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O Éden gnóstico

No documento Flavia Santos Arielo.pdf (páginas 102-108)

2. Éden: o jardim do Anticristo

2.3 O Éden gnóstico

Segundo Hans Jonas, “Lidamos com um princípio não mal, mas sim inferior e degenerado, como a causa e a essência da criação” (2001, p. 132, tradução minha). Marcião também acredita que o mundo é espelho de deus: “A sabedoria do criador do mundo coincide com a sabedoria do mundo” (HARNACK, 1990, p. 72). O mundo gnóstico prevê o Éden como antecipação do que estaria por vir: o caos. A Eva gnóstica desempenha um papel completamente diverso daquele contemplado pelo cristianismo vigente em nossos dias41: Eva fora criada diretamente por Sofia (pistis) e em algumas versões é chamada de “a mulher espiritual” (NHC II 5, 113 (161), 32-34 apud RUDOLPH, 1987, p. 97, tradução minha), exibindo um papel impressionante de “mãe da vida”, como também “mãe de Adão e de toda humanidade” (RUDOLPH, 1987, p. 97, tradução minha). Em outras passagens, Eva também aparece como “virgem, esposa e mãe em uma única pessoa, representando também o aspecto feminino do reino da luz” (RUDOLPH, 1987, p. 97, tradução minha). Em outras palavras, Eva desempenha um papel extraordinário no Jardim do Éden gnóstico, garantindo um caráter novo em relação ao cristianismo tal qual reconhecido hoje.

Esse papel de Eva, ou seja, da primeira mulher, é de fato repensado por Lars von Trier em Anticristo, afinal, não há como negar o destaque que o diretor dá à personagem feminina no filme – a Eva (inominada).

41 Esta dissertação visa dialogar com determinados conceitos míticos a partir das chaves judaico-cristã e

gnóstica. Em se tratando de mito, se está no universo simbólico, o que permite maior abrangência de significados.

101 É importante relevar algumas diferenças entre as “Evas” aqui expostas, levando em consideração o papel “luminoso” da Eva gnóstica em contraposição à Eva “sombria” de Trier. Mas comparativamente, as mulheres primordiais, em ambos os casos, são detentoras do conhecimento. A Eva gnóstica é comparada, em determinados textos, à serpente do paraíso:

O segundo ato da Iluminação de Adão segue no Jardim do Paraíso, com a ajuda da serpente, que, como na encarnação do “instrutor” bissexual (que é um produto da Eva espiritual) desempenha um papel totalmente positivo, a famosa "árvore da maçã" é o símbolo gnóstico do bem supremo Deus. No Hypostasis dos Arcontes a "mulher espiritual" é ativada também na forma da serpente (NHCII 4,89 (137), 31-90 (138) apud RUDOLPH, 1987, p. 97 tradução e grifos meus).

Neste trecho é possível perceber duas grandes simbologias presentes na construção da ideia de Éden: a serpente e a árvore do conhecimento. A primeira é comumente aceita como o início da Queda, a tentação em forma de animal que incita a mulher a comer do fruto proibido. Em algumas versões bíblicas, a serpente aparece como o próprio mal:

Mas a serpente, mais sagaz que todos os animais selváticos que o Senhor Deus tinha feito, disse à mulher: É assim que Deus disse: Não comereis de toda árvore do jardim? (...) Por que Deus sabe que no dia que dele comerdes se vos abrirão os olhos e, como Deus, sereis conhecedores do bem e do mal (Gn 3, 1.4).

O que está em jogo nesses dois trechos é exatamente a discussão em torno do conhecimento – daquilo que deve ou não ser conhecido. A versão bíblica cita a serpente como o animal sagaz que instiga a desobediência em Eva, se colocando contra os preceitos de Deus. Na versão gnóstica, a serpente é a própria mulher e desempenha um papel positivo, que é o desejo de se chegar ao conhecimento; há que se lembrar de que na tradição gnóstica, chegar ao conhecimento (gnosis) é o destino primordial dos homens. A doutrina da redenção gnóstica se dá apenas através da apreensão da gnosis.

102 2.4 “A escuridão chega cedo aqui”: o Éden cinematográfico de von Trier

“Ignorância é escuridão” (RUDOLPH, 1987, p. 113, tradução minha). É neste ponto que habita a maior relação da personagem feminina do filme com a Eva gnóstica: a personagem, assim como Eva, sabe e tem o conhecimento de como o mundo realmente é. No primeiro diálogo em que essa ideia aparece, a mulher está em meio a uma crise gerada pelo luto. O marido então afirma que se trata de uma nova fase, a da ansiedade. A mulher rebate: “Isso é físico. É perigoso”. O homem não leva a sério, continua a analisá-la sob a ótica psicológica: “Não é perigoso, assim como seu sofrimento não era perigoso”. Em outra passagem, a mulher afirma: “A escuridão chega cedo aqui. Eu adentro a escuridão” (imagem 8), se referindo ao Éden, numa clara menção àquilo que ela já conhecia, mas que o marido preferia ignorar42. Nesse ínterim, escuridão e luz se contrapõem em relação ao conhecimento: enquanto para a Eva gnóstica o conhecimento representa luz, para a Eva de von Trier, o conhecimento levou-a diretamente para um jardim sombrio, repleto de medo e sofrimento.

Imagem 8

O Éden cinematográfico de Trier é carregado de escuridão e aquilo que deveria ser belo se torna insustentável, como na fala da mulher: “Eu me dei conta de que tudo que eu achava bonito no Éden, talvez fosse repulsivo”. Boa parte das cenas

103 edílicas é escura, e quando há luz, esta garante a dicotomia entre o bem e o mal dentro do Éden. Lars von Trier cria a atmosfera perfeita para a morada dos personagens num mundo onde reina o Anticristo: a mata faz a mulher estremecer de pavor, as árvores têm troncos retorcidos e caem sem motivação, os animais sofrem. E o maior símbolo do Éden cristão se faz presente de maneira agressiva: a árvore do conhecimento é um tronco grosso e ressequido, sem frutos, sem vida (imagem 9). Na interpretação da personagem do filme, a árvore “tem uma estranha personalidade”. Mais uma dicotomia pode ser observada nessa cena/fala: a árvore do bem e do mal do Jardim do Éden se transformou apenas na árvore do mal; o bem foi esquecido, sonegado, apartado do jardim. O conhecimento extraído do Éden pela mulher é infrutífero e, ao contrário do pensamento gnóstico, parece não trazer redenção.

Imagem 9

Se for levada em consideração a ideia cristã de Éden, von Trier - apesar de toda teoria gnóstica em relação ao mal - faz jus à tradicional ideia de pecado original. Se fora naquele momento, em que Adão e Eva aceitaram comer da árvore do conhecimento, que o mal surgiu, então o diretor dinamarquês não deixa de fazer referência a isso também em seu próprio Éden: o caos está estabelecido no Éden de von Trier quando o conhecimento se faz sabido pela mulher, assim como o pecado se estabelece na humanidade a partir da ingestão do fruto proibido. Há uma clara referência de que, na verdade, o mal seja em si a natureza do homem, como pensado

104 pelos gnósticos, contudo, através das lentes cinematográficas de von Trier, esse fato só aparece quando a mulher se dá conta dessa complexa equação, ou seja, a partir do momento em que ela se torna consciente da origem do mal que a absorve e envolve.

3. A Natureza

Porque sabemos que toda a criação a um só tempo geme e suporta angústias até agora. (Rm 8, 22)

Dissertar sobre a natureza pode remeter inicial e diretamente às belezas presentes em nossa vida, geradoras de um sentido ordenador do mundo, ao menos até a modernidade: “A natureza proporcionava uma essência a ser realizada, um critério de sucesso e fracasso” (CABRERA, 2006, p. 112), como apontavam os filósofos até a chegada do iluminismo e a volta do racionalismo. Uma catástrofe natural durante a Idade Média poderia ser interpretada como o crescente dilaceramento moral dos homens que ali viviam e que, exatamente por esse motivo, estavam a receber a correta repressão divina. Leituras semelhantes foram feitas sobre a destruição da cidade de Pompéia, na Roma Antiga e não há como deixar de lado, um pouco mais longe, Sodoma e Gomorra, na narrativa bíblica judaico-cristã (Gn 19, 23-29), representando a destruição pelo fogo de uma cidade tida por imoral. Nesse sentido, ter sucesso “moral” remeteria diretamente a habitar um ambiente integrado pela beleza e harmonia que a natureza é capaz de proporcionar: verdadeiros paraísos em cartões postais do mundo atual. Ou seria assim ou o fracasso moral passaria a ser demonstrado a partir da grande revolta da natureza.

Mas conectar diretamente mal natural e mal moral já aparece em desuso (ou foi melhor debatido) a partir de um específico momento na história europeia: o terremoto de Lisboa em 1755. Eis o momento em que filósofos passaram a questionar essas atribuições divinas a atos morais,

105 Desde Lisboa, os males naturais não tem mais nenhuma relação aparente com os males morais; portanto, não têm mais nenhum significado. Um desastre natural é objeto de tentativas de previsão e controle de interpretação (NEIMAN, 2003, p.275).

À época, Voltaire dedicou um poema ao assunto e desta forma, a corrente iluminista francesa se prestava a repensar os atributos dos males morais, apartando- os dos males naturais, chegando a conclusões parciais tais como “Nós nascemos e morremos, e entre esses dois acontecimentos nossos poderes de controlar a natureza são severamente limitados” (NEIMAN, 2003, p.110). A natureza, por fim e nesse sentido, ficaria a cargo da contingência e nada mais.

Um dos temas abordado por Lars von Trier nesse longa-metragem – implícita e explicitamente - é justamente o questionamento sobre a natureza. Em princípio, para o espectador mais afoito, a ideia de natureza parece girar em torno daquilo que conhecemos como natureza física: a fauna e a flora. Mas com o desenrolar do enredo, é perceptível que o debate vai de encontro a este e para além: os personagens de Anticristo atravessam o problema que muitos filósofos debateram ao longo dos séculos sobre a nossa própria origem como ser, criatura, produto; afinal, qual é a origem de nossa natureza? O homem seria elementarmente bom ou mal? A natureza humana pode ser modificada ou somos exatamente aquilo que fomos forjados para ser? Anticristo aprofunda o debate, argumentando através de um ponto de vista bastante conturbador (e claro, questionável como todos): a natureza humana foi traçada pela maldade, principalmente se formos criaturas de um deus mau.

A discussão sobre a natureza do homem não é conclusiva e continua a ser amplamente abordada. Filósofos, teólogos, historiadores, psicólogos, cineastas, cada qual apresenta suas hipóteses em relação àquilo que crê – ou julga acreditar, seja cientifica ou metafisicamente. A discussão em torno desse assunto interessa particularmente a este trabalho por dois motivos: primeiramente, porque tecer um debate sobre a natureza humana é falar necessariamente sobre a origem do mal; se o homem foi gerado a partir de um princípio maléfico, fica explícita a origem do sofrimento no mundo; do contrário, não haveria explicação suficientemente sólida para justificar o mal. Ainda assim, houve tentativas de explicar a presença do mal no

106 mundo sendo Deus e o homem naturalmente bons; ou, como afirma Susan Neiman ao se referir aos estudos de Rousseau: “O mal é de nossa própria lavra, mas não somos inerentemente perversos”(2003, p.58). Em segundo lugar (e tão importante quanto o primeiro), o filme elucida uma teoria sobre o assunto e é esse o princípio da reflexão: uma teodiceia negativa a partir da visão gnóstica.

3.1 A natureza física de Anticristo: o sopro do Anticristo e o caos entre os

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