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II. ENQUANDRAMENTO DO DIREITO E POLÍTICA DE ASILO DA UE

3. Sistema Europeu Comum de Asilo

3.3. Âmbito subjectivo do SECA

O SECA estabelece quatro estatutos no âmbito do sistema de asilo: o estatuto de requerente de asilo, o estatuto de refugiado, o estatuto de beneficiário de protecção subsidiária e o estatuto de beneficiário de protecção temporária.

A legislação do SECA não distingue nacionais de países terceiros de apátridas no que se refere às normas aplicáveis, pelo que, doravante, estas duas categorias serão mencionadas em conjunto enquanto nacionais de países terceiros.

Nacionais de países terceiros podem requerer o estatuto de refugiado se estiverem presentes no território ou na fronteira dos Estados-Membros da UE, de acordo com o artigo 3º, nº 1 da Directiva Procedimentos. É obrigatório analisar o processo da pessoa de forma a determinar se é elegível para protecção internacional (art. 3º, nº1 do Regulamento de Dublin III). O Regulamento de Dublin III determina qual o Estado- Membro que tem a responsabilidade para analisar o pedido de asilo (art. 78º nº 2 (e) TFUE). As regras de análise, bem como o recurso da decisão, estão estabelecidas na Directiva Procedimentos.

Definição de refugiado

Como base da política europeia de asilo, a Convenção de Genebra, no seu artigo 1º, define quem pode ser considerado refugiado. Fá-lo através de três critérios: inclusão, cessação e exclusão. Preenchendo os pressupostos do artigo 1ºA, o requerente de asilo cumpre os critérios de inclusão. Nos termos dessa norma, deverá ser reconhecido o estatuto a quem “receando com razão ser perseguida em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, filiação em certo grupo social ou das suas opiniões políticas, se encontre fora do país de que tem a nacionalidade e não possa ou, em virtude daquele receio, não queira pedir a protecção daquele país; ou que, se não tiver nacionalidade e estiver fora do país no qual tinha a sua residência habitual após aqueles acontecimentos, não possa ou, em virtude do dito receio, a ele não queira voltar.”44

43 Conclusões do Conselho Europeu (26-27 de Junho de 2014) p. 2. 44 Convenção de Genebra, artigo 1ºA(2).

Porém, a alínea C do artigo 1º estabelece as situações que, quando preenchidas, funcionam como critério de cessação do estatuto de refugiado. Isto é, situações em que um refugiado reconhecido por um Estado-Membro perde esse estatuto. Deste modo, se o refugiado reconhecido como tal voltar a pedir protecção do país de que tem nacionalidade; ou tenha recuperado a nacionalidade que tinha perdido; ou adquiriu nacionalidade de um país que lhe dá protecção; ou tenha voltado, voluntariamente, ao país que tinha deixado por receio de ser perseguido; ou caso tenham deixado de existir as circunstâncias, no país da nacionalidade, que o faziam temer pela sua segurança; nestes casos o estatuto é retirado.

Os critérios de exclusão determinam a quem não pode ser concedido o estatuto de refugiado. A Convenção de Genebra estabelece essas situações no artigo 1º, alíneas D, E e F. As pessoas que preencham as características aí enunciadas não poderão ser identificadas como refugiados. Estado assim excluídas as pessoas que já beneficiem de protecção conferida pelas Nações Unidas; as pessoas que passam a ter direitos e obrigações inerentes ao estatuto de nacional do país de residência; pessoas que haja “razões ponderosas” para acreditar que tenham cometido “um crime contra a paz, um crime de guerra ou um crime contra a Humanidade” – conceitos que deverão ser analisados à luz de outros instrumentos internacionais45; pessoas que cometeram um grave crime de direito comum num outro país que não o que está a analisar o pedido de asilo, antes da sua chegada; e pessoas que praticaram actos contrários aos defendidos pelas Nações Unidas.

Importa salientar que, no seio das Nações Unidas, o termo “refugiado” não representa o estatuto de refugiado já reconhecido, contemplando também os requerentes de asilo a quem ainda não foi reconhecido o estatuto de refugiado. De facto, importa atentar, neste ponto, na Nota sobre Protecção Internacional da AGNU, que dispõe o seguinte: “Todos os refugiados são, inicialmente, requerentes de asilo; portanto, para proteger os refugiados, os requerentes de asilo devem ser tratados sob o pressuposto de que podem ser refugiados até que seu estatuto seja determinado. Caso contrário, o princípio da não-repulsão não proporcionaria protecção efectiva aos refugiados,

45 O Estatuto de Roma, em vigor desde 1 de julho de 2002, define “crime de guerra” (artigo 8º) e “crime contra a humanidade” (artigo 7º). Contudo, não refere crime contra a paz, mas sim inclui “genocídio” (artigo 6º) e “crime de agressão” (artigo 8º).

porque os candidatos poderiam ser rejeitados nas fronteiras ou devolvidos à perseguição, com o argumento de que a sua reivindicação não havia sido estabelecida”46.

Apesar de constituir a definição que mais recebe consenso internacional, segundo Sofia Pinto Oliveira “a interpretação da definição de refugiado da Convenção de Genebra suscitou – e continua a suscitar – dificuldades”47. Considera-se que existem ainda algumas insuficiências na Convenção de Genebra pois “dela (da Convenção) ficavam de fora vítimas de conflitos armados, internos ou internacionais, vítimas de situações de violência indiscriminada, e outras pessoas relativamente às quais o regresso ao país de origem não pode ser feito com segurança e que, apesar disso, não podem beneficiar do estatuto de refugiado, porque não são vítimas de perseguição”48. A Convenção fundamenta o estatuto de refugiado no receio de perseguição. Ora, em primeiro lugar, o “receio” é um elemento subjectivo, logo, de difícil análise. Em segundo lugar, a Convenção só refere a perseguição, deixando de fora outras “ofensas graves”.

O artigo 9º da Directiva Qualificação vem auxiliar na interpretação do conceito de refugiado, esclarecendo o que é entendido por “acto de perseguição” e o que considera ser os motivos da perseguição (art. 10º).

A Directiva Qualificação prevê a definição de refugiado (art. 2º, alínea d), idênticos aos estabelecidos na Convenção de Genebra. Ora, se um requerente de asilo preencher os cinco elementos pela Directiva estabelecidos, o Estado-Membro é obrigado a conceder o estatuto de refugiado (art. 78º 2 (d) TFUE e art. 13º da Directiva Qualificação). Durante a análise do pedido, os requerentes beneficiam do estatuto de requerente de asilo. A Directiva Acolhimento reconhece aos requerentes de asilo

46 UN General Assembly, Note on International Protection (submitted by the High

Commissioner) , 31 August 1993, A/AC.96/815, disponível em:

http://www.refworld.org/docid/3ae68d5d10.html (consultado em 13 Março 2018) para. 11. 47 OLIVEIRA Andreia Sofia Pinto, Introdução ao Direito de Asilo, Centro de Estudos

Judiciários Ed., O Contencioso do Direito de Asilo e Proteç ão Subsidiária, Centro de Estudos Judiciários, 2017, 2ª Edição, p. 47.

certas condições de residência e direitos relacionados, que devem ser respeitados durante a análise dos pedidos de asilo49.

Quem seja reconhecido como refugiado está protegido contra ameaças contempladas quer no artigo 1ºA da Convenção de Genebra, quer no artigo 2º d) da Directiva Qualificação, que inclui ser perseguido por razões de “raça, religião, nacionalidade, convicções políticas ou pertença a um determinado grupo social”. A perseguição terá um certo nível de gravidade, que coincide com a pena de morte, tortura ou tratamentos ou penas desumanos ou degradantes.

Segundo a Directiva Qualificação fica excluído de receber tal estatuto o nacional de país terceiro que se insira no âmbito do artigo 1º D da Convenção de Genebra, já analisado (art. 12º, nº1 (a)), ou no caso em que as autoridades do país em que o nacional de país terceiro tenha estabelecida a sua residência consideram que este tem os direitos e deveres de quem possui nacionalidade desse país (art. 12º, nº1 (b)); também nos casos em que existam suspeitas graves que o nacional de país terceiro tenha praticado crimes contra a paz, crimes de guerra ou contra a humanidade, crime grave de direito comum fora do país de refúgio (art.12º, nº2 (a) e (b)); ou tenha praticado actos contrários aos objectivos e princípios das Nações Unidas enunciados no preâmbulo e nos artigos 1º e 2º da Carta das Nações Unidas (art.12º, nº2 (c)). A Directiva Qualificação determina o conteúdo da protecção internacional (artigos 20º a 37º), estabelecendo direitos, como o direito à não repulsão, à informação, à preservação da unidade familiar, à residência, ao emprego, à educação, entre outros.

Estatuto de protecção subsidiária

Em relação à protecção subsidiária – protecção não estabelecida na Convenção de Genebra – a Directiva Qualificação determina quem é o beneficiário dessa protecção e obriga os Estados-Membros a providenciar a essas pessoas certos direitos de residência (art. 78º nº 2 (b) TFUE). “Pessoa elegível para proteção subsidiária” é, no artigo 2º, alínea f, um nacional de país terceiro que não contempla as condições para ser considerado refugiado e que corre risco real de sofrer ofensas grave caso volte

49 A Directiva Acolhimento garante o direto à residência e a liberdade de circulação; direito à escolaridade e educação de menores (art. 14º); direito a cuidados de saúde (art. 19º), entre outros.

para o país de origem. Desta maneira, considera-se uma definição híbrida entre o afastamento da definição de refugiado e a proibição de expulsão50.

Esse estatuto de protecção subsidiária só prevê proteger alguém que se considere correr “risco de sofrer ofensa grave” no país de origem. Como esclarecido no artigo 15º da mesma Directiva, entenda-se por ofensa grave a pena de morte ou execução; a tortura ou a pena ou tratamento desumano ou degradante; ou ainda, a ameaça grave e individual contra a vida ou integridade física de alguém, originária de violência indiscriminada em situações de conflito armado internacional ou interno.

Importa esclarecer o que a jurisprudência do TJUE considera ser essa ofensa grave estabelecida na última alínea (c) do artigo 15º. Assim, foi considerada ser uma ofensa mais geral do que as apresentadas anteriormente. A ameaça grave à “vida e integridade física” identifica esta e não outras violências; “originária de violência indiscriminada”, na medida em que pode afectar pessoas independentemente da sua situação pessoal, inerente a uma situação de “conflito armado internacional ou interno“, enquanto situação geral do país. A ameaça ter o carácter “individual” deve ser entendido de modo a abranger as “ofensas de que os civis são objecto independentemente da identidade quando se considere que o conflito armado em curso é de um nível tão elevado que existem motivos significativos para acreditar que um civil expulso para o país em causa ou, eventualmente, para a região em causa, poderia correr, pelo simples facto de se encontrar nesse território, um risco real de sofrer tal ameaça”51. Assim, não quer dizer que o requerente de protecção subsidiária seja especificamente alvo em razão de elementos próprios da sua situação pessoal. Basta que as autoridades competentes do Estado de acolhimento considerem que a situação de conflito no país de origem seja de um grau tão elevado que o requerente pode ficar sujeito a essas ameaças, para poder ser atribuído o estatuto de protecção subsidiária.

50 BATTIES Hemme, “The Common European Asylum System”, em CATLIER Jean-Yves e BRUYCKER Philippe, Immigration and Asylum Law of the EU: Current Debate, Actualité

du Droit Européen de l’Immigration et de l’Asile, Bruxelas: Bruylant, 2005, pp. 30, 31, 32.

51 Acórdão do Tribunal de Justiça, de 17 de Fevereiro de 2009, no processo C-465/07, para. 31-35. (Nota-se que o artigo 15º, alínea c) da Directiva 2004/83/CE é idêntico ao artigo 15º, alínea c) da Directiva 2011/95/EU, pelo que as considerações tidas pelo Tribunal devem valer para a interpretação dos dois artigos).

De facto, apesar de amplo, o artigo 1º A da Convenção acaba por deixar de fora pessoas que necessitam de protecção internacional, bem como o 2º (d) da Directiva Qualificação por prever o mesmo que aquele.

Igualmente, a definição de protecção subsidiária não abrange muitas situações de imigração forçada. Por exemplo, em alguns países, pode ter já cessado um conflito, mas o ambiente do país pode não deixar os seus nacionais em segurança, para além de poderem ainda ocorrer conflitos de menor escala, as condições económicas, políticas e sociais de um Estado que tenha saído de um conflito armado podem não ser consideradas estáveis e seguras para seguir uma vida normal com condições de vida razoáveis. Nestes casos ainda não se reconhece protecção, nem pelas normas internacionais, nem pelas normas europeias. O entendimento generalizado é de que, nestas condições, os nacionais de países terceiros já caem dentro da categoria de migrantes voluntários e não forçados, logo já não são pessoas caracterizadas por necessitarem de protecção internacional.

O Glossário da Organização Internacional para as Migrações distingue vários tipos de migração. A migração forçada é caracterizada por um elemento de coacção (ameaças à vida ou à sobrevivência) com origem na natureza ou acção do homem. Assim, a OIM inclui “desastres naturais ou ambientais, químicos ou nucleares, fome ou projetos de desenvolvimento”52 como causas que obrigam as pessoas a abandonar o seu país de origem e procurar refúgio num país alheio.

A Professora Ana Rita Gil propõe que o conceito de migrante forçado abranja alguém cujas condições básicas de segurança, o acesso a recursos básicos, como a comida e água, não estejam a ser assegurados pelo Estado de que é nacional53. De facto, é natural que as pessoas queiram sair do país de origem para encontrar condições mínimas para a sobrevivência, dignidade e liberdade, não devendo, nesse caso, ser considerados migrantes voluntários.

A política comum de asilo só reconhece protecção internacional a refugiados ou aos casos de proteção subsidiária. O Estado tem obrigações para com os imigrantes

52 Autores vários, Glossário sobre Migração, Organização Internacional para as Migrações, 2009: definição de “migração forçada”, pág. 41.

53 Ana Rita Gil “Migration Movements are not Black or White”, em Estoril Conferences

forçados, que não existem para os migrantes voluntários, como é o caso do princípio da proibição de devolução54. Pelo facto dos imigrantes voluntários terem menos direitos do que os refugiados, muitas vezes as autoridades do país de acolhimento tentam enquadrar os requerentes de asilo na primeira categoria.

Estatuto de protecção temporária

A protecção temporária, normalmente, não pode ser requerida. De acordo com a Directiva Protecção Temporária, é um “procedimento de carácter excecional“55, aplicável “no caso ou perante a iminência de um afluxo maciço de pessoas deslocadas de países terceiros”56. No caso de uma grande crise de refugiados, como a que se assistiu durante a guerra da Jugoslávia nos anos 1990, ou mesmo, a atual “crise migratória e de refugiados sem precedentes”57, o Conselho da UE pode decidir que determinado grupo de pessoas tem direito a receber protecção temporária58. Esta protecção termina quando a duração máxima é atingida ou pela decisão do Conselho (art. 6, nº1 Directiva Protecção Temporária). Depois de expirada a protecção temporária, o antigo beneficiário pode requerer asilo. Interessa salientar que o Conselho nunca activou este procedimento.

A migração não é um fenómeno novo do mundo moderno, contudo a situação actual de fluxos massivos de requerentes de asilo tem vindo a desafiar as estruturas de governação global. Os crescentes movimentos nacionalistas e separatistas, tensões étnicas e conflitos religiosos, a maior incidência de conflitos armados e o aumento generalizado de condições de vida degradantes, são factores que têm contribuído para um aumento da violação dos direitos humanos, gerando, dessa maneira, os movimentos de migração forçada.

54 OLIVEIRA Andreia Sofia Pinto, O Direito de Asilo na Constituição Portuguesa – Âmbito

de Protecção de um Direito Fundamental: Coimbra Editora, 2009, pp. 209.

55 Diretiva Protecção Temporária, artigo 2º(a). 56 Ibid.

57 Como denomina PIÇARRA Nuno, A União Europeia e “a crise migratória e de refugiados

sem precedentes”(...).

Desta forma, as Directivas e Regulamentos no âmbito do SECA regulam vários aspectos da política de asilo da UE. Juntamente com a Convenção de Genebra59, cujo propósito é a proteção dos direitos humanos fundamentais das pessoas que já não estão protegidas pelo seu próprio país e que têm o direito de usufruir de proteção noutro território, bem como outros instrumentos jurídicos relevantes, efectivam a proteção dos refugiados, que, enquanto protecção internacional, é a alternativa de proteção dos direitos básicos das pessoas na ausência da proteção nacional60.

O non-refoulement enquanto garantia dos refugiados que não serão enviados para um território em que possam correr risco de vida ou perigo de perseguição, é um importante direito que merece ser tratado de forma detalhada.