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CAPÍTULO III A emergência étnica e suas composições

Mapa 07 Áreas de proteção e estações ecológicas do CIPP.

Fonte: Fundar, 2009.

O processo de autoafirmação étnica ocorre a partir da atuação da Pastoral do Migrante que chega até as vilas das porções sul e leste seguindo as notícias sobre a arbitrariedade do Governo nas ações de desapropriação na região, ao propor quantias e condições injustas aos proprietários e menosprezar os interesses das pessoas que rejeitavam deixar as suas localidades de origem a todo custo. A Pastoral do Migrante se aproxima da vila de Bolso, primeiramente, a partir da paróquia local onde passa a atuar um padre e uma freira

109 missionários da Pastoral. Em junho de 2012, mantive breve contato com o padre missionário que hoje é pároco de uma capela localizada na periferia de Fortaleza.

De início, a Pastoral centrou sua atuação sobre os jovens das vilas de Tapuio, Bolso e Oiticicas que foram incentivados a participar de uma gincana onde as atividades consistiam em colher informações historiográficas, produzir descrições sobre os hábitos cotidianos das suas vilas e agrupar essas informações num formato textual e teatral que fosse, num segundo momento, apreciado pela comunidade local. Em meio aos dados registrados na pesquisa dos jovens que procuravam os habitantes mais velhos das vilas em busca de narrativas, percebeu- se a emergência de conteúdos do universo indígena Anacé, principalmente. Referências a personagens daquela etnia, referências a confrontos, mortes e ―incorporações de índios bravos‖ às famílias de origem portuguesa começaram a parecer nos relatos que os jovens apresentavam no grupo de discussão. Desses dados, a Pastoral do Migrante, com apoio da população que participou direta e indiretamente da gincana, produziu o livreto ―Nunca Desista, Lute até o Fim: Construindo Nossa História‖. Documento que acabou redimensionando o movimento político local e produzindo inflexões importantes por transpor a característica de ―associação de moradores atingidos‖ para a de um ―grupo indígena organizado‖.

Uma série de reavaliações internas do passado e o confronto desses dados com o presente conflitivo, mais o incentivo da Pastoral do Migrante, tornaram a presença indígena um fator de luta pela terra. Os significados do ―ser índio‖, e todas as adjetivações negativas relacionadas nos estados do Nordeste – tais como ―o brabo‖ (bravo), ―o acomodado‖, ―o miserável‖ – foram redefinidos em termos que passaram a ser relacionadas – pela Pastoral, por acadêmicos, antropólogos a serviço do Estado e outros sujeitos políticos – à ideia de que se apresentar como indígena pressupunha organização, força unificadora de liderança e enfrentamento das ações do Estado com base em dispositivos legais do próprio Estado: a Constituição Federal e outras leis que assistem às populações tradicionais e aos grupos étnicos.

Ressalta-se que a existência de fronteiras territoriais e de relações com os índios da etnia Tapeba, que se localizam a poucos quilômetros do CIPP, foi decisiva para se optar pela autoafirmação étnica Anacé. Foi exemplar, sem dúvida, a existência daquele processo mais antigo de emergência que ocorreu nas proximidades das vilas do CIPP, situação em que as famílias indígenas foram desafiadas, durante anos, por contendas territoriais com o Estado e com empresas as mais variadas. Embora todos os problemas do drama da afirmação identitária inseridos em formas locais de autoridade política baseadas na ameaça e no

110 tolhimento de apoios, os Tapebas conseguiram se estabelecer e perpetuar seu discurso étnico a despeito do arsenal argumentativo e operativo que se contrapunha ao seu movimento político (Gondim, 2009; Barretto Filho, 1994).

Em 11 de setembro de 2003, o Ministério Público Federal (MPF), após a chegada de um documento na 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF, recomenda à FUNAI que seja constituído um grupo de trabalho (GT) para proceder à identificação e demarcação da terra indígena Anacé, nos municípios de Caucaia e São Gonçalo do Amarante. A Fundação Nacional do Índio passa a atuar de maneira intensiva na região, estendendo o seu raio de operação das aldeias indígena de Tapeba, em Caucaia, para a região oeste, onde se encontrava a poligonal delimitada pela carta estadual demarcatória do CIPP.

A atuação da FUNAI, em diversos momentos marcados pela pressão de conflitos e acordos entre Estado, empresas e grupo étnico, é marcada por um acompanhamento atento das movimentações Anacé, de todos os cenários de negociações e veiculação de propostas. Os Anacé, desde os primeiros contatos com o órgão federal, reconheceram a representatividade e legitimidade da participação da FUNAI em todos os espaços onde a questão étnica e suas problemáticas políticas se colocaram.

O regime da tutelaridade, comum na administração estatal dos assuntos indígenas no país (Baines, 1992), foi aceito sem desconforto pelos indígenas que entendem ser naquela instituição onde o conselho sobre a atuação política e a reivindicação de direitos civis básicos e diferenciados deve ser obtidos sem ressalvas e com segurança. Em campo, soube por experiência própria como esse poder tutelar é eficaz no trato de todos os assuntos relacionados aos processos decisórios Anacé.

Também cabe lembrar aqui a participação do Ministério Público Federal (MPF) que sempre associou a ―causa Anacé‖ às injustiças sociais e ambientais decorrentes das escolhas mal planejadas que geraram o CIPP. Com base nos estudos dos seus antropólogos, o MPF se conscientizou da particularidade e complexidade do que envolve a história da emergência e reelaboração étnica na região. Sobre essa participação institucional, o antropólogo e técnico do judiciário Sérgio Brissac (2009b), com propriedade de quem viu e viveu parte da história do movimento indígena da Costa do Pecém, comenta em trabalho recente.

111 A história do contato das famílias indígenas com o projeto do Complexo mostra que a organização Anacé, que até 2008 contabilizava cerca de 403 famílias e 1282 pessoas, distribuídas em cinco aldeias principais (vide Tabela 07), surge em decorrência das pressões territoriais envolvidas na expansão da área retroportuária do Pecém, ou seja, a partir da consolidação da instalação do Complexo Industrial e Portuário do Pecém (CIPP). No interior desse contexto, é central o decreto do CIPP que torna a região ―área de interesse público com fins à desapropriação‖.

Tabela 07 – Distribuição da população Anacé por aldeias, casas, famílias e pessoas.

Etnia Municípios Aldeia Casas Famílias Pessoas

Anacé Maracanaú Horto 0 0 1 Caucaia Capoeira 4 5 18 Japoara 119 137 457 Matões 89 104 323 Santa Rosa 90 104 333 S. Gonçalo do Amarante Bolso 45 53 150 TOTAL 3 6 347 403 1282

OBS: Os números aqui cedidos podem sofrer alterações decorrentes de variantes como natalidade, mortalidade e desagregação de indivíduos ao movimento indígena (indígenas que pedem o desligamento dos seus nomes dos cadastros da FUNAI). As aldeias grifadas de rosa e roxo são aquelas que concentram o maior contingente populacional e aquelas grifadas apenas de roxo são as que se encontram no interior da área poligonal do CIPP.

Fonte: SIASI (Gerado em 28/07/2008 e cadastro encerrado em 23/06/2008) Fundação Nacional

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Tabela 08 – Famílias indígenas e não indígenas morando no CIPP (a).

Localidades Nº de Famílias

Baixa das Carnaúbas 200

Matões 113

Matões 230

Lagoa Amarela – Matões 180

Matões 100 a 130

TOTAL 823 a 853

OBS: As vilas com presença indígena estão grifadas de verde. O número total de famílias engloba famílias indígenas e não indígenas.

Fonte: Fundar, 2009.

Tabela 09 – Famílias indígenas e não indígenas morando no CIPP (b).

Localidades Nº de Famílias Nº de Habitantes

Bolso 63 196

Gregório 4 11

Chaves 92 297

Tapuio 73 242

TOTAL 232 746

OBS: As vilas com presença indígenas estão grifadas de verde. O número total de famílias engloba famílias indígenas e não indígenas.

113 De acordo com o Parecer Técnico sobre a área habitada pelo grupo Anacé (Brissac, et ali, 2009), a zona de influência habitacional ocupada pelo grupo soma, aproximadamente, 11.688,75 hectares que ficam na sua totalidade localizados no interior do polígono espacial destinado à instalação dos empreendimentos do CIPP, ocupando com predominância a paisagem do tabuleiro pré-litorâneo que se expande à frente da área do Porto do Pecém47. O Parecer recomendava a não remoção de nenhuma das famílias habitando a região delimitada como de influência étnica.

47 O Parecer Técnico se encontra em na edição de janeiro/julho da revista Cadernos do Leme, em

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