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1. CAPÍTULO I – O OLHAR SOBRE OS SERES VIVOS DA ANTIGUIDADE À IDADE

1.2 O CONTEXTO DA IDADE MÉDIA

1.2.3 O S ÉCULO XV

No século XIV o grande Império dos califas de Bagdá no oriente era apenas uma sombra. Em Tunis, nascia Ibn Khaldun, que estudou as condições econômicas, sociais, políticas do norte da África a partir das observações empíricas descrita em seus ―Prolegomênes‖, a principal obra sobre a Ciência da História desde Tucídides (LACOSTE, 1966). Logo após este período os turcos otomanos ocuparam o mundo árabe e assumiram definitivamente a rigidez do pensamento conservador dos doutores da lei. A partir de então a ideologia produzida pelos europeus, rivais dos interesses muçulmanos na África e na Ásia, procurou distanciar o pensamento árabe do europeu, desvalorizando o papel dos filósofos do Islã na construção da filosofia europeia (HOURANI, 1994).

Na Europa, os artistas, durante o século XIV, inventaram a perspectiva baseada numa teoria grega interpretada e ampliada pelo físico árabe Al- Haytham (CROSBY, 1997). No século XV, por sua vez, a pintura se aproxima da

matemática. É dessa combinação entre o artista e o conhecimento dos materiais necessário à sua arte que nasce Leonardo da Vinci, sintetizando a união entre o saber teórico, a execução prática e a experiência, emergente na renascença (ROSSI, 1971). A geometrização do espaço expressa uma nova forma de representar e conceber o mundo. A partir daí, os artistas, principalmente italianos, partindo dos clássicos gregos e árabes, criaram a perspectiva no desenho, possibilitando a matematização do espaço. Influenciado pelo pensamento grego clássico e pelos últimos filósofos bizantinos, os pensadores italianos, como uma reação à escolástica, passaram a elaborar um pensamento humanista.

Por outro lado, em torno do início do século XV, o sistema feudal caminhava para o esgotamento indicando transformações radicais. De fato, eram as condições objetivas da Europa que exigiam tais mudanças. O modo de produção feudal não respondia mais à economia, a sociedade e a política europeia. Comerciantes e banqueiros tomavam o poder do clero e da nobreza enquanto as cidades cresciam em detrimento dos feudos. A mão de obra servil era substituída pelo trabalhador assalariado em função da demanda por manufaturas vinda de uma burguesia ascendente. Os turcos otomanos haviam tomado Constantinopla, estabelecendo novas taxas comerciais para o comércio de produtos asiáticos e seus exércitos ocupavam a Europa central. Neste cenário emergem a navegação portuguesa e espanhola.

A questão da navegação foi fundamental para as transformações

que culminariam na revolução científica do século XVI ao XVIII. Isto porque, durante o século XV, Dom Henrique, príncipe de Portugal, contratou mestres judeus, árabes e italianos para um projeto nacional de navegação. Os trabalhos produzidos por este grupo se basearam na mistura entre o conhecimento teórico dos matemáticos, geógrafos, astrônomos e as práticas da construção de instrumentos de precisão, de canhões, de construção naval, de mapas e as técnicas de navegação (BENSAÚDE, 1914).

E, o novo mundo descoberto trouxe consigo novas interrogações. Questões que a escolástica não conseguia responder (ALMEIDA, 2000). Assim as navegações colocaram em questão a autoridade medieval sem apresentar um novo paradigma. Era uma prática experimentalista sem sustentação teórica e, ao mesmo

tempo, uma nova percepção de mundo sem uma cosmologia definida (NASCIMENTO JÚNIOR, 2003).

A partir do período das navegações, quando os europeus entraram em contato com a extraordinária flora e fauna das regiões da América, África e Ásia, a escala gradual e perfeita assumida começou a se mostrar insuficiente para explicar a origem e o propósito da existência dos seres vivos (PAPÁVERO; TEIXEIRA, 2001).

As novidades trazidas desse novo mundo tornaram-se textos de viagem de interesse geral e humanista. Muitas obras foram escritas, descrições históricas e geográficas, cartas diplomáticas, romances e poemas, todas a partir das informações desses navegadores (RADULET, 1992). E, um novo universo construído por artesãos, arquitetos, engenheiros, artistas, navegadores e filósofos foi se colocando aos olhos dos europeus.

Quando os canhões começaram a exigir cálculos para se prever e ajustar a trajetórias de suas balas, o modelo aristotélico não conseguiu responder adequadamente ao problema. As trajetórias desenhadas segundo a ideia do movimento proposto por Aristóteles não se revelou correta. O modelo estava, pois, errado. Os cálculos necessitavam de outro modelo de explicação do mundo o qual pudesse descrever corretamente o comportamento das balas de canhão e prevê-las adequadamente. Foi o matemático Tartaglia, em suas obras Nuova Scientia (de

1537) e Quesiti et inventioni diverse (de 1546) quem, pela primeira vez, formulou as

questões matemáticas capazes de solucionar tal problema (GUTIÉRREZ, 2007). Outras tantas situações no mundo europeu apresentaram desfecho semelhante. O mundo escolástico-aristotélico era insuficiente para explicar a complexidade do mundo do século XVI.

Assim, as condições sócio-históricas da Europa a partir do século XVI favoreceram a produção de um tipo de conhecimento capaz de responder as necessidades da época, diferente daqueles até então produzidos. Por todas essas mudanças se inicia a construção de um novo universo, um novo método, um novo conjunto de conhecimentos e uma nova comunidade de pensadores.

Os canhões da artilharia turca e dos navios portugueses e espanhóis silenciaram os tempos feudais, expandem o mundo e, associados a toda

a Europa, iniciam uma nova era – o capitalismo mercantilista (NASCIMENTO JÚNIOR, 2003).

Também nasce um tipo novo de conhecimento oriundo da fusão entre a visão de mundo e o método do entendimento das coisas (que vem da filosofia) dos manuais práticos da agricultura, mineração, agrimensura, navegação, construção de armas; da construção de mapas; das descobertas das representações pictóricas em perspectiva; para as soluções matemáticas para a navegação e balística. Um conhecimento que funde a teoria filosófica com a prática dos manuais iletrados com preocupações de resolverem problemas concretos acerca dos fenômenos naturais (NASCIMENTO JÚNIOR, 2003).

O final do feudalismo foi também o final do pensamento escolástico que o legitimou. O modo de produção capitalista modificou e introduziu novos elementos no olhar sobre a natureza. Novas máquinas de guerra, nova organização econômico-financeira, nova espacialização demográfica e geográfica, modernização do sistema de produção acenaram para a elaboração de uma nova visão de mundo e, consequentemente, de natureza. Se outrora a velha escolástica proclamava a natureza como uma expressão divina, as novas ideias a colocavam a serviço do homem.

A Igreja católica, que, se utilizava da cosmologia aristotélica como forma de explicação do mundo, começou a perder o seu papel de sustentáculo ideológico do feudalismo. Ao ruir a rígida hierarquia clero – nobreza / homem livre – servo, o rígido sistema astronômico-físico aristotélico, também se desfez.

Em seu trabalho ―As Filosofias do Renascimento” (publicado em 1971), Heline Védrine discute essa nova concepção do mundo. Nicolau de Cusa, Marcelo Ficino, Pico Della Mirândola e Pomponazzi são alguns dos mais ilustres neoplatônicos e aristotélicos em franco desentendimento com a escolástica. Os constantes choques entre a fé e a razão acabam por liberar essa última da primeira.

Embora não sendo matemático, Nicolau de Cusa prenuncia uma concepção matemática do mundo considerando que Deus criou tudo com conta, peso e medida. Afirma também que o sol e não a terra encontra-se no centro das esferas terrestres. A estrutura matemática dessa nova concepção do mundo é apresentada por Copérnico. Assim, o sistema astronômico de Ptolomeu está abalado. Mas, se a Terra não é o centro do universo por que pensar num novo

centro? Por que pensar em um universo finito, fechado e limitado como diziam Platão e Aristóteles? O universo não pode ser infinito? Com esta questão Giordano Bruno em sua obra ―Sobre o Infinito, o Universo e os Mundos” (de 1584) abala a física aristotélica e acaba condenado à fogueira.

A velha ordem das coisas está sendo atacada por muitos pensadores como Erasmo de Roterdan, Rebelais e Montagne enquanto outros como Lutero, Calvino, Tomas Morus e Maquiavel apresentam novas propostas e novas explicações. A Igreja perde terreno para os comerciantes e os banqueiros. Os camponeses migram aos milhares para a cidade inviabilizando a produção auto- suficiente dos feudos porque o modo de produção feudal não é mais compatível com a realidade europeia. As corporações de artesãos se proliferam em função do crescimento urbano e o trabalho manual atinge posição de destaque nesse período.

Assim, o ser humano, outrora assustado e submetido o inexorável poder de um Deus cuja Igreja católica é seu representante na Terra e se utiliza da cosmologia aristotélica transformada em doutrina como forma de explicação do mundo, começa a se libertar. É o renascimento e o homem renascentista é livre sem ser preciso ser religioso ou nobre, basta que seja rico. A liberdade do homem se reflete no seu conceito de universo, a igreja reage, e perde.

Enquanto os artesãos produzem técnicas e instrumentos cada vez mais importantes para a estrutura econômica e social europeia, os filósofos, na trilha de Copérnico, pesquisam uma nova ordem no universo outrora aristotélico. É nesse cenário que surge Kepler, essencial no duelo entre a concepção copernicana e a concepção ptolomaica da astronomia e da física. Kepler, que, influenciado por Tycho Brahe, retoma a geometria das secções côncavas de Apolônio de Pérgamo (CHASSOT, 1994). Ele substitui o Cosmo de Aristóteles e Ptolomeu por um Universo regido por leis matemáticas estabelecidas por um Deus platônico (KOYRE, 1951). Nesse duelo, como ressalta Koyré (1973), o que importa é a substituição do Cosmo estruturado e hierarquizado de Aristóteles por um Universo regido pelas mesmas leis em toda a sua extensão. No entanto, para Koyré (1973), Kepler é um filósofo tipicamente renascentista cuja grande novidade é a ideia de que todo o universo é matemático e regido pelas mesmas leis, à maneira de Platão o Deus de Kepler constrói o mundo de forma geométrica.

Assim, a concepção do novo cosmo estava ―quase‖ pronta. Os filósofos renascentistas o elaboraram matemático e mensurável e os artesãos já possuíam técnicas para a construção de instrumentos capazes de medi-lo. A ideia da medida já amadurecera entre os geógrafos, os navegadores e os agrimensores. E, o modo de entender suas particularidades através da experimentação também já estava presente entre os navegadores, artistas e outros mestres artesãos (NASCIMENTO JÚNIOR, 2003).