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É TARDE ATÉ QUE ARDE!

No documento adrianadecastrofonseca (páginas 80-94)

"Eu posso contar-lhes minhas aventuras...

começando por esta manhã. Mas não adianta contar desde ontem, porque eu era uma pessoa diferente ontem."

(Alice)

“Vejam só, tantas coisas estranhas tinham acontecido ultimamente que Alice começara a pensar que muito poucas coisas eram na verdade realmente impossíveis.”

Na Escola-Toca pude observar ações que consideram as crianças como um conjunto, uma classe, na qual todas devem aprender os mesmos conteúdos da mesma maneira e no mesmo tempo. Estabelecido o padrão de normalidade, trabalha-se para que os alunos o atinjam, desconsiderando, muitas vezes, características, experiências, interesses ou expectativas diferentes. Estudaremos, aqui, algumas questões relacionadas ao entendimento da infância e da criança, à luz da pesquisa de campo.

Ariès (1981) situa a infância como categoria inventada na Modernidade. O autor investigou a ausência da criança nas representações pictóricas da Europa Medieval, supondo, a partir desses estudos, que não havia uma preocupação especial dos adultos com as crianças. Tais afirmações lhe renderam críticas de reducionismo, pelo fato de se basear em apenas um meio, sócio-economicamente favorecido, e em uma situação específica, representado pela Europa da época, para suas observações. Sua tese, clássica, diz que não existia infância antes dos séculos XVI – XVII, mas “um sentimento superficial da criança, [...] de paparicação” (Ariès, 1981, p. X). Não havia a dimensão de infância protegida, sentimento que surge com a modernidade, a reboque da ascensão da burguesia.

Ariès estudou a vida das crianças no período que se estende da Idade Média ao século XVIII, verificando o surgimento da criança como um ser distinto do adulto. Seus estudos, apesar de controvertidos – ou justamente em função disso – alcançaram grande repercussão. Alguns estudiosos contemporâneos da criança e da infância reconhecem sua importância. Para Corazza (2002, p. 83),

[...] existe unanimidade em reconhecer que Ariès não somente abriu um novo caminho de pesquisa – a indagação histórica acerca da infância –, bem como estabeleceu um conjunto de categorias para trabalhar este novo objeto “infância” – como as de “descoberta”, “invenção”, “conceito”, “natureza”, “consciência”, “sensibilidade”, “sentimento” –, as quais se foram e prosseguem sendo contestadas, refutadas, revisadas, por isto mesmo, incitaram uma abundante produção discursiva que constituiu esse novo campo epistemológico.

Uma perspectiva moderna de infância a compreende como universal e atemporal, com progressão uniforme para todas as crianças, em todos os espaços, tempos e grupos sociais. As mudanças são percebidas como forte característica da infância, mas são caracterizadas como contínuas, graduais, previsíveis, o que se reflete no trabalho escolar com crianças, na uniformização de procedimentos e de expectativas acerca da aprendizagem.

A compreensão da criança tem sido marcada pela idéia da falta – da não- linguagem, da não-razão, do não-trabalho, da não-participação, instituindo uma forma de pensar a criança pela sua incompletude, pela ausência. Historicamente, estudos sobre a criança a compreendem pelo que lhe falta, por aquilo de que ela ainda não é capaz. A criança é entendida como um ser inacabado, que precisa ser completado. É um ser não presente, mas futuro.

Walter Kohan recorre a Platão para situar a gênese da compreensão da criança e da infância na tradição ocidental do pensamento filosófico. Platão defende a educação como meio para se atingir justiça, beleza, excelência e virtude. Compreende a infância como possibilidade, potencialidade. Kohan estuda outros conceitos e lugares para a infância: para Agamben (2001 apud KOHAN, 2004, p. 54) “[...] a infância é, antes de uma etapa, uma condição da experiência humana”. Infância, para o autor, é ausência e busca de linguagem (in- fans, aquele que não fala). Pedagogias contemporâneas pensam a criança, como um ser em desenvolvimento, um elo de ligação entre passado, presente e futuro. Uma vez que as crianças são possibilidades, cabe à educação realizá-las, fazer com que este projeto alcance os fins estabelecidos por legisladores, educadores e por todos aqueles que habitam a infância. “A infância é o material dos sonhos políticos a realizar. A educação é o instrumento para realizar tais sonhos.” (KOHAN, 2004, p. 53). E acrescenta: “A infância, entendida em primeira instância como potencialidade

é, afinal, a matéria-prima das utopias, dos sonhos políticos dos filósofos e educadores.” (Ibid., p. 52).

Nas teorias do desenvolvimento cognitivo “a infância surge como um longo período de preparação para o modo adulto de conhecer e pensar [...]” (KASTRUP, 2000, p. 374). Um entendimento do processo ensino-aprendizagem muito presente nas escolas contemporâneas é a transmissão daquilo que o adulto sabe para a criança, que não sabe:

Ensinar seria “passar adiante”, transmitir, tal e qual o que anteriormente já havia sido pensado, “descoberto”, feito, cultivado e praticado por outros homens, por suas instituições, pela cultura etc., em suma, tudo aquilo que, nestes termos, teria assumido o sentido de exemplar, modelar. A aprendizagem, por seu turno, estaria vinculada à recognição, isto é, ao reconhecimento e à repetição do que havia sido ensinado, transmitido. Assim, tanto a prática do ensino quanto a prática da aprendizagem foram associadas à reprodução e à repetição do mesmo, do igual, do semelhante. (COSTA, 2005, p. 1264).

A coexistência de todos os tempos marca uma concepção distinta do tempo cronológico, na qual não há trajetória única, nem ao menos previsível. As transformações da cognição são pautadas pela divergência e pela diferenciação. Essa concepção

[...] problematiza a noção de desenvolvimento por estágios, ao mesmo tempo em que abre possibilidades para um conceito positivo de criança, que evita pensá-la como possuidora de um modo de conhecer que é ultrapassado em favor de formas e estruturas mais avançadas. (KASTRUP, 2000, p. 375).

A idéia de Kohan (2004, p. 54) de “ampliar os horizontes da temporalidade” parece sugerir que os alunos podem ultrapassar os limites estabelecidos para suas conquistas – ou, simplesmente, pode não atingi-los sem que sejam classificados como incapazes, fracos ou incompetentes. Significa, ainda, compreender a temporalidade não como algo previsível, numerável, mas dotada de intensidade variável. Nas palavras de Kohan (2007, p. 86-87):

[...] o próprio da criança não é ser apenas uma etapa, uma fase numerável ou quantificável da vida humana, mas um reinado marcado por outra relação – intensiva – com o movimento. No reino infantil que é o tempo não há sucessão nem consecutividade, mas intensidade da duração.

Kohan (2007, p. 111) busca nas palavras de Lyotard explicitar a relação entre temporalidade, infância e corporeidade: “A infância, diz Lyotard, está desde sempre, numa temporalidade sem cronologia, sem antes e sem depois, incrustada no corpo, sendo o próprio corpo, para toda a vida”. Afirma Kohan (Id., p. 95):

O que está em jogo não é o que deve ser (o tempo, a infância, a educação, a política), mas o que pode ser (poder ser como potência, possibilidade do real) o que é. Uma infância afirma a força do mesmo, do centro, do tudo; a outra, a diferença, o fora, o singular. Uma leva a consolidar, unificar e conservar; a outra a irromper, diversificar e revolucionar.

A busca de uma compreensão da criança que escape à padronização de aprendizagens e de ações nos leva a questionar possibilidades de atuação no campo educacional. Encontramos subsídio na temporalidade pautada na intensidade, e não na continuidade. No entendimento da temporalidade como continuidade, o passado pode prever o futuro: a criança deve cumprir etapas de desenvolvimento. O trabalho da educação, quando marcado pela normatização, objetiva fazer cumprir cada etapa, moldando as aprendizagens no tempo previsto para a “aquisição” dos conteúdos selecionados. Para Kastrup (2000, p. 380), a cognição da criança segue um fluxo instável, imprevisível, sempre longe do equilíbrio. Essa dimensão da cognição “[...] escorrega por entre as formas e, experimentalmente, acessa intensidades, potências e acontecimentos.”

Alice entrou na toca do Coelho, onde tudo lhe parecia muito estranho. Confusa, queria lhe pedir ajuda. Mas o Coelho é muito rápido e sempre está atrasado: não tem tempo a perder com assuntos pouco importantes, como um pedido de uma criança:

“Alice sentia-se tão desesperada que estava pronta para pedir ajuda a qualquer um: então, quando o Coelho chegou perto dela, a menina

parou violentamente, derrubando as luvas brancas e o leque, e disparou em direção à escuridão tão rápido quanto pôde.” (CARROLL, 2002, p. 4).

Ser Coelho Branco é um dos possíveis modos de existir na Escola-Toca. Apressado, o Coelho não vive a intensidade de cada momento, de cada acontecimento. A professora é Coelho quando abre e fecha conteúdos- tocas em uma sucessão apressada, que não se abre à vivência da intensidade e da potencialidade de cada tema, do saber-sabor que cada criança, a seu tempo, pode acessar. O Coelho Branco está sempre ocupado com um tempo futuro e com as cobranças que lhe fazem:

“Depois de um tempo ela ouviu pisadinhas ao longe e rapidamente secou os olhos para ver o que vinha vindo. Era o Coelho Branco voltando, muito bem vestido, com um par de luvas brancas em uma mão e um grande leque na outra: ele vinha trotando com muita pressa, resmungando consigo mesmo: Oh! Ela vai me matar se eu a fizer esperar!". (CARROLL, 2002, p.4).

A professora Heloísa, da Escola-Toca, passa uma tarefa aos alunos. Apressa os que estão mais atrasados:

- Marcos, não acabou? Tá parecendo uma lesma!

- Todo mundo tem que terminar logo, eu vou passar pra outra atividade.41

A professora Roberta repreende as crianças que não estão fazendo as tarefas, questiona o porquê de estarem atrasadas e acompanha de perto quem demora mais para terminar as atividades:

- Quem não acabou de copiar, acabe, porque eu vou precisar do quadro. - Só passe para a Matemática quem acabou o Português.

- Posso apagar o dois? Tem alguém nele? - Eu, tia!

- Em que palavra? Copie as palavras rápido. (Indo à carteira do menino): por que você tá ficando atrasado?

A professora organiza o tempo das tarefas:

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- Não precisa correr com a atividade de Português. O menino que estava atrasado anuncia:

- Professora, acabei o dois.

- Então, copie o três. 42

Da compreensão da criança como padrão a ser atingido derivam formas de trabalho que visam ao seu desenvolvimento linear e uniforme, numa perspectiva universalista, evolucionista. Na educação, o desenvolvimentismo tem lugar privilegiado, legitimado principalmente pelos estudos piagetianos, que dividem o desenvolvimento infantil em estágios, cada um com características próprias e que se sucedem de forma a superar a via dos movimentos e das sensações por uma forma considerada mais evoluída de aprendizagem, a intelectual. Educadores trabalham, então, para que a criança se adapte, buscando capacitá-la a realizar o que é estabelecido como habilidade padrão para a sua idade.

Sentada em um dos banquinhos no pátio da Escola-Toca, ouço um coro de crianças, dentro da sala de aula:

- Uma dezena e uma unidade é igual a 11; uma dezena e duas unidades é igual a 12; uma dezena e três unidades é igual a 13...

Quando uma voz destoa das demais, a professora intervém: - Não é assim, Rafaela!

Em seguida:

- Não, Bruno, você já foi, não pode fazer xixi nenhum. - Pssssiu!

- Guarda isso, Pedro! 43

A visão adultocêntrica da infância, resultado do exercício de saber-poder do adulto, deriva em construções de tempos, espaços, atividades e conhecimentos para a criança, que desconsideram sua participação, sua vontade e seus saberes.

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Nota de Campo construída no dia 21/05/2008. 43

Uma vez que não lhe é permitido participar dessa construção, não há identificação da criança com os espaços, tempos e tarefas que lhes são destinados.

As práticas escolares, muitas vezes repetidas irrefletidamente pelos adultos, se verificam idênticas em lugares e tempos diferentes – na organização de espaços, nos brinquedos, nas brincadeiras, nos currículos, nas separações e classificações das crianças por faixas etárias – independentemente das características de cada grupo e de cada aluno.

As ações de disciplinarização do corpo da criança na escola pretendem promover um ajustamento ao tempo dado para determinada tarefa, organização na realização de atividades, aquisição de habilidades específicas para as práticas selecionadas para o grupo ou série, para que todos atinjam os objetivos previamente definidos. As técnicas de disciplinarização operam para produzir indivíduos submissos e transformam-nos em corpos dóceis e mudos. Dentre elas, podemos destacar o uso de uniforme, a exigência de silêncio, a definição de formas corretas de se sentar, a exigência de que se levante o dedo para falar, as carteiras e cadeiras em posições pré-determinadas, a marcação de lugares, a organização em filas nos pátios, as regras para entrada e permanência nos banheiros.

O que as técnicas disciplinares visam é fixar, previamente, por meio da observação, um tempo de exercício, de aprendizagem, e um nível de aptidão ou conduta desejada que servirá de referência para definir um maior ou menos ajustamento aos parâmetros normativos por parte de cada criança em particular. (BUJES, 2003, p. 128).

Professoras-Coelho devem manter a ordem e o silêncio, para que possam abrir e fechar tocas com eficiência.

Na Escola-Toca, uma professora controla seus alunos na fila da merenda: - Ops, calado já tá errado! Vamos ficar em silêncio!

O silêncio é uma exigência constante – o falar é causador de

desorganização, dificultando o controle das crianças pelas professoras: - Dá pra calar a boca, Mateus? Se falar de novo vou te mandar pra Diretora. Eu tô cansada! Da próxima vez eu te pego pelo braço e te levo pra Diretora!

- Isso, vão conversando, agora mesmo o professor de Educação Física entra aqui e eu falo que ele não vai levar ninguém!

- Ê, fica quieto, sem comentários! - Vão parar de conversar!

- Pára de falar! Parece repórter da Globo! - Ô gente, dá um tempo, tem tarefa pra fazer! - Vão parar de falar?

- Não quero conversa! 44

O corpo na escola é compreendido e trabalhado – ou aceito – na perspectiva do controle, da adaptação, da padronização. “O ato motor, o gesto, precisam estar sob controle; o ritmo individual é imposto a partir do exterior. Todas as ações precisam ser trabalhadas para delas se extrair o máximo de precisão ou utilidade.” (BUJES, 2003, p. 141).

A professora-memória

No trabalho como professora de Educação Física na rede pública municipal chamava-me a atenção o fato de ver crianças reprovadas seguidas vezes, como o caso de Ronaldo, de onze anos, estudante da primeira série do Ensino Fundamental, sempre reprovado em Matemática. Ele vendia,

pesava, contava, recebia, dava troco na barraca de feira livre que sustentava a família. Crianças como ele participavam ativamente das aulas de

Educação Física e mostravam conhecer, nos jogos de movimento propostos em aula, os conceitos básicos que lhes faltavam para aprender outras disciplinas, em especial a Matemática.

A condução a padrões uniformes é realizada a partir de ações disciplinadas nas tarefas cotidianas da escola. É preciso disciplinar as crianças para que se comportem e aprendam da maneira determinada pelos padrões adultos. “O

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indivíduo disciplinado é aquele que não só tem a sua liberdade mais limitada, como, ainda e principalmente, é aquele que passa a dar respostas mais homogêneas, mais padronizadas e mais automáticas.” (VEIGA-NETO, 1996, p. 220).

A Professora Heloísa, em uma aula de Geografia, fala sobre o município. Diz que nele há a zona urbana e a zona rural. E completa:

- Na prova, vocês têm que responder que são da zona URBANA, não

pode escrever que é zona rural. Ninguém aqui mora na zona rural!45

A professora-memória cria estratégias de controle...

Para conseguir trabalhar em uma turma muito agitada, da quarta série, criei uma estratégia de controle do corpo: ao chegarmos à quadra, propus que todos rodassem, rodassem, até não poderem mais. Ganhei alguns minutos menos agitados para explicar a atividade que faríamos. Estava criada a pedagogia da tonteira...

Sair de sala com uma turma de crianças para a aula de Educação Física é, em geral, complicado. Fazem muito barulho e incomodam outras turmas. Passei a criar formas de sairmos sem atrapalhar: a mais silenciosa delas foi imitar fantasmas, que não poderiam ser vistos nem ouvidos. Ao

chegarmos à quadra, ganhavam o direito de dar um grande grito, para assustar a todas as pessoas...

Os processos de homogeneização dos indivíduos separam-nos a partir das suas diferenças em relação a um referencial, que se constitui em operação de poder – cabe ao diferente o ônus da diferença. A exclusão seria, então, o lado negativo da normalização (BUJES, 2003). Compreende-se a criança como uma realidade universal. São compreensões datadas, pertencentes a um tempo-espaço próprios, particulares, que não se aplicam necessariamente a outras realidades. A criança é inserida em um processo de adultização, de substituição de não-saberes

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por saberes pré-determinados pelos adultos. No texto “Os meninos”, construído a partir da observação da imagem de três meninos sentados em uma sala de aula, Lopes e Veiga-Neto escrevem: “Todos os três estão naquela sala de aula, mas cada um está ali a seu modo” (2004, p. 236). A heterogeneidade desfaz a rigidez dos processos escolares, questionando suas ações:

Seja porque uns aprendem mais fácil ou rapidamente do que outros, seja porque uns se interessam mais do que outros por aquilo que se lhes ensina, seja ainda porque para uns os processos de ensinar e aprender e a vida que acontece numa escola fazem mais sentido do que para outros, o fato é que, na busca pela ordem e pela limpeza, a escola e a Pedagogia conseguiram muito, mas não conseguiram tudo” (Id., p. 237-238).

A escola impõe ritmos coletivos de aprendizagem, trabalho e descanso, movimento e imobilidade, sons e silêncios, atenção e dispersão, bem como define horários coletivos para alimentação e satisfação de necessidades fisiológicas e idades para a realização de determinadas atividades. A construção desse padrão passa a ter status de normalidade, fora do qual se encontram alunos carentes de atenção especializada, que não se mostram capazes de corresponder ao que foi estabelecido como exigência para todos. Neles, a quem é negado o direito à diferença, configura-se o “fracasso escolar”. A escola, com seus tempos e espaços próprios, é a primeira instituição na vida da criança, além da família, que tem o papel de regulação cronobiológica.

A professora-memória

Na creche, garantia de benefício na vida adulta: horários coletivos para usar o banheiro: todas as crianças ficam sentadas no vaso, mesmo que chorem, para que se tornem adultos com intestinos bem regulados.

Lopes e Veiga-Neto, no texto “Os meninos”, problematizam a homogeneidade aparente das crianças em sala de aula. Um primeiro olhar percebe suas semelhanças de meninos-alunos, uniformizados e submetidos a práticas que se destinam à coletividade de uma turma de escola. Repete-se o exercício de olhar atentamente:

Se num relance esse três meninos se parecem entre si – pois, afinal, não são todos eles anônimos alunos numa sala de aula? –, basta um olhar um pouco mais atento para se começar a ver as diferenças que há entre eles. E quanto mais se olha, mais se aprofundam as diferenças... [...] vale a pena diferenciar nas suas singularidades, esses três meninos, ou seja, tentar enxergar adiante do aplainamento a que uma moderna sala de aula submete seus alunos. (2004, p. 235).

Lopes e Veiga-Neto (2004, p. 231) se preocupam com o olhar do educador:

[...] é preciso ‘alfabetizarmos o olhar’ para conseguir enxergar tudo aquilo que se dá a esse olhar. Em outras palavras, isso significa tentar examinar a cena naqueles planos menos imediatos do cotidiano, de modo que, olhando para além do lugar-comum, se consiga apreender os modos de significação nos e pelos quais aprendemos, entre tantas coisas, a viver segundo esquemas temporais e espaciais mais ou menos disciplinados.

A criança negocia com o mundo adulto a sua existência, por meio da sua capacidade de criar, nomear, simbolizar e interpretar a realidade na qual está inscrita e a qual produz. As crianças negociam entre si, estabelecem critérios, modificam-nos, refazem-nos.

A professora-memória

Mariana era uma boa aluna, bonita, alegre e simpática nos seus seis anos. Até que um dia caiu um dente. Mariana passou um ano e meio sem abrir a boca na escola – não falou mais, não comeu, não bebeu água. Um dia, voltou a falar com uma amiga, depois na cantina, voltou a beber água, a comer... e tudo voltou ao normal.

A concepção de criança como ser marcado pela ausência, a quem falta algo, tem sido aos poucos superada. Estudos contemporâneos na Filosofia têm pensado a infância ”[...] a partir do que ela tem, e não do que lhe falta: como presença, e não como ausência; como afirmação, e não como negação; como força, e não como incapacidade” (KOHAN, 2007, p. 101). A multiplicidade aponta para a necessidade de se considerar, para diferentes crianças, diferentes infâncias, e não um modelo idealizado-padronizado de filhos de família nuclear, bem alimentada, com moradia, saúde, escola etc. Nessa perspectiva a criança é sempre vista de cima e “compreendida” pelo adulto que tudo sabe a seu respeito, sem ao menos ouvir sua voz. Novas concepções de criança, na contemporaneidade, a reconhecem criativa e

No documento adrianadecastrofonseca (páginas 80-94)

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