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ÁREA DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE APP

5 O URBANISMO E SUAS REPERCUSSÕES ATUAIS

5.3 ÁREA DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE APP

De acordo com a legislação brasileira, APP é

[...] área [...] coberta ou não por vegetação nativa, com a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica, a biodiversidade, o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem estar das populações humanas. (inciso II do §2° do artigo 1° da Medida Provisória n. 2.166-67/2001). (BRASI, 2001).

“Na prática, todas as APP têm sido simplesmente ignoradas na maioria de nossos núcleos urbanos [...]”, assegura Araújo (2002, p. 3). Os processos de ocupação de APP contribuíram também para a paulatina ruptura das relações harmônicas entre as cidades e seus corpos d’água.

Confirmando os efeitos danosos a que edificações em APP estão sujeitas, e não apenas no Brasil, relata-se que, em 14 set. 2008, a casa Farnsworth – um dos

77 MARQUES, J. Q. A. As matas ciliares reduzem os cursos d'água. ABCZ, Associação Brasileira

projetos mais famosos de Mies Van der Rohe, de 1945 – posicionada junto ao Fox River, foi completamente inundada (FIG. 71). O projeto, localizado a aproximadamente uma hora e meia de Chicago, é um dos mais importantes exemplares da Arquitetura Moderna no mundo (FIG. 72), fato que não a poupou do desastre em consequencia da localização equivocada.

FIGURA 71: Inundação na Casa Farnsworth, 2008.

Autoria: Whitney French.

Fonte: Farnsworth House. Disponível em:<http://www.farnsworthhouse.org/news/?p=23>. Acesso em: 27 jan. 2009.

FIGURA 72: Casa Farnsworth.

Autoria: Tigerhill Studio.

Fonte: Farnsworth House. Disponível em: <http://www.farnsworthhouse.org/photos.htm>. Acesso em: 27 jan. 2009.

É muito difícil manter preservados e intocados ambientes protegidos em zonas urbanas. Esses espaços, abandonados por se mostrarem inúteis para a indústria imobiliária em decorrência das restrições ambientais, costumam ser invadidos e ocupados, irregularmente, seja pela população carente que não dispõe de moradia por falta de políticas habitacionais públicas de interesse social, seja pela população mais rica que busca o privilégio da proximidade com as águas, fonte de lazer. Como, em geral, não se pode dar um uso econômico às APP, as intervenções são feitas de modo ilegal e anti-ecológico – supressão de vegetação, caça e pesca, deposição de resíduos sólidos e entulho, – em detrimento da proteção dos habitats faunísticos e florísticos que estes ambientes constituem, em suas condições naturais. O conflito entre os direitos constitucionais à vida, à moradia e ao ambiente saudável é retratado nessas ocupações. Araújo (2002, p. 8) declara que

[...] as áreas protegidas são, muitas vezes, ocupadas por assentamentos humanos informais. A situação atinge hoje níveis insustentáveis em muitas das cidades brasileiras. Numa megacidade como São Paulo, por exemplo, estima-se que mais de um milhão de pessoas vivem em áreas que deveriam ter pouca ou nenhuma ocupação por força da legislação de proteção de mananciais. Entre as áreas ambientalmente protegidas que são comumente ocupadas de forma irregular pela população de baixa renda, as APP têm lugar de relevo.

Estando as APP inseridas num meio em que a dinâmica e os processos urbanos predominam, é essencial flexibilizar – com critério – os conceitos e paradigmas ambientais, ao mesmo tempo em que se trabalha de forma diferenciada a gestão urbana, inserindo, no planejamento, na execução, na fiscalização e no monitoramento, a dimensão ambiental.

A contínua ocupação e degradação dos rios e suas APP pode ser contida caso elas se integrem à paisagem urbana, abrigando usos atrativos à comunidade. Um exemplo são os campos de futebol nas várzeas78, espaços usualmente mantidos desimpedidos mesmo no interior de assentamentos precários e adensados, onde a ocupação obedece apenas às necessidades dos moradores. Os tradicionais campos de futebol de várzea, hoje em extinção, são um exemplo bem conhecido.

O artigo “Na prorrogação” de autoria de Ahouagi e Garcia (2008, p. 13) apresenta vários depoimentos sobre estes espaços tradicionais do futebol amador: “Campos de várzea, [...] verdes por causa da grama que nasceu após a cheia [...]”, sempre foram um espaço de lazer vazio, não ocupado, respeitado porque servia ao

lazer comunitário, de acordo com declaração do historiador Plínio Negreiros. “O campo era público, era da comunidade”, afirma Heleno Abreu, jogador do Clube Atlético Mineiro, igualmente citado no artigo mencionado (AHOUAGI; GARCIA, 2008, p. 15). Gilmar Mascarenhas, professor de Geografia Urbana da UERJ, também referido no artigo, declara:

O alagamento periódico impede o surgimento e o crescimento de vegetação mais densa, predominando as gramíneas [...], o fato de serem terrenos planos, facilita muito a prática desportiva [...]. Outras atividades socioculturais também demandam a várzea de forma periódica, como quermesses, modestos parques de diversão e circos, eventuais reuniões de moradores e concursos de pipa. Em algumas comunidades identificamos até a realização de missa campal. Mas, sem dúvida, pela centralidade que o futebol ocupa na vida social brasileira, ele é a atividade que vem ‘marcando’ a paisagem das várzeas, desde as primeiras décadas do século XX (AHOUAGI; GARCIA, 2008, p. 13).

Ahouagi e Garcia (2008, p. 15) ainda comentam que “a várzea se tornou um espaço que transcende o futebol jogado ali [...]; a várzea também era espaço para visibilidade [...]”. A várzea – APP – apresenta uma vocação natural para espaço livre

público.

Os moradores de regiões próximas ou contíguas a APP reivindicam espaços multifuncionais, que permitam atividades esportivas, como trilhas e ciclovias, ou espaços de descanso e contemplação da natureza. É possível obter habitação de melhor qualidade, melhor condição de vida nas cidades e uma proteção ambiental mais eficaz e eficiente, construindo alternativas de coexistência dos meios natural e urbano, reconhecendo a realidade e negociando e pactuando posições alternativas, pois fato é que nenhuma das normas vigentes manteve intocáveis as APP no meio urbano.

Silva e Tângari (2007, p. 11) propõem “[...] discutir e instrumentalizar a flexibilização das APP, segundo critérios de especificidades ambientais, sociais e econômicas locais [...]”, a partir do conhecimento das formas de ocupação do território, “[...] das potencialidades e de conflitos específicos [...] e da identificação de ações que visem a sustentabilidade ambiental, tendo em vista as especificidades das populações, dos recortes de território e a capacidade local de gestão.” E, acrescente-se, para a efetiva e eficaz proteção ambiental no meio urbano.

Como lembram Costa e Furuiti (2007, p. 6),

“as APP acabam sendo vistas [...] como um fator limitante para o desenvolvimento urbano e o Código Florestal é tido como um obstáculo para o mercado imobiliário. [...] Um dos grandes desafios então é o de

mudança na forma de compreensão e gestão das APP. [...] A aplicação do conceito de desenvolvimento urbano sustentável pode ser a saída para o planejamento urbano atual e futuro”.

Concretizando uma proposta, Carvalho e Fontes (2007, p. 239) lembram que [...] alguns problemas ambientais que hoje ocorrem freqüentemente em APP urbanas consolidadas poderão ser minimizados se for planejado um sistema de espaços livres que integre a essas APP, áreas contíguas, em pontos também ambientalmente vulneráveis, que funcionem como zonas de amortecimento dos escoamentos superficiais. A concepção integrada de espaços livres em vertentes e em fundos de vale pode ser entendida como a de um sistema de áreas de preservação que complementa e sustenta a função das APP lineares, como meio de conservação dos recursos hídricos. Algumas iniciativas de urbanização cuidadosa em espaços de orla, que valorizam os corpos d’água, estão ocorrendo com sucesso, como o Parque Ecológico de Itabirito, cujo projeto é de autoria dos arquitetos Heloisa Gama de Oliveira, Eduardo Tagliaferri e Maini de Oliveira Perpétuo, mostrado na FIG. 73. A gestão das águas vem agindo coerentemente na gestão e preservação dos corpos hídricos, ao adotar ações que protegem e valorizam suas margens.

FIGURA 73: Parque Ecológico de Itabirito, 2009.

Autoria: Própria.

Segundo Aldigueri (2007, p. 343), as APP recuperadas também podem configurar corredores conectando fragmentos vegetacionais formando um sistema de espaços livres públicos. O tratamento paisagístico integrado pode garantir às APP a integridade e perenidade. Uma proposta, conduzida com critério, contribuirá com a preservação das APP. “[...] A familiaridade com os corpos d’água, o sentimento de pertença e o desejo de protegê-los, [são] parâmetros que [devem garantir] a sua valorização.” (MELLO, 2008, p. 186).

Os espaços abertos, de domínio público, onde prepondera o princípio do bem comum e que promovem as ligações físicas e afetivas entre as pessoas e o corpo d’água ampliam a proteção ao conjunto formado pelo rio e suas margens, ao invés de degradá-los. A importância das funções ecológicas das APP e zonas ripárias, bem como de suas funções na dinâmica urbana demonstra a impossibilidade de ignorá-las no planejamento territorial e urbano.

É responsabilidade do município planejar sua rede de espaços livres públicos visando o bem comum e o direito à cidade. O planejamento de um sistema de

espaços livres públicos é um processo complexo, na medida em que esses espaços

têm importância para o conforto ambiental, a conservação de fauna e flora, o lazer público, o ordenamento da forma urbana, o controle de microclima, dentre outros. Muitas variáveis definem sua qualidade ecológica.

Lembrando as intervenções audaciosas de Olmsted no século XIX, um sistema de espaços livres públicos deve ser estabelecido de forma articulada, desde o Plano Diretor, em termos de rede e conjunto, e as APP urbanas são o espaço privilegiado para adotar uma concepção deste tipo.

O desafio da realização do desenvolvimento urbano em bases sustentáveis é a articulação da política ambiental e da política urbana, considerando o impacto antrópico sobre o meio natural, a dinâmica urbana e os efeitos positivos da apropriação as APP pela população urbana, que podem vir a ser referenciais de conhecimento, de história, de memória, no espaço vivido pelas pessoas.