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Capítulo 5: Vivendo o crime: um momento de deleite

4.1 Sobre crime e suas performances

Como afirma Langdon (2006), os teóricos mais influentes no Brasil, quando se está tratando de antropologia e performance, são Victor Turner (1982, 1988) e seu colaborador Richard Schechner (1988, 1993, 2002), além de W. Benjamin (1985), John Austin (1975) e Stanley Tambiah (1985, 1996). Segundo a autora, o termo “performance” tem sido utilizado com conotações variadas, a depender do pesquisador que o emprega, o que a fez crer que existem, na verdade, muitos paradigmas da performance no Brasil.

Neste trabalho, utilizaremos a noção de performance de Goffman (2011), embora a maior parte das conclusões prévias aqui delineadas tenham sido obtidas a partir da narrativa dos jovens sobre as performances que executavam, além, obviamente, daquelas situações que observei no evento que ocorreu na minha casa e durante o próprio trabalho de campo.

Para esse autor, o “mundo social” é visto como um “palco” em que os indivíduos, identificados como “atores”, representam seus papéis sociais. Estes, apesar de minimamente preestabelecidos, são orientados de acordo com a expectativa da “plateia”, que são os demais indivíduos com os quais se está interagindo. O desempenho de papéis sociais pelos atores é o que Goffman (2011) chama de ritual da vida cotidiana. Neste, os participantes atuam como autorreguladores de encontros sociais, mobilizados por meio de um ritual que, apesar de “estabilizado normativamente”, é mutante. Segundo Goffman (2011, p. 9), a interação face a face constitui

(…) a classe de eventos que ocorre durante a copresença e por causa da copresença. Os materiais comportamentais definitivos são as olhadelas, gestos, posicionamentos e enunciados verbais que as pessoas continuamente inserem na situação, intencionalmente ou não. Eles são os sinais externos de orientação e envolvimento – estados mentais e corporais que não costumam ser examinados em relação à sua organização social.

De acordo com o autor, o objetivo desse tipo de pesquisa seria “descrever as unidades naturais de interação (…) e descobrir a ordem normativa que vale dentro dessas unidades” (GOFFMAN, 2011, p. 9) ou, ainda, “identificar os incontáveis padrões e sequências naturais de comportamento que ocorrem sempre que pessoas entram na presença imediata de outras” (GOFFMAN, 2011, p. 10). Assim, mesmo não considerando que o crime seja uma unidade

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“natural” de interação para todos, acredito que, para alguns indivíduos, ele passa a ser, e é a partir desses sujeitos que pretendo compreender essa ordem normativa. Isso porque, quanto mais dialogava com meus interlocutores e refletia sobre o assalto que vivi, mais ficava claro, para mim, que o momento do crime era também uma espécie de “ritual”, que contava até com regras bem definidas.

A proposta do autor é fazer aquilo que chama de “sociologia das ocasiões”, que seria destinada a refletir sobre as atividades interacionais temporárias que surgem a partir dos encontros. Não se trata, então, de pensar o indivíduo e a sua psicologia, mas os momentos e seus indivíduos.

Goffman (2011) chama de linha o “padrão de atos verbais e não verbais com o qual ela (a pessoa) expressa sua opinião sobre a situação, e através disto sua avaliação sobre os participantes, especialmente ela própria” (GOFFMAN, 2011, p. 13). Segundo o autor, não importa se a pessoa quer realmente fazer isso, isto é, assumir uma linha, porque ela sempre o fará. Apesar de haver certa liberdade para que a pessoa escolha e desempenhe o papel escolhido, a tendência é que esta seja “de um tipo institucionalizado legítimo” (GOFFMAN, 2011, p. 15). Porém, ainda que todos acreditem que ela assumiu uma determinada posição mais ou menos voluntariamente, sabe-se que ela sempre terá considerado previamente a impressão que os demais presentes teriam sobre ela, justamente para que seja capaz de lidar com isso.

Já a fachada seria “o valor social positivo que uma pessoa efetivamente reivindica para si mesma através da linha que os outros pressupõem que ela assumiu durante um contato particular. A fachada é uma imagem do eu delineada em termos de atributos sociais aprovados” (GOFFMAN, 2011, p. 14). Desse modo, o orgulho seria o dever compulsivo de manter a

fachada para si mesmo e a honra, o dever compulsivo de mantê-la para os outros, para as

unidades sociais mais amplas que os apoiam.

Para o autor, a depender dos atributos do indivíduo e da natureza convencionalizada do encontro, ele irá dispor de um pequeno conjunto de linhas e fachadas para escolher. Ocorre que, em função da sujeição criminal, acredito que o bandido dispõe de possibilidades ainda mais limitadas de interação. O fato é que esses indivíduos não possuem muitas condições de manutenção da fachada, (se compreendida enquanto valor social positivo) de modo que se veem praticamente coagidos a reafirmarem a sua identidade social deturpada, já que é a que dispõe. Isso acontece porque, como já demonstrado, ao contrário do estigma ou da simples incriminação, o processo de sujeição criminal passa a incorporar o crime à identidade do sujeito.

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Assim, quase todas as interações desse indivíduo acabam sendo afetadas por esse processo, de modo que surge, para ele, a necessidade de desenvolver um código ritual diferenciado não apenas para o momento do crime. Caso se tratasse de uma simples incriminação (por estelionato, por exemplo), talvez o momento do crime fosse o único a exigir desse sujeito formatos diferenciados de interação. Entretanto, como este ato fica marcado em sua identidade e persegue quase todas as suas relações sociais, essa necessidade de negociação acaba se impondo sobre ele e se prolongando para além da ação criminosa. Nesse caso, surge uma necessidade de que o ritual esteja direcionado à preservação de uma imagem que socialmente é tida como negativa, ressignificando os valores que estão em jogo.

Por outro lado, isso não significa dizer que essa imagem virtual negativa não seja reapropriada por ele e por seu grupo e passe a ser interpretada como positiva. Como já dito, a agressividade, por exemplo, que usualmente é tida como negativa, surge de forma positivada entre seus pares em algumas situações. Sendo assim, o mesmo esforço que seria realizado para a preservação da fachada, passa a ser utilizado para manter a “imagem do bandido”, através de um gestual, de uma estética, de uma forma de projetar a voz que passa a ter um ritmo mais arrastado, etc.

Dessa forma, acaba surgindo entre eles uma espécie de “padronização do comportamento” baseado em “guias de conduta extraoficiais”. Essas “regras de conduta”, mesmo não sendo as mais usuais, acabam se impondo sobre o indivíduo da mesma maneira. De acordo com o autor, isso acontece de forma direta por meio de obrigações que estabelecem como o indivíduo deve se conduzir moralmente, e de forma indireta, por meio de expectativas que definem como os outros deverão agir moralmente em relação a ele. Isso por que

Quando um indivíduo se envolve na manutenção de uma regra, ele tende a também se comprometer com uma certa imagem do eu. No caso de suas obrigações, ele se torna, para si mesmo e para os outros, o tipo de pessoa que segue essa regra em particular, o tipo de pessoa que naturalmente esperamos que o faça. No caso de suas expectativas, ele se torna dependente da suposição de que os outros realizarão apropriadamente as obrigações deles que o afetam, pois o tratamento que eles concedem ao indivíduo expressará uma concepção dele. Ao se estabelecer como o tipo de pessoa que trata as outras de uma certa forma, e é tratado por elas de uma certa forma, ele precisa garantir que será possível para ele agir e ser esse tipo de pessoa (GOFFMAN, 2011, p. 54).

Assim, depois de criada uma expectativa social sobre o sujeito, isto é, de ele assumir publicamente a sua imagem de bandido, ele passa a ter que seguir algumas regras de conduta, enquanto as pessoas passam a ter que fazer o mesmo em relação a ele. Em alguns momentos, estes comportamentos podem ser sentidos como um dever oneroso, se colocando contra a

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vontade real do indivíduo, o que também não impede que, em outros, estes lhe pareçam prazerosos. O que importa é que aquelas regras deverão ser cumpridas, de uma forma ou de outra, para que os envolvidos não corram o risco de se tornarem “desacreditados”. Mas, ainda que isso aconteça, o ato continuará se colocando como uma comunicação de confirmação dos seus dos envolvidos.

Na verdade, a maioria das ações guiadas por regras de conduta são realizadas sem pensar, e o ator questionado diz que as realiza "sem motivo" ou porque ele "teve vontade" É apenas quando suas rotinas são bloqueadas que ele poderá descobrir que suas açõezinhas neutras são o tempo todo consistentes com as propriedades de seu grupo e que seu fracasso ao realizá-las pode se tomar uma questão de vergonha e humilhação (GOFFMAN, 2011, p.53).

Portanto, a preocupação em manter a fachada continua fazendo parte dessa ordem ritual, só que ela acaba ficando restrita às interações com os familiares ou com os amigos de fora do crime, ou seja, nas situações em que a sua identidade não se encontra “totalizada” na ideia do

bandido. Quando, portanto, ainda restam possibilidades de negociação de uma outra imagem.

Isso é possível porque o indivíduo não possui apenas um “papel social”, ele é múltiplo, de modo que se torna necessário “entender que, num certo sentido, ele não participa como uma pessoa total, mas sim em termos de uma capacidade ou estatuto especial; resumindo, em termos de um

eu especial” (GOFFMAN, 2011, p. 55), o que permite ao sujeito manejar seus comportamentos

para criar certas imagens específicas ainda que, quando comparadas, estas possam parecer realmente contraditórias.