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Capítulo 5: Vivendo o crime: um momento de deleite

4.2 É preciso manter a imagem do “sujeito mau”

Em seu estudo sobre gangues e galeras do Distrito Federal, Andrade (2007) observa que quando aquelas se reúnem para brigar entre si, “o lúdico, o violento e as fantasias muitas vezes se misturam, podendo dar às trocas de violência uma dimensão ritual” (ANDRADE, 2007, p. 64). Do mesmo modo, Aquino (2009) também acredita que, ainda que dispostos a atirar em casos de resistências ou imprevistos, a dramatização da violência diante das vítimas é um recurso muito comum entre os praticantes de crimes, até porque acredita que é isso que se espera deles. Na mesma direção, acredito que há uma “dramatização da violência” no momento do crime, que há nele, uma “dimensão ritual”. Ocorre que para o bandido, essa “performance” não deve permear tão somente o momento do crime em si, mas se estender a outros espaços de interação. Manter a imagem do bandido, portanto, torna-se um elemento essencial ao mundo

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do crime, seja durante a sua ocorrência ou como um modus operandi que o situa dentro de um grupo, já que corresponde à representação social que se constrói sobre essa figura. Como afirmam Cara e Gauto (2007, p. 181) “A violência aparece também como um recurso à preservação da autoimagem: ser violento e/ou envolvido com a criminalidade confere status social (…) A violência enquanto afirmação de identidade necessita de uma plateia já que comunica ao se romperem as regras e recorrerem à violência”.

Neste sentido é que Katz (1988) fala sobre a importância de tornar pública a imagem associada à ideia do “sujeito mau” (badass), o que acaba fazendo com que eles passem a acionar uma postura tão dramaticamente agressiva, que esta se torna quase espetacular. Essa demonstração precisa comunicar ousadia, esperteza e disposição para matar. Não basta ser

bandido, é preciso que as histórias perigosas a que sobreviveram, sempre contadas com emoção

e em meio a movimentos e sonoplastias, sejam capazes de evidenciar sua coragem. É necessário que as marcas em seus corpos relembrem sua destreza, sua força e sua capacidade para suportar a dor. Nessa lógica de exibicionismo, o número de homicídios cometidos e o enaltecimento dos próprios feitos no crime tornam-se mecanismos indispensáveis para a formulação dessa imagem do “sujeito mau”.

ENTREVISTA INDIVIDUAL

Elias: Se eu contar as coisas que eu já fiz aqui a senhora ia sair daqui aterrorizada. Sophia: Por quê?

Elias: Porque eu já fiz muita coisa ruim. Sophia: Tipo o que?

Elias: Tipo muita coisa ruim com os meus inimigos. A senhora vai chorar, certeza. Sophia: Não se preocupe, trouxe meu lenço. (Risos) Mas o que lhe motivava? Elias: A vingança... Eu fui considerado o menino, o menor, mais perigoso de Santa Maria. Se a senhora entrar no Facebook, é só colocar “menor mais perigoso da Santa Maria-DF” que vai aparecer lá minha foto.

Sophia: Porque você acha que você foi considerado isso?

Elias: Porque eu não tinha dó não. Era meu inimigo eu pegava pela camisa e atirava na cara pra ver o sangue espirrar na minha.

Sophia: Porque isso com o sangue?

Elias: Porque quando você atira numa pessoa à queima roupa o sangue espirra em tu. Sophia: Sim, mas porque você sente prazer nisso?

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A postura intimidadora de Elias, combinada com os agressivos e sanguinolentos relatos que sempre fazia questão de narrar enquanto dizia, com orgulho, ter sido o adolescente mais violento da cidade satélite onde morava, no início da pesquisa, de fato, me incomodaram. “Pode olhar aí na internet pra saber quem eu sou”. Ele dizia e se enrobustecia deixando claro o prazer que tinha em relembrar constantemente do seu poder no mundo do crime. Fosse para mim, para os colegas, ou até para que ele mesmo não se esquecesse disso. Nos primeiros encontros, Elias sempre me fitava com um olhar firme e desafiador e eu desejei, verdadeiramente, que ele não quisesse mais participar dos encontros, mas, obviamente, não a ponto de excluí-lo ou de sentir que isso me impediria de dar continuidade à pesquisa.

Em um dado momento, Elias foi conduzido ao módulo do castigo por ter, supostamente, olhado para um professor de forma ameaçadora, onde passou duas semanas. Em função disso, ele não pôde realizar os dois últimos encontros com o grupo e observei que a sua ausência foi marcante na mudança da postura dos demais. De repente, todos pareciam mais participativos e sensíveis, mais abertos para falar sobre fragilidades e problemas, o que deixava ainda mais claro para mim a importância, entre eles, de manter essa imagem do “sujeito mau” diante dos demais. Inclusive, somente nesses dois últimos encontros foi que eles se sentiram à vontade para confessar que queriam sair do crime e alguns já tinham até planos traçados. É evidente que, com o tempo, eles também foram adquirindo mais confiança em mim, o que facilitava essa “abertura”. Entretanto, a diferença de comportamento do grupo foi tão destoante a partir desse evento, que não poderia supor que isso teria se dado tão somente por causa do nosso tempo de convivência.

Os três primeiros encontros foram muito desafiadores para mim, não só pelo que Elias representava, ou pelas ameaças indiretas que tentava fazer, mas, sobretudo, pela postura agressiva e provocadora que parecia despertar nos outros jovens. Por outro lado, eu fui aprendendo a lidar melhor com a postura dele, tanto que tivemos uma longa entrevista individual. Também, aos poucos, ele foi se aproximando de mim, demonstrando até certas preocupações como, por exemplo, quando falou para eu ter cuidado andando sozinha com o meu computador por aí. No dia em que fui embora da Unidade, se despediu com carinho e agradeceu por tê-lo escutado. O que eu ia percebendo era que, mais do que para mim, eles precisavam mostrar para os outros que não eram comédia. Eles não podiam correr o risco de virar esparro:

145 Sophia: Você se considera uma pessoa ruim?

Marcelo: Na vista dos outros é ruim, né. Sophia: E pra você?

Marcelo: Rapaz, o cara tem que usar a ruindade dele, né, se for bom demais os outros passa por cima. (…) Em certos momentos, sim.

Sophia: Por quê?

Marcelo: Porque eu tenho que precisar dela. Se eu não for ruim eu vou tá baixando meu cano pros outros. Os outros vão vir pra cima de mim e vão me botar pra esparro. Se eu não for ruim, se eu não for agressivo. Igual aqui, tem hora que se tu abaixar a cabeça e deixar os outros falar mais alto que tu, fi, tua moral perdeu, é o comédia. Aí o cara tá lá gritando com ele lá.

(...)

Marcelo: Po, porque é assim “Po, tá com o revólver?” “Tô com o oitão aqui”. “Tá com bala?” “Tá”. “Então, bora. Vamo dar tiro ali”. “Aonde?” “Naqueles bicho lá?” “É!” “Bora!”

Sophia: Mas você nunca sentiu ressentimento de matar alguém? Marcelo: Po, eu não sei te dizer, por que eu nunca matei. Sophia: Como assim?

Marcelo: Ri sem jeito. É que eu já fui pra dar tiro, mas nunca vi um pilantra moscando.

Pelos comentários de Marcelo ao longo dos encontros e até mesmo naquela entrevista, eu jamais poderia imaginar que ele nunca havia matado ninguém. Independente dos motivos que o tenha levado a não fazê-lo, certamente não foi porque “nunca viu um pilantra moscando”. Entretanto, o que se evidenciava era que, mesmo para mim, esta não era uma coisa muito fácil de assumir. O mesmo aconteceu com outro jovem que também só descobri que nunca tinha cometido homicídio no dia da entrevista individual. Esse não era o tipo de comentário que eles podiam fazer na frente dos demais e a razão era clara:

David: É porque nessa cadeia aqui é um querendo ser mais que o outro. É um querendo ser mais bandido que o outro.