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adrianadecastrofonseca

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Academic year: 2021

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(1)UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA FACULDADE DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO CURSO DE MESTRADO. ADRIANA DE CASTRO FONSECA. DISCIPLINANDO O CORPO DE ALICE: MARAVILHA E CONTROLE NA ESCOLA CONTEMPORÂNEA. JUIZ DE FORA 2009.

(2) 1. ADRIANA DE CASTRO FONSECA. DISCIPLINANDO O CORPO DE ALICE: MARAVILHA E CONTROLE NA ESCOLA CONTEMPORÂNEA. Dissertação apresentada por Adriana de Castro Fonseca, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Educação. Orientadora: Profª. Drª. Sônia Maria Clareto.. JUIZ DE FORA 2009.

(3) 2. FOLHA DE APROVAÇÃO.

(4) 3. Dedico este trabalho aos meus alunos de todos os tempos, crianças e jovens, de todas as escolas e faculdades onde aprendemos juntos..

(5) 4. AGRADECIMENTOS. À Soninha, pela orientação, por seu conhecimento inquieto e sempre mutante.. Ao GEPESEE, Grupo de Pesquisa e Estudos da Subjetividade, Espaço e Educação, por dividirmos dúvidas e multiplicarmos soluções.. Ao Tiago, minha melhor criação.. À minha mãe, meu porto seguro.. Aos meus irmãos e sobrinhos, pelo convívio amoroso.. Aos colegas professores, funcionários e aos meus alunos da Faculdade Metodista Granbery, pelo apoio e interesse acadêmico..

(6) 5. RESUMO. A instituição escolar exerce sobre as crianças um controle naturalizado, legitimado em forma de códigos disciplinares, estatutos, normas internas, regimentos e outros dispositivos. Cada passo em direção à aprendizagem dos conteúdos é minuciosamente planejado, previsto e controlado. Os corpos infantis, usinas de movimento e expressão, são, pouco a pouco, docilizados. Para os diferentes, as punições; para os que não se deixam enquadrar, os rótulos: inadequados, incapazes, incompetentes – repetentes. Este trabalho, construído a partir de pesquisa de campo em uma escola da rede municipal de Juiz de Fora – MG, dialoga com minha vivência como professora de Educação Física em escolas públicas e particulares e com autores ligados ao tema; e se propõe a estudar a resistência e aceitação das crianças frente às ações de disciplinarização do corpo no espaço escolar. Foram utilizados como procedimentos metodológicos observação e entrevistas com professores e alunos sobre os temas estudados, além de construção de notas de campo e notas de campo expandidas. O fio condutor da escrita da dissertação é a história de Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll. Crianças e infâncias são temas estudados a partir de Ariès, Benjamin, bem como em Bujes, Corazza e Vorraber; temporalidade e infância em Kohan, Kastrup e Larrosa; disciplina, poder e controle em Foucault, Freire e Veiga-Neto; o corpo em Vigarello, Soares e Sant’anna; o espaço escolar em Lara e Clareto.. Palavras-chave: Crianças. Espaço escolar. Disciplinarização do corpo. Poder..

(7) 6. ABSTRACT. The school, as an institution, exerts on the children an institutionalized, naturalized, legitimated control in form of discipline codes, statutes, internal norms, regiments and other devices. Each step toward learning is minutely planned, previewed and controlled. Infantile bodies, plants of movement and expression, are, little by little, subjected. For the different ones, the punishments. For those who don't allow themselves to be squared, labels: inadequate, incapables, incompetents - repeaters. This work, based in field research in a public school in Juiz de Fora - MG, dialogs with my experience as Physical Education Teacher in public and private schools and with theoreticians linked to the subject, proposes to study children's resistance and acceptance of body disciplining at school space. As methodological procedures were used: observation and interviews with teachers and students about the studied theme besides construction of field notes and expanded field notes. The conducting wire of the research writing is Lewis Carroll's story Alice in Wonderland. Children and childhood are themes studied from Ariès, Benjamin, and Bujes, Corazza e Vorraber; temporality, and childhood in Kohan, Kastrup and Larrosa; discipline, power, control in Foucault, Freire and Veiga-Neto; the body in Vigarello, Soares e Sant'anna and the school space in Lara and Clareto. Key Words: Children. School space. Body´s disciplining. Power..

(8) 7. N. Andry. A Ortopedia ou a arte de prevenir e corrigir, nas crianças, as deformidades do corpo (1749). Fonte: FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir..

(9) 8. SUMÁRIO. APRESENTAÇÃO ..................................................................................9. ENTRANDO NA TOCA DO COELHO................................................... 15 ESCOLA-TOCA .................................................................................... 22. A CHAVE DO TAMANHO: DISCIPLINA, PODER, CONTROLE E RESISTÊNCIA ...................................................................................... 38 A narrativa como forma de resistência .............................................. 60. QUE CORPO CABE NA ESCOLA-TOCA? .......................................... 67 É TARDE ATÉ QUE ARDE! ..................................................................79. SAINDO DA TOCA DO COELHO?....................................................... 93. REFERÊNCIAS ..................................................................................... 96.

(10) 9. APRESENTAÇÃO. “A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque requer um gesto de interrupção [...] requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorarse nos detalhes; suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo das ações; cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço.” (LARROSA, 2002, p. 24).. A “docilização do corpo” foi tema de muitas inquietações ao longo dos anos em que trabalhei na docência da Educação Física escolar. Interessava-me estudar a instituição escolar totalizante, que controla corpos e mentes, despreza os saberes daqueles que recebe como alunos e de sua comunidade, que acredita ter como tarefa salvar o ser humano da barbárie, que não vive as mudanças do mundo e evita questionar-se para que não se veja compelida a romper com práticas cristalizadas desde a época da sua criação. A construção deste trabalho se deu pela confluência de alguns vetores: minha experiência como professora de Educação Física escolar – que aparece mais explicitamente em algumas das passagens apresentadas em quadros e intituladas “A professora-memória”; uma pesquisa de campo, que dialoga com diversos autores; e a história de Alice no país das maravilhas, de Lewis Carroll, que faz um contraponto – e por vezes traz a fantasia do ser criança – ao texto. A construção do trabalho foi amplamente discutida no GEPESEE – Grupo de Pesquisa e Estudos da Subjetividade, Espaço e Educação – do NEC1, na Faculdade de Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora.. 1. O Núcleo de Educação em Ciência, Matemática e Tecnologia (NEC) é um núcleo de estudos e pesquisas locado na Faculdade de Educação da UFJF. O Núcleo vem se organizando desde 1980 em torno de questões relativas à educação. Ainda sobre o NEC: “Decididamente de formação multidisciplinar o NEC vem se dedicando a abordagens epistemológicas, filosóficas e metodológicas alternativas ao modelo científico acadêmico vigente. O Núcleo é composto por professores, pesquisadores e estudantes que mantém vínculos diversos com a UFJF. [...] com uma estrutura bastante flexível, o NEC procura ser um espaço de inovação educacional, acadêmica e científica,.

(11) 10. A pesquisa de campo, iniciada no segundo semestre de 2007, estuda a questão da disciplinarização do corpo da criança no espaço escolar. Após recusas por parte de algumas escolas, encontrei receptividade em uma instituição da rede municipal de ensino, na região oeste da cidade de Juiz de Fora – MG. Uma fala da diretora, no primeiro contato, me chamou a atenção: “Esta é uma escola normal. Aqui acontece tudo o que acontece em todas as outras escolas: temos problemas de disciplina, temos bons alunos, bons projetos, temos de tudo um pouco. Às vezes faltam professores, temos alguns alunos difíceis, mas temos muita coisa boa. Trabalhamos muito, implantamos Projetos da Prefeitura. Este, por exemplo, (aponta um mural com material do projeto), tem sido muito bom: melhorou a disciplina e as relações na escola”. 2. A Escola funciona em três turnos. No turno da tarde, no qual a pesquisa foi realizada, há turmas do primeiro ao sexto ano, totalizando doze turmas. No grande portão, do lado de fora, uma plaquinha informa: “Sorria, você está sendo filmado”. Na secretaria, um quadro na parede: “Aqui trabalha gente feliz”. No dia em que visitei a escola pela primeira vez, um grupo de alunos do turno da manhã ensaiava números de dança no pátio, com a professora responsável pelo Projeto de dança. Na Biblioteca havia alunos de outros turnos que recuperavam livros danificados, sob orientação do bibliotecário. A quadra, descoberta, tem piso de cimento, com marcações de linhas poliesportivas, traves e tabelas de basquete. Nos corredores vi muitos alunos do turno da tarde que saíam das salas para usarem banheiros ou bebedouros. A Diretora autorizou a pesquisa e minha permanência na escola pelo período que fosse necessário, em quaisquer dias e horários. Apresentou-me à ViceDiretora e a alguns funcionários e professores. No ano de 2007, conversei com vários professores, alunos e funcionários, assisti a aulas de Educação Física e em sala de aula.. abrindo espaço para alunos de graduação, de pós-graduação e para professores da rede pública de ensino e outros interessados em questões de relevância do Núcleo” (CLARETO, 2006, p.9). 2. Textualização a partir da fala da Diretora, não gravada por meio eletrônico, em conversa no dia 05/11/2007..

(12) 11. O trabalho de campo, durante o ano de 2008, focou as duas turmas do quarto ano do Ensino Fundamental, no turno da tarde, cada uma com trinta alunos. As duas turmas acompanhadas têm características muito distintas: o quarto ano “A” é mais silencioso e parece ter crianças mais novas. A Professora de classe, Roberta3 fala em voz baixa e é ouvida. Ela mostra satisfação quando diz conhecer muito bem as famílias do bairro. Sobre as turmas do quarto ano diz que “As duas turmas são bem levadinhas, são turmas difíceis, mesmo”. A turma “B”, da Professora Heloísa, me pareceu mais agitada e ali vi alunos que aparentavam ter mais idade do que a média da série. Com a Professora Roberta, em entrevista gravada no dia 14/04/2008 e posteriormente transcrita, foi travado o seguinte diálogo:. - Esta turma tem crianças mais novas do que a outra? - Acho que sim. - Como é feita a divisão? - É aleatória. Temos crianças ótimas, boas e com mais dificuldades. - Nas duas turmas? - É, o Conselho de Classe considerou o rendimento das duas turmas igual. No início do ano, as duas turmas eram igualmente agitadas. - E agora? - Agora, eu acho a minha mais calma. - Por quê? - Não sei, tem dias que eles estão melhores, em outros mais difíceis. As duas turmas observadas têm aulas “especializadas” (de Educação Física, Ciências, Oficina Literária e Artes) com outros professores que não os professores de classe. Esses profissionais consideram as duas turmas difíceis. Todos eles, porém, disseram ter mais dificuldades para trabalhar com a turma “B”, embora ressaltem que no início do ano letivo as duas turmas eram muito parecidas e que as crianças foram distribuídas com a intenção de formar turmas semelhantes (igual número de crianças, alunos repetentes e crianças mais velhas distribuídos por. 3. Serão usados pseudônimos para se referir às professoras, assim como aos demais envolvidos na pesquisa. Tal opção objetiva buscar a preservação da identidade oculta daqueles que se dispuseram a colaborar com a investigação..

(13) 12. igual, crianças consideradas com mais facilidades e mais dificuldades cognitivas também divididas uniformemente). No período de convivência com a escola, acompanhei movimentos na escola: na sala de aula, na entrada e saída dos alunos, no recreio, na biblioteca, em aulas de Educação Física, em aulas de reforço, na secretaria, na sala dos professores. Assisti a aulas em sala, aulas de Educação Física, atividades dos Projetos de dança e Oficina Literária. Foi elaborado um diário de campo, com notas de campo, notas expandidas e transcrições de gravações de voz. Realizei entrevistas, com alunos, professores e diretora, que Flick (2004) chama episódicas, nas quais o entrevistador convida o entrevistado a narrar episódios, experiências ou situações concretas vividas por ele, a partir de perguntas sobre os temas pesquisados. Entrevistei a diretora, conversei com professores, mães, funcionários e alunos. Os contatos com a Diretora, Vice-Diretora e Coordenadora Pedagógica se deram logo no primeiro dia de pesquisa de campo. Chegando à escola, pedi para falar com a Diretora, que me atendeu e me apresentou às outras profissionais. Realizei entrevista agendada, gravada e, posteriormente, transcrita, com a Diretora. Foi ela quem me apresentou às professoras das turmas de quarto ano, com as quais conversei várias vezes, assisti a aulas e gravei entrevistas. Mantive contato com os professores das aulas ditas especializadas (Educação Física, Oficina Literária, Ciências e Projetos) e assisti a aulas de todos eles. Tive oportunidade de dialogar com professoras de outras turmas, com o Bibliotecário, professora eventual e também com as funcionárias da Secretaria, da cantina e de serviços gerais. Conheci alguns pais e irmãos de alunos no pátio da escola e alunos de outras turmas, chegando, inclusive, a assistir a aulas de outras turmas, em sala de aula, no segundo semestre de 2007, quando iniciava a pesquisa. As entrevistas com alunos das turmas acompanhadas (do quarto ano) foram agendadas com as professoras e com a Vice-Diretora. No dia marcado, cheguei à escola com filmadora, gravador de voz, câmera fotográfica e muito interesse. A vice-diretora autorizou as entrevistas, desde que não fossem feitas imagens, uma vez que não havia autorização formal dos pais para a participação das crianças na pesquisa. Dirigi-me à sala da Professora Roberta e pedi que escolhesse três crianças: uma, que a professora considerasse “disciplinada”, uma considerada “razoavelmente disciplinada” e uma considerada “indisciplinada”. A.

(14) 13. escolha foi imediata. Ela me informou, em segredo: “O ‘aluno 1’ é o bom, o ‘aluno 2’, mais ou menos e o ‘aluno 3’, impossível.” Perguntei se eles aceitavam conversar comigo em outra sala (a sala de vídeo, disponibilizada pela vice-diretora). Responderam que sim e fomos. Curiosos, queriam saber do que se tratava. Expliquei que fazia parte do trabalho para a Universidade. Chegamos à sala, sentamos, anotei seus nomes e datas de nascimento. A primeira manifestação das crianças foi exatamente identificar o aluno 1 como “quietinho”, o 2 como “mais ou menos” e o aluno 3 como “bagunceiro”. Na turma B, os procedimentos para pedir à professora que escolhesse os alunos foram os mesmos. Imediatamente, a professora chama, em voz alta, três meninos, identificando, sob os olhares atentos de toda a turma: “O ‘aluno 1’ é muito bonzinho, ótimo aluno; o ‘aluno 2’, é mais ou menos e o ‘aluno 3’ é terrível, você vai ver...”. Determina que saiam comigo. Eu explico o que pretendo fazer e pergunto se gostariam de conversar comigo. Aceitam. A pesquisa realizada, de abordagem qualitativa, se caracteriza como pesquisa interpretativa (CLARETO, 2004), que se apóia na concepção de que o conhecimento não é neutro e nem se presta a se adequar a verdades. É, sim, uma interpretação, um movimento, um processo dinâmico de busca de compreensão da situação pesquisada em sua multiplicidade, em sua perspectividade, sem pretender generalizar, prescrever ou concluir. A pesquisa de campo buscava, inicialmente, investigar as manifestações do corpo, as proibições, as oportunidades que a escola estudada oferece ao aluno de se movimentar, as normas disciplinares que regulam a expressão do corpo no espaço escolar. O objetivo era estudar de que maneira a instituição escolar foi investida do poder de disciplinar o corpo infantil e como tem exercido esta função. A pesquisa de campo apontou para as diferentes respostas das crianças às ações de controle exercidas pela escola – A criança aceita? Resiste? Aceita para resistir? Resiste ao aceitar? Quais são os indicadores da aceitação? Quais são as possíveis reações? Que reações se podem verificar? O corpo resiste? O corpo se manifesta? Delineou-se, então, a questão: “Como crianças do quarto ano do Ensino Fundamental. de. uma. escola. pública. resistem. e. aceitam. as. ações. de. disciplinarização do corpo no espaço escolar?”. Dialogando com os fluxos da memória e dos acontecimentos do período de convivência no campo, a partir da observação das manifestações de resistência e de aceitação das crianças frente aos processos de disciplinarização do corpo.

(15) 14. naquela instituição, passei a identificar as formas de fuga aos mecanismos de controle, bem como as formas de enfrentamento e de aceitação que cada criança constrói na sua vivência no espaço escolar. O fio condutor do meu “incômodo” como pesquisadora tem sido a questão da padronização: a escola fixa normas disciplinares, diretrizes curriculares, metodologias de ensino e objetivos que visam a homogeneizar ações, experiências e saberes. Os corpos infantis, minuciosamente controlados, perdem expressividade, criatividade e sensibilidade. O presente trabalho está organizado em partes. Entrando na toca do coelho traz a experiência da constituição da pesquisa e da pesquisadora, que entrou em uma escola-toca, da mesma maneira que Alice entrou na toca do Coelho Branco: prenúncio de grandes experiências. Escola-Toca estuda o espaço escolar e alguns acontecimentos significativos da pesquisa. A chave do tamanho: disciplina, poder, controle e resistência discute os temas que anuncia em interação com fatos ocorridos na pesquisa de campo. Em seguida, traz A narrativa como forma de resistência, uma possibilidade vislumbrada na escola pesquisada. Que corpo cabe na Escola-Toca? estuda concepções de corpo na história da instituição escolar e na Escola-Toca. É tarde até que arde! se dirige às questões relativas à padronização das aprendizagens escolares. O tempo do Coelho se impõe a todas as crianças, que devem se adaptar às exigências curriculares e disciplinares da escola. Saindo da toca do Coelho? indica uma impossibilidade de fechamento: a toca guarda ainda muitos segredos e aventuras. É preciso retornar a ela inúmeras vezes..

(16) 15. ENTRANDO NA TOCA DO COELHO. “Comece pelo começo, siga até chegar ao fim e então, pare.” 4. O olhar de um adulto sobre o mundo infantil é sempre atravessado pelas experiências de adulto, afetado por vivências que constituem um pensamento distinto do pensamento infantil, que opera de forma particular. Um adulto que se transporte às suas memórias de criança estará em contato com outro tempo, o seu tempo de criança, com referências alheias ao universo e aos sentidos da infância contemporânea. O mesmo acontece com o pesquisador que se propõe a mergulhar em questões relativas à infância. Sabendo-se participante do cotidiano pesquisado, ou de um recorte daquele cotidiano, despojando-se da falsa, ou, no mínimo improvável, neutralidade, se encharca, se compromete, se envolve com as pessoas, com os episódios vivenciados, com suas experiências no campo de pesquisa. Mas ele é um adulto, com uma temática adulta, olhando crianças, às quais nunca terá acesso senão de maneira limitada. Pesquisar questões relacionadas à infância pressupõe conhecer “[...] seu caráter fugidio, de seus múltiplos sentidos, de sua infinita complexidade.” (BUJES, 2005, p. 181). Fazer pesquisa é produzir-se como pesquisador – ou como pesquisadora. É experienciar incômodos próprios do lugar – incomum para uma pesquisadoraprofessora – de observadora, de não-responsável pelas ações de professor, pelas ações desencadeadoras do processo ensino-aprendizagem. Estar no campo de pesquisa é ser atravessada pelos acontecimentos do cotidiano daquela escola, é abrir-se à experiência. Segundo Larrosa (2002, p. 26), “É experiência aquilo que ‘nos passa’, ou que nos toca, ou que nos acontece, e ao nos passar nos forma e nos transforma. Somente o sujeito da experiência está, portanto, aberto à sua própria transformação”. O saber da experiência é o saber do sujeito que a experiencia. A pesquisa de campo, transformadora, pode se constituir, para o pesquisador, em saber da experiência. 4. Todas as epígrafes não referenciadas são da obra de Lewis Carroll, Alice no País das Maravilhas (CARROLL, 2002)..

(17) 16. A transformação a que o pesquisador-professor se abre quando vivencia, no campo de pesquisa, os modos de existir das crianças pode contribuir para que ele olhe o lugar da criança na instituição escola. Ao eleger como foco de interesse a criança, esta pesquisa observou na escola estudada uma visão adultocêntrica, que se constitui a partir do momento em que o adulto ignora a diversidade de linguagens infantis em nome da legitimidade de um saber estabelecido. Saberes naturalizados têm lugar garantido na instituição escolar, este espaço de exercício do saber-poder. No espaço escolar, como em outras instituições de trabalho com crianças, defendem-se determinadas concepções de infância que se ligam à defesa de formas de poder (social, político, econômico). As orientações oficiais, a tradição, os valores morais, políticos, religiosos etc. determinam escolhas de conteúdos, metodologias e de relações humanas que são tomadas como, senão únicas, as melhores, exercidas para o bem de todos. Todas as formas de poder e de saber, segundo Foucault (2006; 1985), guardam estratégias de controle. A escola cria rotinas para enquadrar as crianças na concepção de infância em que acredita. As crianças, por sua vez, vivem suas infâncias em uma organização pautada pelas concepções de infância dos adultos e a todo momento as subvertem, rompem, transgridem o que se impõe a elas, ao se presentificarem no espaço e resistirem às imposições. Este trabalho discute experiências de crianças e de adultos em uma escola, bem como a experiência da pesquisadora nesse espaço-tempo. A convivência no campo de pesquisa possibilitou a compreensão da potência dos acontecimentos e a diversidade dos modos de existir de adultos e de crianças, ao focalizar processos de disciplinarização do corpo da criança e manifestações de aceitação e de resistência a essas ações..

(18) 17. A professora-memória Nonsense na escola: professoras-caranguejo e água da biquinha Uma turma sai da sala: crianças em fila (uma de meninas e outra de meninos). A professora anda de costas, com o olhar atento sobre as crianças. Param em frente aos banheiros. Cantam (ela, de frente para a turma, faz os gestos, imitada pela maior parte dos alunos): “Cai a água da biquinha / Faz espuma com sabão / Pra comer a merendinha / Já lavei as minhas mãos.” Algumas crianças ignoram a música, saem da fila, agitadas. A música é a mesma que eu cantava na Escola Branca de Neve, quando aluna da Educação Infantil. A mesma biquinha, que para mim era um enigma, algo desconhecido. Acabada a música, lavam as mãos. A professora espera, até que (quase) todos estejam novamente em fila. Partem, com outra música: “Tchan, tchan, tchan, o trenzinho vai partir (...) é hora da alegria, é hora de lanchar”. A professora tenta em vão fazer com que as crianças se desloquem organizadamente, juntos, em consonância com as músicas. A turma se divide: uns vão receber a merenda da escola; outros, com suas lancheiras, vão para o pátio da frente. Outra turma sai: mais uma professora “caranguejo”.. Toda história de criança contada por adulto é história de adulto contada para crianças. A história de Alice, recontada e discutida desde o século XIX, tem sido interpretada de diversas maneiras. Ícone do nonsense, questiona-se, inclusive, se foi escrita para crianças ou para adultos. Alice não gosta da rotina, da sonolência sem prazer. Falta movimento, faltam diálogos interessantes. Faltam ideias novas, que lhe agucem a curiosidade. É como estar na escola em dias comuns. O Coelho Branco quebra a monotonia. Ardendo de curiosidade, ela deseja saber o que vai acontecer a seguir. Quando se vê em um mundo novo, pleno de situações inusitadas, busca usar os conhecimentos da escola. Mas traz da experiência na escola o medo de errar: “Ela iria pensar que eu sou uma garotinha ignorante por perguntar! Não, não vou perguntar nunca!” (CARROLL, 2002, p. 2)..

(19) 18. O mundo desconhecido, tal como o mundo dos conhecimentos indecifráveis, muitas vezes experimentado no cotidiano escolar, tem muitas portas fechadas e a única chave não encaixa nas fechaduras.. “A educação é uma chave que abre todas as portas.” (Vô Barbosa, meu bisavô materno).. Para abrir uma porta, Alice se transforma. Cresce, diminui, após ter desejado ativamente. Nos momentos de dificuldade, desânimo, “[...] repreendia-se tão severamente que chegava a ficar com lágrimas nos olhos.” (Ibid., p. 3). De transformação em transformação, a menina se confunde: “Quem sou eu? Ah, esta é a grande confusão!” (Ibid., p. 5). Para encontrar a resposta, Alice verifica se ainda sabe as coisas que sabia antes. O que caracteriza Alice para que ela mesma possa se reconhecer é o que ela sabe. A cada situação inusitada, tenta aplicar os conhecimentos que aprendeu na escola. A Corrida de Comitê reúne animais de diferentes espécies. Unidos pela necessidade de se secarem, todos correm como, quando e quanto querem e todos vencem. O nonsense é o inusitado, o absurdo, o que causa estranhamento. É aquilo que – ainda? – não foi naturalizado: “Que estranho isso parece, Alice disse para si mesma, receber ordens de um coelho!” (Ibid., p. 12). Conversar com uma Lagarta – e, principalmente, ser contrariada por ela – é difícil para Alice: “Alice não disse mais nada: ela nunca fora tão contradita em toda sua vida antes e sentia que estava perdendo a paciência.” (Ibid., p. 18). Foi da mesma Lagarta que a menina ouviu: “Você se acostumará com o tempo.” (Ibid., p. 18). Alice cresce e diminui um sem número de vezes. Cabe, não cabe; alcança, não alcança; incomoda, é incomodada; pode, não pode; é respeitada e temida, respeita e teme. Ter o tamanho exato é mesmo muito raro. No princípio da aventura, ela não sabia como fazer para mudar de tamanho, mas logo aprendeu que bastava procurar algo para beber ou comer que as mudanças aconteciam. Colocou.

(20) 19. pedaços de cogumelo nos bolsos e passou a usar as mudanças de tamanho a seu favor, na hora e na intensidade que queria. Com o Gato de Cheshire, um diálogo em busca do Caminho:. “O senhor poderia me dizer, por favor, qual o caminho que devo tomar para sair daqui?” “Isso depende muito de para onde você quer ir”, respondeu o Gato. “Não me importo muito para onde...”, retrucou Alice. “Então não importa o caminho que você escolha”, disse o Gato. “... contanto que dê em algum lugar”, Alice completou. “Oh, você pode ter certeza que vai chegar”, disse o Gato, “se você caminhar bastante.” (CARROLL, 2002, p. 25).. O Chapeleiro conta a Alice que, após ter sido acusado pela Rainha de estar matando o tempo, vive, em companhia da Lebre de Março e do Leirão, sempre na hora do chá: são sempre seis horas da tarde. Por matar o tempo foi condenado a ser eternamente seu escravo. Alice conheceu a Rainha de Copas, autoritária e impaciente, que resolvia todas as questões com uma frase: “Cortem-lhe a cabeça!”. Com ela, jogou uma partida de críquete que não tinha regras (ou, “se tem, ninguém parece respeitar...”), o que lhe causou dificuldades. Mas as ameaças da Rainha – esclareceu o Grifo – eram apenas ameaças, que nunca se concretizavam (“Eles nunca executam ninguém”). A Duquesa, por sua vez, sempre achava uma moral em tudo: “Tudo tem uma moral, se você encontrá-la.” (Ibid., p. 33). E mostrou-se envaidecida por falar de uma maneira tão confusa que Alice não a entendeu: "Isso não é nada em comparação com o que eu poderia dizer, se quisesse, replicou a Duquesa num tom de prazer.” (Ibid., p. 34). Alice sentiu vergonha quando uma pergunta que fez foi considerada boba e “sentiu-se a ponto de enfiar a cabeça no chão.” (Ibid., p. 36). Alice lembrou-se várias vezes da escola, em especial ao receber ordens dos estranhos seres com quem se comunicou: "Como as criaturas gostam de mandar aqui, e fazer-nos recitar lições, pensou Alice. Parece que estou na escola, afinal." (Ibid., p. 40). O Valete de Copas era acusado do roubo das tortas da Rainha. Um bilhete foi encontrado: teria sido escrito por ele?.

(21) 20. "Por favor, Vossa Majestade", pediu o Valete. "Eu não escrevi isso e ninguém pode provar que fui eu: não há nenhum nome assinado no final." "Se você não assinou", disse o Rei, "apenas torna a situação pior para você. Com certeza você estava fazendo alguma coisa errada, senão teria assinado seu nome como um homem honesto." (CARROLL, 2002, p. 47).. As aventuras de Alice poderiam ser contadas como um pesadelo. O que as transforma em maravilha é o modo como a menina vivencia as situações que se apresentam. Ser criança é transformar o mundo à sua volta em imaginação, é permitir-se fazer o que a imaginação ouve, vê, percebe. O autor empresta leveza à personagem, que pode ser uma das tantas crianças pesquisadas no interior de diferentes escolas. Alice também se desanima e chora, também sente medo, mas para ela é sempre uma aventura experimentar o estranhamento de cada situação. Deixa-se levar pelo fluxo dos acontecimentos, se envolve com cada criatura e com cada situação inusitada que se apresenta. Para surpresa dos adultos que acompanham sua história, quer continuar. Encontra diversão e bem-estar no desenrolar dos acontecimentos – assim como o garoto que foi obrigado pela professora a cortar os bonitos e longos cabelos e, apesar de gostar dos cabelos compridos, disse, em entrevista 5, não ter se importado com o fato, nem mesmo com a ameaça feita por ela em voz alta, na sala de aula, passando o dedo indicador na testa do menino: “Se não cortar essa franja até sexta-feira eu vou cortar, tá? E vou cortar com a tesourinha da escola!” 6.. "Seu cabelo está precisando ser cortado", disse o Chapeleiro. Ele estivera olhando para Alice por algum tempo com grande curiosidade e esta fora sua primeira intervenção. "Você deveria aprender a não fazer esse tipo de comentário pessoal", Alice retrucou com severidade. "Isso é muito grosseiro." (CARROLL, 2002, p. 23).. Alice entrou na toca do Coelho. Uma toca é um esconderijo, um abrigo, um lugar no qual se está a salvo, protegido de perigos. A profunda toca do Coelho 5. Entrevista realizada em 12/08/2008, gravada em áudio e transcrita posteriormente.. 6. Episódio ocorrido durante a pesquisa de campo, descrito em Nota de Campo do dia 14/05/2008..

(22) 21. Branco, no entanto, se revelou para Alice um lugar de abertura para outros mundos, para outros viveres, outros caminhos e experiências. Nossa escola, toca, é abrigo e proteção e também pode ser um lugar de vivências, de possibilidades. A escola onde foi realizada a pesquisa de campo passa a ser denominada, neste trabalho, de Escola-Toca, ou, utilizando a expressão da Diretora, de Escola-Normal..

(23) 22. ESCOLA-TOCA “Eu quase desejo não ter entrado na toca do coelho... mas, mas, é tão curioso, sabe, esse tipo de vida!” (Alice) “Não há mais espaço para eu crescer aqui.” (Alice). A escola exerce sobre as crianças um controle institucionalizado, reconhecido, desejado por grande parte de pais de alunos. Esse controle é legitimado em forma de códigos disciplinares, estatutos, normas internas, regimentos e outros dispositivos. Alegando oferecer atenção e educação eficiente, a instituição escolar traça um padrão disciplinar do qual todas as crianças devem ser aproximadas. Os corpos infantis, tolhidos em sua expressividade e movimento, são docilizados. Para que haja aprendizagem, a escola supõe e impõe silêncio, imobilidade e seriedade. A aprendizagem dos conteúdos é minuciosamente planejada, em uma sucessão de etapas imutáveis, que desconsideram a diversidade de crianças, interesses, possibilidades e dificuldades. Cada etapa é prevista e controlada em cada detalhe. Definem-se pré-requisitos que se fundam em disciplina e atenção: cada corpo em seu lugar, na postura estabelecida como correta, organizadamente, passivamente, aprende-apreende o que é dado pronto. À criança é vedado o caminho da experiência, da busca realizada por caminhos desconhecidos: “[...] a experiência não é um caminho até um objetivo previsto, até uma meta que se conhece de antemão, mas é uma abertura para o desconhecido, para o que não se pode antecipar nem ‘pré-ver’ nem ‘pré-dizer’.” (LARROSA, 2002, p. 28). A escolaverdade toma o lugar da escola-experiência. O modelo tradicional de escola quer eliminar o estranhamento e com isso elimina também a experiência. A criança a transforma em toca de Alice ao subverter o controle. A toca de Alice subverte a tridimensionalidade, a idéia de evolução ou desenvolvimento por etapas, do simples para o complexo, do conhecido para o.

(24) 23. desconhecido. Brinca com o tamanho de pessoas, bichos e objetos. Cresce e diminui; avança e retrocede; se alegra e se entristece; se interessa e se entedia. A criança estabelece com o espaço escolar uma relação por vezes conflituosa. Entra em contato com diferentes códigos, impostos de forma explícita ou velada, e deve respeitá-los, para que não sofra punições. Menino ou menina? O que é permitido? O que é proibido? Desrespeitar as regras de conduta significa ser diferente,. incapaz,. incompetente,. inadequado.. Paira. sobre. as. crianças,. transformadas em alunos, a ameaça do mais temido dos rótulos: repetente. Cada criança, em seu universo singular de entendimento das relações com o outro, com a autoridade, com a instituição escolar e com o conhecimento, age – ou reage – à sua maneira frente a esse controle. Há as que, aparentemente, aceitam passivamente o controle, obedecendo sempre às regras estabelecidas; algumas criam táticas para agir como desejam, sem que sejam descobertas praticando atos passíveis de punição, calculando os riscos de suas ações; outras resistem abertamente, enfrentando a autoridade imposta, desrespeitando regras, correndo o risco de serem punidas. A escola é uma instituição estabelecida na Modernidade. Os processos que a atravessam são tributários dessas contingências. Currículos, rotinas pedagógicas. que. permeiam. a. relação. disciplinar,. práticas. pedagógicas. meritocráticas, avaliações, modelagem de exercícios e estrutura arquitetônica são formados e inventados na Modernidade. A escola tem raízes européias profundas. É um espaço historicamente produzido para atender às demandas de uma cultura específica e de uma sociedade que a organiza. Constituiu-se, assim, como um espaço de confinamento e controle, justificado pela atenção dispensada às crianças ali matriculadas. A observação do espaço escolar e de suas múltiplas relações revela descompasso entre algumas práticas escolares cotidianas e as vivências, linguagens e interesses das crianças da atualidade em nossa sociedade. Muitas práticas escolares têm se mantido nas últimas décadas, apesar das intensas modificações. nos. frequentemente. hábitos,. resistem. ao. interesses. e. controle. dos. rotinas adultos,. das. crianças.. subvertendo. Crianças a. ordem. estabelecida. Ainda assim, as mudanças nem sempre sobrepujam as permanências, e mantêm-se padrões de disciplina, organização curricular, metodologias, formas de avaliação, relações poder-saber etc..

(25) 24. Lara (2007) discorre sobre diferentes concepções do espaço. Duas teses estão presentes nas reflexões do Ocidente sobre o espaço: a primeira compreende o espaço como continente – um espaço vazio que recebe os objetos. A segunda compreende o espaço como a relação entre os conteúdos, entre os objetos do mundo. Ambas são teses objetivistas – o espaço existe e a mente humana capta esse espaço. A partir da Modernidade, Kant apresenta sua tese subjetivista: não existe espaço e tempo como “coisas” objetivas. São categorias que surgiram da necessidade humana de interpretação e organização. Para ele, o espaço organiza a sensibilidade externa, o mundo exterior; o tempo organiza o mundo subjetivo, o mundo interior. Como contraponto às teses apresentadas, Lara estuda a posição de Heidegger: o espaço não se encontra no sujeito, nem o sujeito considera o mundo como se estivesse no espaço. Quem constitui o espaço é o ser humano - o sujeito é constitutivamente espacial. Heidegger passa de uma concepção essencialista de espaço – as “coisas” existem em si e têm uma essência, algo que as define, delimita, diferencia e identifica – para uma concepção existencialista do espaço – as “coisas” não têm uma existência em si, elas existem no mundo. “Para Heidegger, o ser humano só é humano na medida em que se entende como construtor de mundo.” (LARA, 2007). A compreensão do espaço como continente traz consigo a noção de espaço externo ao sujeito – o espaço contém coisas, pessoas e relações. O sujeito é interioridade; o espaço, exterioridade. Para Heidegger, a espacialidade é existencial; não há sujeito sem espaço. A existência só se dá na espacialidade – existência e espacialidade estão em um mesmo processo. Clareto (2007, p. 44) traz outra concepção de espaço, apoiada em Nietzsche. A autora discute a. [...] noção de espaço a partir da noção de mundo como relação de forças de Nietzsche, o mundo como vontade de potência. Tal noção difere-se, fundamentalmente, das noções de espaço mais hegemônicas na modernidade: espaço como palco, como continente; e espaço como relacional..

(26) 25. O espaço escolar é conflituoso, um espaço de relação de forças em atrito. Deste jogo de forças participam os currículos, os procedimentos didáticometodológicos, as disposições arquitetônicas, os códigos disciplinares, as relações interpessoais, os mecanismos de resistência e de subversão que se criam no interior da escola e das práticas educativas ao longo da história. Recorremos mais uma vez a Lara (2007, p. 18), que entende como necessária uma modificação substancial do espaço escolar, na dimensão da existência humana: Nesse contexto, entende-se nossa Escola Fundamental, espaço cartesiano, geométrico, onde a ciência, a abstração, a clareza das normas e das disciplinas, as certezas dos currículos e dos programas têm pleno direito de cidadania. Aí, o espaço, para as curvas e os labirintos da fantasia, da imaginação e da emoção, para as artes, por exemplo, é relegado aos porões, às exigências secundárias.. O trabalho de campo revelou que o uso do espaço físico na Escola-Toca desempenha papel fundamental no processo de controle e regulação das crianças. As professoras definem os lugares que os alunos devem ocupar na sala de aula, realizando trocas de lugares quando a conduta de determinado aluno em sala de aula não corresponde ao que é esperado ou determinado pela professora. A troca de lugar é uma forma de punição pelos atos praticados pelo aluno em sala de aula. A organização da sala de aula e a definição do espaço físico destinado a cada aluno possibilitam um controle detalhado e minucioso sobre as ações das crianças, o que Foucault (2006, p. 123) denomina de princípio de quadriculamento: “Cada indivíduo no seu lugar; e em cada lugar, um indivíduo”. Foucault se refere ao uso do espaço físico como mecanismo de controle.. Na Oficina literária da Escola-Toca, a turma faz muito barulho. Um menino bate com a régua na mesa, produzindo um som repetitivo em alto volume. A professora, irritadíssima, leva-o, segurando seu braço, até a cadeira do professor. Grita: - Agora fica aqui! Quero ver você bater, vai bater? Bate agora! (E, bem perto dele, fala baixo): Quem manda aqui sou eu!.

(27) 26. Ele parece não se importar. Sorri, faz perguntas a ela, se levanta duas vezes e ela, bem perto dele, manda sentar. O barulho continua. A aula termina e a professora sai – levando o menino.7. A infância se liga ao espaço e também ao tempo em que vive. A compreensão da infância como uma estrutura linear se baseia no desenvolvimento temporal, ignorando a diversidade presente na temporalidade. Em um tempo institucionalizado, as crianças devem aprender um. conteúdo determinado,. desconsiderando a temporalidade de cada um – leva-se em conta o tempo, e não a temporalidade. No entendimento da espacialidade como construção de relações, surgem os rompimentos. Nele a temporalidade está presente. As vivências sociais, espaciais e temporais criam singularidades. As crianças, em suas vivências espaciais, subvertem o uso prescrito de lugares e de equipamentos, suas formas e funções, a todo momento. Usam espaços que lhes são vedados, apropriando-se deles quando não há adultos por perto. Essa apropriação de espaços não parece ter necessariamente uma intenção de confronto com as regras estabelecidas pelos adultos. Ao brincar, crianças reinterpretam os espaços, utilizando-os para fins que não aqueles para os quais se destinam (como, por exemplo, ao subir no escorregador pela rampa e descer pela escada, ou ao entrarem e saírem pelas janelinhas das casinhas de brinquedo). A concepção do espaço físico pelo adulto, nesses casos, não coincide com sua utilização pelas crianças. As crianças não vivenciam o mundo como o adulto ou a escola desejam que elas vivenciem – criam suas próprias vivências. Tudo isso gera conflito. Para tentar minimizar ou impedir que as crianças ajam de modo distinto do determinado, os adultos criam rígidas normas disciplinares, que trazem em si o entendimento do corpo como matéria a docilizar, como invólucro imperfeito, sede da cognição ou da alma – algo a ser dominado, adestrado. Com esse intuito, criam-se mecanismos de controle e exigências de correção moral e cognitiva.. 7. Nota de Campo, gravada em áudio no dia 29/05/2008 e posteriormente transcrita..

(28) 27. A professora-memória O pátio da escola tem uma linda casinha de madeira. E muitas regras para brincar: é proibido entrar pelas janelas, é proibido levar areia para o interior da casa, que deve estar sempre limpo, é proibido fechar portas e janelas (assim a vigilância fica facilitada). É uma casa para crianças, com regras do mundo adulto.. “Quando eu lia contos de fada, ficava imaginando que esse tipo de coisas nunca acontece e agora estou aqui no meio de um!” (Alice) “Cortem-lhe a cabeça!” (Rainha de Copas). Escola: forma? informa? conforma? deforma? “A escola é um lugar bom” 8. A escola é um lugar bom? O que é um lugar bom? A apreciação da criança entrevistada, ouvida também nas falas de outras crianças da escola pesquisada, traz consigo um modo de estar na escola encontrado com freqüência em falas de crianças e de adultos, no senso comum. Alice, seguindo o Coelho Branco, caiu em um poço profundo e escuro, numa queda que parecia não ter mais fim. Lembrou-se das coisas que aprendera na escola e a partir delas buscou compreender sua aventura: Quantas milhas teria caído? Em que Latitude e Longitude estaria? Estaria chegando a algum lugar perto do centro da terra? A chegada ao chão mostrou-lhe um mundo pleno de possibilidades: um grande túnel, muitas portas em um quarto cheio de lâmpadas.. 8. Fala de aluno do quarto ano, em entrevista no dia 25/08/2008, gravada em áudio e transcrita posteriormente..

(29) 28. A Escola-Toca também parece cheia de possibilidades. Enfrenta questões semelhantes. àquelas. enfrentadas. por. tantas. outras. escolas. brasileiras. contemporâneas. São conhecidas as fragilidades da instituição escolar, constituídas pela soma das fragilidades das pessoas que a compõem, das estruturas administrativa, econômica, física, pedagógica, profissional, social, política, enfim, da realidade na qual está inserida. A escola, fruto de contingências específicas, recria constantemente sua realidade, atravessada pelas pessoas, pelos conhecimentos, pelas experiências. A escola é frágil, e é também forte e poderosa. É objeto de propaganda política, é esperança de uma vida melhor para famílias de baixo poder aquisitivo, é conquista e orgulho nacional. A escola é frágil, lugar de exercício de saber-poder, de controle e dominação. “A escola é um lugar bom”. Como é bom para Alice estar na toca do Coelho. As crianças entrevistadas na Escola-Toca não verbalizam muito quando são perguntadas de maneira geral sobre a escola. Respondem de modo também geral, usando “bom” ou “ruim”. Ou se referem à sala de aula, a problemas pontuais que identificam de imediato. Para a pesquisadora, fica a impressão de que não responderam à pergunta formulada.. (P) Como é a sua escola? (A1) Boa. Só o quadro tem buraco. (A2) Boa. Meu lugar é ruim, não dá pra enxergar as coisas no quadro e a professora não faz nada. (A3) Boa. O quadro é ruim. (A4) A escola é boa. (P) Como é a sala de aula? (A1) A sala também é boa. (P) Como você se sente na sala de aula? (A1) Bem. (A2) Tem vez que não... (A3) Segunda-feira cansa, é meio ruim... (A4) Eu gosto da sala de aula e dos amigos.9 9. Entrevistas realizadas em 12/08/2008, registradas em Nota de Campo, onde (P) é a Pesquisadora e (A) são alunos entrevistados..

(30) 29. As crianças vão à Escola-Toca em busca de outras coisas, além de estudar. Lá fazem amigos, que brincam e crescem juntos. Na mesma entrevista, expressam isso:. (P) O que você mais gosta de fazer na escola? (A1) Estudar! (A2) Jogar bola. (A3) Bola! (A2) Também é bom encontrar os amigos. (A3) E brincar com os amigos.10. Na convivência com a Escola-Toca pude conhecer um pouco mais de perto alguns dos professores e suas preocupações. Alguns deles fazem parte da comunidade onde se insere a escola, residindo nas imediações e conhecendo problemas que afetam as famílias de alunos.. A Professora Roberta afirma conhecer as casas, as famílias, os problemas dos alunos: - Estou nesta escola desde 1994. Conheço tudo, até o alto dos morros. Quando chega uma criança e diz ‘eu sou irmão de fulano’, eu já sei como é a casa, se a família dá apoio.11. Três horas da tarde: recreio. As turmas se revezam para merendar e brincar no pátio e na quadra. As professoras também se revezam – a cada dia fica uma delas em cada espaço, “tomando conta”. Toca o sino. A Professora Heloísa pára no portão que dá acesso à quadra. A professora fica de pé, fora da cerca da quadra. Cruza os braços e “vigia” o recreio. Comenta: - O tempo no recreio voa quando é meu intervalo, mas quando eu tenho que tomar conta da quadra não passa. 10. Entrevistas realizadas em 12/08/2008, registradas em Nota de Campo, onde (P) é a Pesquisadora e (A) são alunos entrevistados. 11. Entrevista realizada em 14/04/2008, registrada em Nota de Campo..

(31) 30. Um menino vem reclamar que o colega está batendo em todo mundo. - Chama ele aqui! O menino vem e ela o coloca sentado perto dela: - Vai descansar um pouco. E, para mim, explicando: - O pai morreu e a mãe é desandada. Eu fico com pena, porque às vezes nem é ele que provoca, mas já leva a culpa, porque é bagunceiro demais.12. Outros professores da Escola-Toca disseram trabalham em mais de uma escola da Prefeitura ou de outra rede (estadual ou particular). De maneira geral, se dizem insatisfeitos com os salários e com as perspectivas de crescimento na profissão, considerada por muitos desgastante e pouco reconhecida. O trabalho cotidiano com as crianças também é apontado como difícil:. A professora de Ciências afirma sentir dificuldade para fazer com que os alunos respeitem as regras estabelecidas: - Se não ensinar regras desde o prezinho, não consegue nada, nem adianta. Não consegue trabalhar nada de diferente com eles, não é fácil, não.13. É muito comum encontrar professores de Ensino Fundamental cansados e desmotivados com o trabalho. As justificativas são diversas, passando pelos baixos salários, despreparo acadêmico, estrutura física inadequada, material insuficiente, grande número de alunos em sala de aula, desinteresse dos alunos para aprender, desrespeito dos alunos com relação aos professores, violência nas escolas etc. Sylvio Gadelha Costa (2005, p. 1259) reconhece que a profissão docente lida, “[...] como linha de frente, com a dura realidade da miséria, da violência e da exclusão, bem como com seus perversos efeitos”. Esse autor, por outro lado, percebe que a questão tem raízes mais profundas, relacionadas à missão civilizadora da educação, que pressupõe que o professor seja detentor de um saber. 12. Entrevista realizada em 17/03/2008, registrada em Nota de Campo.. 13. Entrevista realizada em 31/03/2008, registrada em Nota de Campo..

(32) 31. e de um poder para converter seus alunos à sua imagem e semelhança. Tal missão é vivenciada pelo professor como um fardo a carregar: A condição esquizofrênica a que são submetidos os professores, tendo que se haver ao mesmo tempo com os imperativos de uma tarefa emancipadora e de uma função disciplinadora, caracteriza-se, entre outros aspectos, pela incerteza, pela desconfiança e por certo rebaixamento de seu status social. (p. 1267).. Uma vez que o professor assume sua tarefa como um fardo a carregar, não lhe é permitido criar, inventar, ousar, mas apenas reproduzir, exercer seu papel civilizador. Vários professores falaram sobre a disciplina na Escola-Toca:. São turmas agitadas, difíceis, mesmo. Tem que saber lidar com a disciplina, senão não dá. Na sala, sempre tem cinco ou seis com problema de disciplina. Se você domina esses, todos aprendem. São terríveis, muito indisciplinados. A gente não consegue aplicar nada de novo.14 São vozes e sons que se repetem na escola à exaustão, dia após dia. Se a princípio causam surpresa, no cotidiano do lugar tudo está, aparentemente, como deveria. Adultos e crianças convivem com os gritos, ameaças, ordens, proibições, apelidos, sem maiores transtornos. E ali encontram prazer e alegria. Vão e voltam, todos os dias, por anos a fio. Rainhas mandam cortar cabeças, pois é sua responsabilidade organizar e governar seu Reino – será esse o fardo de Rainhas e professoras? Ou de Diretoras? Muitas vezes vi a Diretora andando pela escola, conversando com professores, funcionários e alunos. Durante os horários de aulas, sempre que via alunos andando pelos corredores interpelava-os, ou simplesmente mandava-os de volta à sala de aula:. No meu primeiro contato com a escola, a Diretora estava trabalhando em uma sala de aula, com uma turma do quinto ano do Ensino Fundamental, 14. Entrevistas realizadas com Professoras das turmas do quarto ano, em 21/05/2008, registradas em Nota de Campo..

(33) 32. porque a professora havia faltado ao trabalho. A conversa com a Diretora, na porta da sala, foi interrompida por duas vezes para que ela chamasse a atenção da turma na sala (“Eu estou conversando, façam o exercício!”) e para se dirigir a três alunos que passavam pelo corredor: - Podem voltar e vir ANDANDO! E tire este cachecol da cabeça! A voz denuncia “autoridade” – forte e aguda, em tom impositivo. As crianças atendem ao que foi dito, sem, contudo, revelarem maior sobressalto ou preocupação. Continuam sorrindo e conversando. Entram em sala. 15. Em outra tarde, a Diretora abordou crianças que passavam pelo corredor: - Aqui, vão parar de correr? - Tira o chiclete da boca. - Todo mundo pra sala, agora! Da mesma forma, as crianças atenderam, sem sobressaltos, entre risinhos e olhadelas para trás.16. Em entrevista gravada no dia 19/11/2007 e posteriormente transcrita, abordei o assunto com a Diretora:. - Eu vejo sempre crianças andando pelo pátio, como a senhora vê esse fato? - Eu controlo um pouco, pergunto o que estão fazendo, mando voltar para a sala, mas acho que a gente tem que deixar um pouco, não dá pra segurar tantas crianças dentro de sala por tanto tempo.... 15. Textualização a partir da fala da Diretora em conversa no dia 05/11/2007.. 16. Textualização a partir da fala da Diretora em conversa no dia 16/09/2008..

(34) 33. A professora-memória Respeitar os códigos sociais pode não ser muito fácil para as crianças – especialmente quando elas não enxergam neles um sentido. Eu estava terminando uma aula de Educação Física e os alunos saíam para beber água e usar os banheiros. Uma menina saiu de uma sala, sob o olhar atento de sua professora que, da porta, controlava seus movimentos: “Sem correr!”. Passando por mim, a menina perguntou: “Se não pode correr aqui, por que se chama corredor? Devia chamar andador”.... A Rainha de Copas é um dos tantos modos de existir na Escola-Toca. Professoras e Diretora são Rainhas, crianças são Rainhas quando se impõem sobre outras crianças ou mesmo quando resistem às ações de dominação das professoras:. Na sala de aula da Professora Heloísa, um menino se levanta, conversa, faz barulho. Ela o repreende: - Mateus, se você levantar mais uma vez, tá sem aula de Educação Física hoje. E sem dança amanhã. As crianças interferem, desafiando a professora com um tom de riso: - Amanhã não tem dança! - Quando tiver... eu tenho paciência, eu espero!17. A professora-memória Fiz um acordo com as professoras regentes: elas não proíbem os “bagunceiros” de participarem da Educação Física e eu não proíbo os muito quietos de participarem das aulas de Português, Matemática etc.. 17. Nota de Campo do dia 14/05/2008..

(35) 34. Em sala de aula, surpreendeu-me a naturalidade de professoras que, na minha presença, ameaçavam as crianças:. Para um menino que conversa, a Professora diz: - Cacá, fecha a boca senão vai entrar mosquito da dengue aí. Eu me torno parte da ameaça: - A moça tá anotando lá. Depois, como é que vai ficar a situação? O menino: - Fessora, eu já falei com ela [comigo] que a nossa sala é meio enjoada. A professora fala para mim: - Viu quanta coisa pra sua pesquisa? E sem planejar... Cacá, chamado de bebê pela professora algumas vezes na mesma aula, em um determinado momento responde: - Eu não sou bebê...18. As estratégias criadas pelas professoras para controlar as crianças são muitas. A professora de Ciências escreve nomes de alunos no quadro: No canto do quadro, estão escritos quatro nomes: Eduardo, Luan, Carlos, Caio. Na hora de sair para o recreio, ela reconsidera: - Vou dar uma segunda chance, todos podem sair, mas se não se comportarem bem não vou dar mais chance...19. Em notas de campo, nas duas turmas, foram registradas posturas de aceitação passiva:. Uma menina chora baixinho. A professora pergunta, em voz alta, num tom ameaçador: - Stephanie, por que você tá chorando? Se não falar, não vou saber. Tá com dor de cabeça? Tá triste? Teve sonho ruim? Brigou com o namorado? 18. Nota de Campo do dia 14/05/2008.. 19. Nota de Campo do dia 29/05/2008..

(36) 35. A menina, de cabeça baixa, soluçava, sem emitir um só ruído. A professora: - Aí, fiz todas as perguntas normais. Se ela não responder, todo mundo vai ficar sem Educação Física. As crianças se preocupam – não querem perder a aula. Uma menina se dirige em voz alta a uma colega: - Vai lá e conta pra professora por que ela está chorando. A professora: - Quem sabe o que é? A menina: - A Pamela sabe. A professora exige: - Pamela, vem aqui e me conta o motivo! A menina vai e fala algo no ouvido da professora, que reage em tom irônico: - Ah, é isso? Então, chega, a raiva já passou. Demorou muito pra chorar. A criança continua a soluçar. Não diz nada. 20. O garoto ameaçado de ter o cabelo cortado apenas abaixou a cabeça e voltou na semana seguinte com os cabelos muito curtos... Em entrevista há uma conversa sobre o evento:. - Eduardo, eu estava na sua sala no dia em que a professora disse que você tinha que cortar o cabelo. O que aconteceu depois? - A professora mandou eu cortar o cabelo e a diretora me levou pra cortar. Ela foi na minha casa e mandou a minha mãe cortar. A minha mãe tava ocupada em casa, tomando conta do meu irmão. Aí a diretora me levou no salão e mandou cortar. - Quem pagou? - Ela. - O que você achou disso? - Ah... achei bom... 20. Nota de Campo do dia 09/06/2008..

(37) 36. - Você gostava do seu cabelo comprido? - Ah, eu gostava, sim... - Qual você preferia? - Grande. - Agora já cresceu um pouquinho, você vai deixar crescer de novo? - Não... - Por quê? - Porque ela vai mandar cortar de novo. - Você lembra de como a professora falou pra você cortar o cabelo? - Não... - E você não achou ruim cortar? - Não... Eduardo mora no Bairro Aeroporto e tem cinco irmãos – quatro meninos e uma menina. Tem doze anos – os outros entrevistados têm dez anos. A forma como a professora se dirigiu a ele para exigir que cortasse o cabelo me marcou na pesquisa de campo. O relato sobre a ação da diretora no caso foi também para mim impressionante. Mas o que de fato me causou surpresa e incômodo foi a reação do menino ao corte de cabelo contra a sua vontade. Poucos dias depois, diz não se lembrar da ameaça feita pela professora e não se incomodar com o fato. E está decidido a não deixar o cabelo crescer novamente (“porque ela vai mandar cortar de novo”...). 21. Algumas crianças respondiam à professora em tom de enfrentamento. Muitos alunos conversavam e se levantavam da carteira sempre que percebiam uma oportunidade para isso – quando a professora estava conversando na porta da sala, ou saía por alguns minutos, ou ainda se virava para o quadro. Alguns quebravam a ponta do lápis propositalmente para poderem ir até o cesto de lixo, apontá-lo. Uma criança, em entrevista, revelou ter aprendido com um colega que, quando a aula está muito chata, é só conversar alto que a professora expulsa – aí ele sai e fica no pátio, até a professora sair da sala para a entrada de outra, responsável por outra disciplina curricular.. 21. Entrevista realizada em 12/08/2008, gravada em áudio e transcrita posteriormente..

(38) 37. A professora-memória O menino de oito anos foi barrado pelo vigia ao tentar sair da escola durante o horário de aulas: - Só pode sair se for autorizado. Minutos depois, voltou com um pedacinho de papel amassado na mão, onde se lia, em letras mal desenhadas: “otorizado”. - E agora, posso ir?. Foi possível observar na pesquisa de campo, nas duas turmas, relações estabelecidas entre cada professora e seus alunos, bem como formas de controle, ameaças, comparações entre crianças, preferências manifestadas por alunos “melhores” e uma total ausência de expectativa em relação àqueles que fogem aos padrões impostos. As tentativas de controlar a turma se justificam pela necessidade de fazer as crianças aprenderem. São bons os alunos que não conversam, não atrapalham e tiram boas notas. Alice é uma das muitas meninas das muitas escolas que poderíamos pesquisar. A escola é um lugar temido e desejado, pleno de encontros e oportunidades, de prazer e dor, da maravilha e controle, de submissão e subversão. Ocupa um lugar importante na vida das cidades, das sociedades e das pessoas (COSTA, 2006). A escola tem seus encantos e atrativos, suas bruxas, fadas e rainhas. A Rainha de Copas ameaça. Mas contemos com o Grifo: ela nunca executa ninguém: "Tudo é fantasia dela. Eles nunca executam ninguém, sabe? Vamos!" (CARROLL, 2002, p. 35). Para escapar ao controle, é preciso ter uma chave. A chave do tamanho pode realizar o desejo de Alice: crescer e diminuir, de acordo com o tamanho das portas que encontre. Para estudar a disciplina, o poder, o controle, a resistência, Michel Foucault tem uma chave. Servirá, certamente, para abrir algumas portas....

(39) 38. A CHAVE DO TAMANHO: DISCIPLINA, PODER, CONTROLE, RESISTÊNCIA “Alice agora era quase mil vezes maior que o Coelho e não havia razão para temê-lo.” “Dobre sua língua", gritou a Rainha, vermelha de raiva. "Não dobro não!", respondeu Alice. "Cortem-lhe a cabeça!", a Rainha berrou o mais alto que pôde. Ninguém se mexeu. "Quem se importa com você?", disse Alice. “Vocês não passam de um baralho de cartas!". Este trabalho se propõe a investigar a disciplinarização do corpo da criança na instituição escolar. Busca identificar e compreender formas de resistência e aceitação de crianças a mecanismos de controle e de disciplinarização no espaço escolar. Em Michel Foucault, encontra subsídios para a compreensão das relações de poder entre o adulto e a criança, da docilização do corpo infantil, do estatuto da escola como instituição investida de poder disciplinar e da constituição de modos de existir no espaço escolar. Foucault estuda as relações de poder por meio do que denominou genealogia. Foucault se propõe a fazer uma história das muitas interpretações que são contadas e que têm sido impostas como verdades. “Com isso, ela [a genealogia] consegue desnaturalizar, desessencializar os enunciados que são repetidos como se tivessem sido descobertas e não invenções.” (VEIGA-NETO, 2005, p. 71). A genealogia de Foucault focaliza o corpo como objeto privilegiado de análise e preocupação. O poder disciplinar incide sobre o corpo do indivíduo; o biopoder é a atuação contínua do poder sobre o corpo da população, sobre grandes grupos sociais. Deleuze (2004) identifica um movimento das sociedades disciplinares, estudadas por Foucault, em direção às sociedades de controle. Na escola, este movimento pode ser identificado pelas “[...] formas de controle contínuo, avaliação contínua e a ação da formação permanente sobre a escola” (p. 226). Foucault identifica e descreve as dimensões do biopoder, ao dissecar os aspectos desumanizadores da sociedade técnico-científica contemporânea:.

(40) 39. [...] a administração parcelarizada dos corpos, revelada por uma anatomia política em que o corpo humano é tratado como máquina (em especial através dos mecanismos articulados pelo poder disciplinar); a gestão global da vida, posta em funcionamento mediante uma biopolítica da população, na qual o corpo humano é considerado elemento de uma espécie (sofrendo a incidência, basicamente, das práticas de normalização). (MAIA, 2003, p. 78).. A escola, ao conceber os alunos como corpos em conjunto, como “espécie” uniforme e de desenvolvimento previsível, exerce o biopoder – padroniza suas práticas e exigências. Para isso, utiliza-se de um conjunto de tecnologias, que constituem o sujeito moderno:. Tecnologias de produção, que nos permitem produzir, transformar ou manipular coisas; tecnologias de sistemas de signos, que nos permitem utilizar signos, sentidos, símbolos ou significados; tecnologias de poder, que determinam a conduta dos indivíduos, submetem-nos a certos tipos de fins ou de dominação, e consistem numa objetivação do sujeito; tecnologias do eu, que permitem que os indivíduos efetuem operações sobre seu corpo e sua alma, pensamentos, conduta ou qualquer forma de ser, obtendo uma transformação de si mesmos, com o fim de alcançar certo estado de felicidade, pureza, sabedoria ou imortalidade. (FOUCAULT, 1991 apud VEIGA-NETO, 2005, p. 100-101).. O saber, sob a ótica de Foucault, é transmissor e naturalizador do poder, à medida que todas as pessoas envolvidas no processo de saber consintam nas ações, participem, sejam ativas e o compreendam como natural, necessário. O poder, assim constituído, não é violência, é ação sobre ações.. O poder deve ser analisado como algo que circula, ou melhor, como algo que só funciona em cadeia. Nunca está localizado aqui ou ali [...] O poder funciona e se exerce em rede [...] Em outros termos, o poder não se aplica aos indivíduos, passa por eles. (FOUCAULT, 1985, p. 183). Para Foucault, o poder é o elemento capaz de explicar como se produzem os saberes. É dele também a reflexão de que o poder não apenas proíbe e reprime: há outra face do poder – a sua capacidade de produzir saberes e prazeres:.

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