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CAPÍTULO III A emergência étnica e suas composições

Mapa 06 Localidades da área poligonal do CIPP

O polígono traçado com a linha verde delimita a área do CIPP no interior da qual se encontram as vilas Anacé de Bolso e Matões. Fonte: IPECE.

Essas recomposições espaciais e identitárias, ainda são atravessadas por todas as ações governamentais de ocupação paulatina da área decretada para desapropriação, assim como pela especulação empresarial sobre territórios que, em paralelo ao Governo, negocia bens fundiários com as famílias não indígenas interessadas em vender suas terras. Nesse sentido, Governo e empresas atuam conjuntamente num plano de desapropriação do CIPP. Enquanto aguardam decisões judiciais sobre a situação indígena, poupam as áreas indígenas em litígio das suas investidas.

Outro elemento comum aos Tapeba e Anacé é a presença de organizações da igreja Católica na produção de pesquisas historiográficas, mobilização política e assistência às organizações étnicas. No caso dos Tapeba, Barretto Filho (1994) registra a presença da Equipe Arquidiocesana de Apoio à Questão Indígena, da Arquidiocese de Fortaleza, responsável pelas primeiras mobilizações em torno da criação – a partir de um regime de

105 memória sobre a presença indígena na região de Caucaia – de uma organização política empenhada em defender a identidade categórica e os seus consequentes direitos.

A Equipe de Assessoria às Comunidades Rurais da Arquidiocese de Fortaleza começou a trabalhar em Caucaia em 1984, assistindo indistintamente Tapebas e "brancos" e tentando equacionar os problemas de ambos, "índios" e pequenos posseiros. Em parte devido à sua própria forma de atuação - marcadamente assistencialista num primeiro momento - e em parte devido a uma mudança de conjuntura - o naufrágio do Plano Nacional de Reforma Agrária - logo a Equipe se descuidou do projeto original de dar suporte tanto a "índios" e "brancos" numa luta comum pela terra - que inclusive levou à criação, em 1985, da Associação das Comunidades do Rio Ceará, com representação paritária de Tapebas e "brancos", meio a meio (desde a presidência até o conselho, passando pela tesouraria e secretaria) (Barretto Filho, 1993, p. 19).

Entre os Anacé, a Pastoral do Migrante, da Igreja Católica, consolidou os primeiros ciclos de debate e gincanas culturais dentro das comunidades de São Gonçalo do Amarante em 1998. Como se verá nos próximos tópicos do capítulo, esforços didáticos-pedagógicos para ―resgatar‖ a memória indígena das comunidades foram rituais fundamentais ao processo de fortalecimento de um coletivo em torno da causa étnica; processo este que é a própria emergência indígena nos seus inícios, com seus fatos e personalidades.

Esses esforços eram eventos lúdicos que, por meio da ―contação de histórias‖, da criação de painéis de gravuras e de rodas de debate, desenvolveram um ambiente de presentificação e compartilhamento de versões narrativas sobre as origens indígenas das vilas localizadas no interior do CIPP. Os jovens, principalmente, eram incentivados a colher relatos com os habitantes mais velhos das localidades e transportar essas narrativas para o centro das rodas de diálogo, onde eram reproduzidas diante dos habitantes das vilas presentes. Dados mais detalhados sobre a atuação da Pastoral do Migrante dentro do movimento indígena Anacé serão apresentados em outro momento deste capítulo.

É necessário notar que as emergências étnicas – essas e outras registradas pela literatura etnográfica, principalmente no Ceará (Palitot, 2009; Tófoli, 2009; Gondim 2009; Valle, 1993; Barretto Filho, 1994) – não se enraízam em grupos políticos exclusivos, com agendas de atuação própria e denominações identitárias circunscritas. O que uma comparação entre etnogêneses Tapeba e Anacé prova é que apenas em termos de unidades de influências relacionais, multilocais e híbridas pode-se compreender os eventos e agentes que se aglutinam

106 em torno da etnicidade. Observar a etnogênese é, nesse sentido, localizar as redes de produção de agências e sentidos que colocam em articulação e em mútua influência segmentos de escalas, denominações e propósitos diversos. Este trabalho privilegia a análise das ―pressões‖ que envolvem a manutenção da denominação categorial Anacé por uma coletividade organizada diante dos avanços estruturantes de obras de grande escala da Costa do Pecém.

O que também se percebe comparativamente é que enquanto a afirmação identitária Tapeba defrontou-se com uma série de instâncias de enfrentamento à certificação do direito indígena à terra (latifundiários, governos, empresas do polo industrial regional, etc.), a etnogênese Anacé inserta-se em uma dinâmica onde os ―mecanismos de descaracterização da autoctonia‖(Barretto Filho, 1994, p. 23) se somam a pressões que cobram ―as provas da existência indígena‖ (idem) e impõem por força física e em ritmo veloz as transformações espaciais requeridas pelo aparelhamento industrial do Estado. As etnogêneses Tapeba e Anacé sofreram (e sofrem), diferentemente, com pressões do mundo estatal-privado. Os Anacé têm à sua frente as expressões mais características do que Sassen (2006) chamou de composições assimétricas entre forças do capitalismo avançado: o Estado providencial, que explora o binômio direito e território na tentativa de reproduzir suas forças, e o mundo empresarial, que através da articulação das suas autoridades técnicas aprofunda sua dependência com a atualização de velocidades produtivas, substituição de modelos tecnológicos e diminuição da potência interventora do Estado. O impacto dessas composições (Sassen, 2006) é sentido mais uma vez na capacidade plástica, inventiva e atualizadora da formulação do discurso étnico que, por sua vez, rebate nas formas de organizar-se politicamente.

Se a dissertação de Barretto Filho (1994) primou por visualizar a interação entre organização indígena, órgãos clericais e instituições estatais sensíveis ou avessas à presença indígena Tapeba, irei localizar e descrever a etnogênese Anacé a partir das composições estruturantes visualizadas por Sassen (2006) e Ribeiro (1991; 2008), que levam em consideração desde as agendas mais específicas de uma transnacional, até os sistemas administrativos através dos quais opera o Estado. Por isso, enfatizo tanto os empreendimentos do Complexo Industrial e Portuário do Pecém (CIPP), quanto o que vem a ser a organização indígena Anacé, entendendo que esses dois segmentos impactam e reconstroem com mutualidade os projetos políticos que os individualizam. É nesse sentido que a minha pesquisa focaliza as interferências entre reelaborações étnicas e novas redes de desenvolvimento do Nordeste.

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A emergência Anacé no interior do CIPP

Recontar a história da emergência étnica Anacé, e da sua localização no interior de outro processo emergente – qual seja, o projeto desenvolvimentista do Complexo Industrial e Portuário do Pecém (CIPP) –, demandou explorar uma série de pareceres, cartilhas, notícias e peças legais que analisaram a situação do grupo ante os interesses de instalação do empreendimento do CIPP.

A realização da pesquisa enfrentou diversos problemas relacionados ao convívio entre o pesquisador e as famílias indígenas que habitam as vilas localizadas nos municípios de São Gonçalo do Amarante e Caucaia; principalmente na vila de Bolso, onde residi por quase seis meses, entre janeiro e julho de 2012. O que se trata aqui por problemas de convivência – e que Ramos (2006, p. 7) já descreveu como ―condições nada amistosas à pesquisa‖ – entre pesquisador e populações locais, diz respeito à suspeita dos indígenas sobre a presença de um pesquisador em antropologia no momento em que era decidido, pelo Governo do Estado do Ceará, a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e a Petrobras, a compra de um terreno onde as 170 famílias seriam realocadas. A aquisição da área que será transformada em Reserva Indígena, que atualmente é dimensionada em 725 hectares, estava a depender de parecer da FUNAI em Brasília, que deveria afirmar a viabilidade para o ―assentamento‖ das famílias indígenas até dezembro de 2012.

Como escrevi anteriormente, as inúmeras negativas que recebi em campo ante, as interdições ao diálogo com as famílias indígenas impostas pelas próprias lideranças e todas as evitações de contato dos seus representantes com o pesquisador são compreendidas como um processo legítimo ―de tomada de posição política e afirmação frente a presença da autoridade técnica do antropólogo‖ (Santos, 2012, p. 10). Explorarei com mais detalhe os motivos dessas evitações à presença do antropólogo por parte das populações indígena no próximo capítulo.

Antes de tratar das negociações atuais envolvendo as famílias indígenas, o Governo, a Petrobras e a FUNAI é preciso que se narre a história de conflitos e impasses sobre a instalação do CIPP e a consolidação da atual convivência entre as populações locais e os vários empreendimentos que compõem a totalidade do Complexo.

Afirmações de alguns moradores da região dão conta que o processo de autoafirmação étnica Anacé teria se iniciado em 1998, três anos após o início das obras de edificação do Porto do Pecém. À época foram desapropriadas cerca de 300 famílias que moravam próximas

108 à faixa da Costa do Pecém. Em 2002, o Governo renova o decreto de desapropriação da área ampliando-as em direção à porção leste do município de S. Gonçalo do Amarante e oeste do município de Caucaia. São criadas, também à época, as Estações Ecológicas I e II do Pecém, com vista à redução dos impactos ambientais decorrentes das obras.