é Guardador de Rebanhos). É aquele que traz a “nova Revelação”, um novo programa de vida e de “salvação” para a humanidade. (GARCEZ, 2016, p. 201)

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Nota-se a atenção, primeiramente, para a posição que o Caeiro exerce entre os outros, de líder, isto é, um modelo a ser seguido. Como Garcez também diz em seu trabalho, um outro Cristo, mas que lideraria uma “salvação” pagã. Ele usa a clareza no discurso, a simplicidade da construção sintática, a preferência pelo uso de sentenças aditivas e causais, mostrando a necessidade de falar e explicar o que se diz, quase como um discurso catequético(GARCEZ, 2016). Assim, Garcez disserta sobre a obra do heterônimo de Pessoa e salienta a preocupação didática de doutrinação que perpassa seus poemas.

Porém ela também chama a atenção para as características em oposição entre Caeiro e São Franscisco de Assis. A seguir citarei alguns exemplos:

a) Enquanto o Mestre Pagão, Caeiro, parece se preocupar com ter um discurso simples e singelo, chamando a sua poesia de “grau zero”. O santo tem versos muito mais singelos. Isto é, não são de aparente simplicidade e por trás estão carregados de metafísica como os de Alberto Caeiro, eles, na verdade, são espontâneos e humildes, simples no interior e no exterior;

b) Conformismo: enquanto o primeiro demonstra um fatalismo, o outro é esperançoso. Observa-se, por exemplo, pelo verso do heterônimo “E de qualquer maneira que eu sinta, /Assim, porque assim o sinto, é que é meu dever senti-lo...”(CAEIRO, 2008), do poema “Como quem num dia de Verão abre a porta de casa”. Enquanto S. Francisco, segundo Garcez, dá graças a Deus por qualquer estação, amena ou rigorosa, ele quer com isto significar que é a Providência de Deus que governa o mundo e que, portanto, há uma Sabedoria e um Amor implícitos em todas as suas disposições, mesmo que essas sejam aparentemente desfavoráveis aos homens, aspectos observados no franciscano texto do “Cântico do Sol”.

c) Natureza: “Para Francisco a Natureza é sinal (transparente) – da Divindade embora – quanto para Caeiro ela é opaca, fechada em si mesma;” (GARCEZ, 2016, p. 125). Há uma disposição diferente dos dois poetas frente ao tema da natureza.

Depois de falar sobre as semelhanças e diferenças dos poetas, é importante também mencionar que a relação entre os dois foi comprovada pela autora do trabalho através do estudo exaustivo de textos inéditos de Pessoa. Precisamente, quando em um dado momento ela encontrou documentos do escritor português expondo as suas influências para criação de Alberto Caeiro e, assim, entre outros autores, estava São Francisco de Assis. Por isso, não são à toa essas coincidências verificadas nos poemas e também a de que muitos

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versos parecem ser uma paródia de textos do religioso ou de textos cristãos pela semelhança na sua construção, o que resulta em outra proximidade. Isso, porém, será melhor tratado neste trabalho nos capítulos seguintes.

A seguir, um dos documentos encontrados por Garcez em que essa influência se apresenta de maneira eloquente:

12-16 (Verso)

“Caeiro é o S. Francisco de Assis do novo paganismo”. (GARCEZ, 2016, p.71) A partir dessa afirmação, Garcez não teve dúvidas da intertextualidade entre os dois escritores, isto é, a sua intuição inicial se confirmara. Mais que isso, esse texto também estabelece quem é Alberto Caeiro para Pessoa, ou seja, ele é o responsável por liderar um movimento de secularização, de paganização pela escrita.

Diante disso, foram salientadas algumas diferenças entre Fernando Pessoa e o santo italiano que permitem delinear melhor quem é Alberto Caeiro e como é sua poética também frente à mística cristã e ao próprio Pessoa, que é a questão central em desenvolvimento aqui: escritos de pessoa em perspectiva à tradição judaico-cristã.

Sendo assim, o “guardador de rebanhos”, poeta da natureza, mestre dos demais heterônimos, coloca-se de maneira patente em movimento que vai de encontro à filosofia cristã. Sendo o primeiro arguens a argumentar a favor da questão:

Fernando Pessoa, constituído8 na tradição cristã, parece não permanecer fiel a ela

depois da sua criação poética pagã. 3.2.2 Ricardo Reis

Conhecido como o heterônimo “neoclássico”, Ricardo Reis também é descrito na mesma carta mencionada acima de 1935. A seguir há uma citação de Martins em que essa explanação a respeito do poeta foi feita de maneira sucinta:

8 Diz-se “constituído”, de acordo com o conceito dicionarizado da palavra “ser ou ter como a parte principal” (HOUAISS, 2009), pois o poeta foi formado nesse contexto, já que estudou em uma escola de freiras e tinha mãe religiosa, além de ter morado em país de religião católica.

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Ricardo Reis é o heterônimo de feição clássica. Começa por ser dado como professor de latim num colégio americano, mas na Carta sobre a Gênese dos Heterônimos é desenhado o seu retrato definitivo: nascido em 1887 no Porto, educado num colégio de jesuítas, latinista por educação alheia e semi-helenista por educação própria, é médico de profissão, vivendo no Brasil desde 1919, para onde “se expatriou espontaneamente por ser monárquico”. É comparado assim, fisicamente, com o Mestre Caeiro: “é um pouco, mas muito pouco, mais baixo, mais forte, mais seco. De resto, é de um vago moreno mate”. (MARTINS, 2017, p117.)

Já com relação à poética do heterônimo, Massaud Moisés (1986) também resumidamente a descreve no texto a seguir:

Ricardo Reis, por sua vez, simboliza uma forma humanística de ver o mundo, evidente na adesão ressuscitadora do espírito da Antiguidade clássica, de que o culto da ode e dum paganismo anterior à noção do pecado, constituem apenas duas particulares mas expressivas manifestações: “Assim façamos nossa vida um dia / Inscientes, Lídia, voluntariamente / Que há noite antes e após ? O pouco que duramos.(MOISES, 1981, p.300)

Depois dessa descrição, pode-se compreender mais o poeta latinista pelos seus poemas, como sugerido por MOISÉS (1986), que são, na verdade, odes, ao todo 28 publicadas pelo próprio Fernando Pessoa. O gênero escolhido, é claro, coincide com sua personalidade neoclássica. Pela paródia, Ricardo Reis mantém relação forte com Horácio.

Isso, porque Quintus Horatius foi uma das referências fundamentais de Pessoa. Nas suas Odes, vê-se essa influência já bastante estudada entre os especialistas. Os heterônimos citam seu nome em poemas, como Àlvaro de Campos em “Deem-me vinho que um Horácio cante” (PESSOA, 2008); e Bernardo Soares também em “cantos que tanta vez parecem ser-me ditos para conhecer — que me enleve e me erga como um trecho de prosa de Vieira ou uma ou outra ode daqueles nossos poucos clássicos que seguiram deveras a Horácio” (PESSOA, 2008). Porém os poemas de Reis são uma recriação literária e não igualam aos de Horácio, pois apesar de terem a forma rigorosamente clássica, os seus conteúdos não se assemelham aos do poeta latino. Na escolha do gênero, as odes; no venusino; nos versos brancos; nos ritmos modelados de maneira próxima aos greco-latinos; no uso da linguagem latinizante com construções sintáticas próximas ao latim; nas referências mitológicas; entre outras questões de construção sintática.

Mas a distância entre os dois também é grande, como já foi dito, isso porque os campos de problematização num e noutro não podem ser comparados. Já que, como discípulo de Caeiro, o heterônimo também se coloca como difusor do paganismo e assim demonstra em seus poemas a impossibilidade do regresso dos deuses, ele entende-os apenas como mito. Por

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isso, aborda-os de uma maneira completamente diferente do poeta clássico referido antes. Como no poema a seguir, em que coloca até Cristo entre as odiadas divindades:

Não a ti, Cristo, odeio ou te não quero.

Em ti como nos outros creio deuses mais velhos. Só te tenho por não mais nem menos

Do que eles, mas mais novos apenas.

Odeio-os sim, e a esses com calma aborreço, Que te querem acima dos outros teus iguais deuses. Quero-te onde tu ‘stás, nem mais alto

Nem mais baixo que eles, tu apenas. (REIS, 2008)

E é aí que vemos o segundo arguens da questio que coube a este trabalho. As poesias de Ricardo Reis são outro argumento em favor do aparente abandono de Pessoa da tradição judaico-cristã. A revolta diante do Deus cristão é tema de suas odes também, seguindo o primeiro comando dado pelo mestre Caeiro.

Entre outras características, está a que Reis também é fatalista, acredita na lei do destino e inclusive isso lhe imprime uma tristeza diante dos mistérios da vida e da morte, como observamos nos versos “Tão cedo passa tudo quanto passa!/ Morre tão jovem ante os deuses quanto/ Morre! Tudo é tão pouco!/ Nada se sabe, tudo se imagina”(REIS, 2008).

Garcez, em seu trabalho intitulado “O tabuleiro antigo: uma leitura do heterônimo Ricardo Reis” (GARCEZ, 2016) resume a leitura que faz do heterônimo em três pontos principais, cito-os:

a) A placidez; b) O perder; c) A vida.

Os três elementos entrelaçados configuram uma interpretação da poética de Reis, salientamos “uma”, pois não é única. Pela visão da autora, que utilizou o poema “Mestre, são plácidas” para exemplifica-la, o foco do poeta mantém-se muitas vezes na calma e tranquilidade do que lhe é tirado, do que lhe é tomado, no caso, a vida, que é retratada pelo tempo, o culpado por destruir e corroer tudo. Por exemplo, quando escreveu “Mestre, são plácidas /todas as horas/ que nós perdemos,/ se no perdê-las,/ qual numa jarra/ nós pomos flores.”(REIS, 2008). Esses versos retirados de um poema dedicado a Caeiro são a

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confirmação do que discorre Garcez (2016) sobre o poeta neoclássico, pois como esse há outros que mostram a visão do poeta em relação a “todas as horas” “plácidas” que “perdemos”, isto é, sua especial preocupação com esses assuntos.

Ademais, não se pode deixar de lado outro aspecto da sua poesia que é a sua disciplina. Como diz Osakabe (2013, p. 61), “Reis, nesse sentido, é um clássico: contido, cerebral, racional (...)”, pois suas odes em sua maioria tem métrica constante. Em nota preliminar à publicação dos poemas de Ricardo Reis, no livro “Fernando Pessoa” (1995), organizado pela Maria Aliete Galhoz, há uma frase sem assinatura que resume essa ideia:

O Nosso Ricardo Reis teve uma inspiração feliz se é que ele usa inspiração, pelo menos por fora das explicações quando reduziu a seis linha a sua arte poética:

Não a arte poética, mas a sua. Que ele ponha na mente ativa o esforço só da “altura” (seja isso o que for), concedo, se bem que me pareça estreita uma poesia limitada ao pouco espaço que é próprio dos píncaros. Mas a relação entre a alma e os versos de certo número de sílabas é-me mais velada. E, é curioso, o poema, salvo histórias da altura, que é pessoal, e por isso fica com Reis, que, aliás, a guarda para si, é cheio de verdade: que quando é alto e régio o pensamento/ súbdita a frase o busca/ E o escravo ritmo o serve. (PESSOA, 1995, p. 251)

No entanto, esse equilíbrio da forma e seu conteúdo é aparente, pois há uma profusão de sentimentos submersos nos versos, depois de melhor examiná-los. É possível ver isso na continuação da nota citada acima a respeito de Reis: “Ressalvando que pensamento deve ser emoção, e, outra vez, a tal altura, é certo que, concebida fortemente a emoção, a frase que a define espontaneíza-se, e o ritmo que a traduz surge pela frase fora.” (PESSOA, 1995, p.251).

A emoção poética exige uma disciplina do ritmo, como o próprio heterônimo explica no poema a seguir: “Ponho na altiva mente o fixo esforço/ Da altura, e à sorte deixo, E ás suas leis, o verso;/ Que, quando é alto e régio o pensamento,/ Súbdita a frase o busca/ E o escravo ritmo o serve” (REIS, 2008). E mesmo através desse esforço de criação poética disciplinada e ordenada, o seu conteúdo não é vazio, mas expressivo, como nestes versos “A vida é triste. O céu é sempre o mesmo. A hora/ Passa segundo nossa estéril, tímida maneira./ Ah não haver terraços sobre o impossível.” (REIS, 2008). Nesse poema, ele é categórico na sua afirmação sobre a vida, não admite dúvidas ou discussão e ainda a define com uma sensação de infelicidade, mais parece estar entediado com o ritmo da sua existência. No segundo verso, é comprovada essa sensação pelo advérbio “sempre” e o adjetivo “mesmo”, como que descrevendo algo monótono e estável, parado. Mas o “céu” sobre o qual predica o verbo nessa sentença é um referente bastante cambiável, por causa dos inúmeros fenômenos

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climáticos e astrológicos a ele ligados. Além de ser um elemento muito importante na história da humanidade, por exemplo, de acordo com o “Dicionário de Símbolos” o céu “tem papel relevante na imaginação mitológica, e religiosa de quase todos os povos, como lugar a partir do qual agiam os deuses depois da morte” (BECKER, 1999, p.179).

Porém, Reis parece estar num momento de estagnação em que a sensação que tem do tempo é outro, é mais lento que o normal, esse espaço pelo qual é possível observar a passagem das horas, o céu, não apresenta mudanças ou as apresenta de maneira “estéril, tímida”. Em seguida, ele finaliza com um suspiro, como que pensando sobre o mistério da vida, o céu agora é lugar do impossível, do infinito. Nota-se nesse poema uma série de emoções: tristeza, tédio, reflexão, que revelam como apesar da aparente racionalização dos versos, encontram-se escondidos ali uma exuberância de sentimentos.

Para finalizar, ao retomar o assunto anterior, reitero o ponto principal dessa seção, que é o que o heterônimo revela em seu poema em relação à tradição judaico cristã: ele a rejeita também, segue o mestre Caeiro. Vale dizer que é veemente o repúdio do poeta, como uma recusa a algo que lhe agarra: “Não a ti, Cristo, odeio ou te não quero”.

3.2.3 Álvaro de Campos

O poeta ou o homem da modernidade, o engenheiro mecânico e naval, também é o homem da emoção, característica eloquente em seus poemas, como diz o próprio Pessoa, “pus em Àlvaro de Campos toda a emoção que não dou em nem a mim nem à vida” (PESSOA, 2008). Álvaro de Campos viaja pelos sentimentos, ele os expõe e para ele são elementos importantes, como eles diz “Afinal, a melhor maneira de viajar é sentir. Sentir tudo de todas as maneiras./ Sentir tudo excessivamente/ Porque todas as coisas são, em verdade excessivas.”(CAMPOS, 2008). Talvez isso assim seja pelo tempo em que nasceu, ou sua personalidade, impressas nele por Fernando Pessoa. A seguir, há um pouco de sua história.

O seu nascimento também é narrado na mesma carta do “Dia Triunfal”:

Aí por 1912, salvo erro (que nunca pode ser grande), veio-me à ideia escrever uns poemas de índole pagã. [...] Àlvaro de Campos nasceu em Tavira, no dia 15 de Outubro de 1890 (às 1:30 da tarde, diz-me Ferreira Gomes; e é verdade, pois, foi feito o horóscopo para essa hora (por Glasgow), mas era de estatura média [...] (PESSOA, 2008)

E ele continua descrevendo outros aspectos físicos da pessoa literária. Mas o que é relevante aqui é a sua poética, que difere do outro discípulo de Caeiro, pois é o único a

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possuir fases poéticas. Os campos foram diferenciados por Jane Tutikian na introdução a obra do heterônimo na coleção de poemas da L&PM como: o Campo pré-Caeiro ou decadentismo, com o poema referente a esse momento: “O Opiário”, em que se revela um eu-lírico descontente e amargurado. “É antes do ópio que a minh’alma é doente.”, diz seus versos, sobretudo já pelo título a que recebeu percebe-se o espírito pessimista frente ao contexto industrial crescente na escrita de Campos.; o Campo Eufórico, quando Campos conhece o mestre Caeiro, o poeta produz sobre a influência de Walt Whitman e prima em seus conteúdos a modernidade, é desse momento os versos “À dolorosa luz das grandes lâmpadas/ eléctricas da fábrica/ Tenho febre e escrevo./ Escrevo rangendo os dentes”(CAMPOS, 2008). E a última fase é a do “Desencanto”, em que o heterônimo se mostra melancólico, tedioso e disfórico. Deste momento, há os versos “Não sou nada./ Nunca serei nada./ Não posso ser nada./ À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.”(CAMPOS, 2008), para exemplificar.

Moisés (1986) escreveu um parágrafo sucinto sobre o poeta, que permite a visão geral de Álvaro de Campos:

Álvaro de Campos é o poeta moderno, século XX, engenheiro de profissão, que do desespero extrai a própria razão de ser e não foge de sua condição de homem sujeito à máquina e à cegueira dos semelhantes, tudo transfundido numa revolta a um tempo atual e perene, própria dos espíritos inconformados: “Na véspera de não partir nunca/ Ao menos não há que arrumar malas/ Nem que fazer planos de papel”. (MOISÉS, 1986, p.300)

A maior parte dos poemas tem métrica livre, frutuoso uso da figura de linguagem onomatopeia, aliteração, hipérboles e metáforas, a extensão varia, também nota-se a utilização de estrangeirismos e neologismos. Num muito conhecido poema, “ODE TRIUNFAL”, datado em 1914, enxerga-se alguns desses fenômenos literários. Por exemplo, nos versos “Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r-r-r eterno!/ Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!”(CAMPOS, 2008) em que se vê o barulho transportado à linguagem lírica, além do empréstimo de sentimentos ao equipamento e o visível exagero ao se expressar.

Como já é de se esperar, pelo projeto de missão pagã do heterônimo criado por Fernando Pessoa, o poeta seguidor do Descobridor da Natureza desaprova a religião, repele-a, afasta-a. Ela é vista como consoladora dos fracos, como se observa nos versos a seguir: “Dá-nos a Tua paz,/ Deus Cristão falso, mas consolador, porque todos/ Nascem para a emoção rezada a ti;/ Deus anti-científico mas que a nossa mãe ensina;/ Deus absurdo da verdade absurda (...)”(CAMPOS, 2008), como esbraveja nesse poema. E, assim, delineia-se o terceiro

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A seguir, o ortônimo será o protagonista. Agora de maneira mais detida, olharemos os seus poemas pela perspectiva interpretativa de Garcez (2016). E neste trabalho, a análise do que diz o eu lírico situa-se na arquitetura do método disputatio proposta para releitura da obra de Pessoa em relação com a mística cristã na parte do Sed contra. Isto é, após a questão ou tese em pesquisa no trabalho: Fernando Pessoa parece abandonar a filosofia cristã ao longo da sua trajetória literária, foram vistos os argumentos que colaboram com a

questio, Alberto Caeiro com sua missão paganizadora rejeita o cristianismo, assim também

Reis e Campos, e agora chega-se ao “Sed contra (Mas) há o ortônimo”, ou seja a defesa do que já foi exposto. A seguir, há novamente a estrutura para melhor compreensão do texto até então:

QUESTIO

1. Alberto Caeiro

2. Ricardo Reis Os arguens 3. Àlvaro de Campos

Sed contra: o ortônimo diz...

Referências

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