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Os artigos 51º e seguintes da Carta, bem como o artigo 6º do TUE, definem o âmbito de aplicação e os destinatários desta. Assim, o artigo 51º da Carta, tal como resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça120, estabelece que a mesma tem como destinatários as instituições e agências da União e os Estados–membros, mas unicamente quando aplicam o Direito da União. Consequentemente, a Carta não irá ampliar o leque de competências da União que lhe são atribuídas pelos Tratados, já que a sua aplicabilidade se encontra limitada a matérias “comunitarizadas”, em obediência ao princípio da subsidiariedade121. Encontrando-se expressamente previsto no artigo 51º nº 2 que a Carta não modifica as «atribuições e competências da União» tal como definidas pelos Tratados.

Já o artigo 52º prevê uma cláusula geral de restrição, semelhante à reconhecida pela Convenção Europeia dos Direitos do Homem, de acordo com a qual, qualquer restrição aos direitos e princípios contidos na Carta deverão encontrar-se expressamente previstos por lei e salvaguardar o núcleo essencial dos direitos em causa. Deverão, igualmente, observar o princípio da proporcionalidade e ter em vista objectivos de interesse geral reconhecidos pela União.

No que à interpretação dos direitos diz respeito, aquando da elaboração da Carta, houve a preocupação de evitar potenciais conflitos com os Tratados, bem como com a Convenção Europeia dos Direitos do Homem e com o Direito interno dos Estados- membros. Nesse sentido, estabeleceu-se que sempre que a Carta contenha direitos já previstos nos Tratados, esses direitos deverão ser exercidos nos termos previstos pelos Tratados. Tal como deverão ser interpretados de acordo com as tradições constitucionais dos vários Estados-membros, os direitos comuns a estas e à Carta. Já em relação a direitos contidos na Convenção Europeia dos Direitos do Homem, o conteúdo e alcance

120 Conforme determinado, entre outros, nos seguintes acórdãos: Wachauf de 13 de Julho de 1989,

processo 5/88 e acórdão ERT de 18 de Junho de 1991, processo 260/1989.

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Para uma noção do princípio da subsidiariedade, sua consagração e evolução do Direito da União, vd., Margarida Salema d’Oliveira Martins, O Princípio da Subsidiariedade em Perspectiva Jurídico- Política, Coimbra Editora, 2003.

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dos mesmos será definido pela Convenção e pela jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. Porém, poderá o Direito da União estabelecer uma protecção mais ampla, mas nunca poderá estabelecer uma protecção inferior à da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Pode assim considerar-se que a Carta mantém em vigor toda a jurisprudência do Tribunal de Justiça na medida em que esta se baseia nos princípios gerais de Direito, nos Tratados, nas tradições constitucionais comuns aos Estados-membros e em Tratados Internacionais de entre os quais sempre se destacou a Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

Por último, o artigo 53º estabelece uma cláusula de “não regressão”, similar ao artigo 53º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que impede a aplicação da Carta sempre que esta estabelecer um nível de protecção inferior à protecção concedida pelo Direito Interno dos Estados-membros ou pelo Direito Internacional.

O Tribunal de Justiça, em momento ulterior à entrada em vigor do Tratado de Lisboa, teve oportunidade de dar a conhecer a sua posição quanto à aplicação da Carta, nomeadamente em dois Acórdãos recentes.

No âmbito do processo Seda Kücükdeveci,122 o Tribunal de Justiça recordou que o princípio da não discriminação em função da idade é um direito fundamental que deve ser considerado como um princípio geral do Direito da União e que igualmente se encontra consagrado na Carta dos Direitos Fundamentais (artigo 21º nº 1). Concluiu que, encontrando-se o caso sub iudice no âmbito de aplicação do Direito da União, aquele princípio seria aplicável ao caso concreto, não obstante se referir a um conflito entre dois particulares. Cabia por isso ao Tribunal Alemão não aplicar a legislação nacional desconforme com o mencionado princípio, que admitia diferenças de tratamento em função da idade no quadro de uma relação laboral. Todavia, atendendo à jurisprudência anterior do Tribunal123, é provável que idêntica solução jurídica fosse alcançada na ausência da Carta.

Já no Acórdão McB124 discutiu-se o direito de guarda de três crianças menores e a possibilidade da mãe dos menores fazer uso do seu direito de livre circulação pelo espaço da União, sem o consentimento do pai dos menores. O Tribunal começa por

122

Acórdão de 19/01/2010, processo C-555/07.

123

A título meramente exemplificativo, o Acórdão Mangold, de 22/11/2005, processo C-144/04.

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recordar o carácter juridicamente vinculativo da Carta, bem como o respeito pelo princípio da subsidiariedade consagrado na mesma. Assim sendo, afirma que: «o Tribunal de Justiça é chamado a interpretar, à luz da Carta, o direito da União nos limites das competências atribuídas a esta. Daqui decorre que, no âmbito do presente processo, importa levar em consideração a Carta apenas para efeitos de interpretação do Regulamento nº 2201/2003, sem proceder a uma apreciação do direito nacional

enquanto tal»125. Considerou ainda o Tribunal que, na medida em que a Carta prevê

direitos correspondentes aos garantidos pela Convenção Europeia dos Direitos do Homem, o seu conteúdo e alcance são idênticos aos previstos na Convenção. E porque o conteúdo do artigo 7º da Carta126 é semelhante ao artigo 8º nº 1 da CEDH127, o Tribunal de Justiça procede de seguida a uma análise de decisões do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem referentes a factos semelhantes aos que se encontravam em discussão. Recorda igualmente o Tribunal que a Convenção Europeia deverá ser vista como “standard mínimo” na medida em que a Carta nunca poderá estabelecer um âmbito de protecção inferior ao da Convenção.

De notar que o Tribunal de Justiça socorre-se da Carta de Direitos Fundamentais e julga os direitos nela previstos aplicáveis a duas situações de carácter horizontal. E foi o receio da aplicação horizontal da Carta que conduziu a República Checa à “negociação” da extensão do protocolo opt out ao país. No entanto, esta atitude do Tribunal de Justiça seria expectável face à jurisprudência firmada, entre outros, no Acórdão Defrenne128. Nesse Acórdão, o Tribunal considerou que a um artigo do Tratado

que seja tido por suficientemente claro, preciso e incondicional na previsão de um direito a conferir aos particulares poderá ser atribuído efeito directo horizontal. Na determinação do efeito directo, de acordo com o pensamento do Tribunal, importa a natureza da norma e não o destinatário da mesma. No caso, a proibição de discriminação salarial em função do sexo seria aplicável não apenas à acção das autoridades públicas, mas igualmente aos acordos e contratos estabelecidos entre particulares.

125

Acórdão McB, de 05/10/2010, processo C-400/10, parág. 51 e 52.

126 Sob a epígrafe “Respeito pela vida privada e familiar”, estabelece que: «Todas as pessoas têm direito

ao respeito pela sua vida privada e familiar, pelo seu domicílio e pelas suas comunicações».

127

“Direito ao respeito pela vida privada e familiar”, prevendo o nº 1 que: «Qualquer pessoa tem o direito ao respeito da sua vida privada e familiar, do seu domicílio e da sua correspondência».

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Seguindo o mesmo raciocínio, os direitos previstos na Carta de forma clara, precisa e incondicional e não careçam de qualquer intervenção legislativa complementar, poderão ser aplicados em conflitos entre particulares, desde que estes se enquadrem no âmbito do Direito da União. E tanto assim é que, nos termos do artigo 6º do TUE, os Tratados e a Carta têm o mesmo valor jurídico, sendo esta, aliás, a única forma de lhes garantir o respectivo efeito útil.

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IV - A ADESÃO À CONVENÇÃO EUROPEIA DOS