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ÉDIPO-REI: ENCARNAÇÃO DA ARETE E EXEMPLO DE VIVÊNCIA

1 ARETE E CATARSE: DOIS CONCEITOS PRESENTES NA FORMAÇÃO DO

1.2 A CATARSE NA TRAGÉDIA GREGA: VIVÊNCIA EFICAZ PARA A

1.2.1 ÉDIPO-REI: ENCARNAÇÃO DA ARETE E EXEMPLO DE VIVÊNCIA

Édipo é herói de uma lenda tebana na qual Sófocles (1990) baseou-se para escrever sua tragédia imortal, Édipo-Rei. Édipo é filho de Laio e Jocasta, soberanos de Tebas. Laio, ao casar-se com Jocasta, recebe um terrível veredicto de um oráculo: seu filho único, fruto desse matrimônio, cometeria parricídio e incesto, casando-se com a mãe. Sendo assim, Laio e Jocasta resolveram eliminar a criança logo após seu nascimento. Para tanto, entregaram-na a um pastor de Tebas a fim de que este a matasse. Tal pastor, para cumprir a sentença dos reis, dirigiu-se com a criança para o monte Citeron, mas, lá, apiedado por ela, ao invés de matá-la, furou-lhe os pés, trespassou estes com uma corda e assim pode amarrá-la em uma árvore para que as aves de rapina consumassem o infanticídio.

Um pastor de Corinto, ao passar por ali, viu a criança pendurada pelos pés e, por piedade, resgatou-a para levá-la à sua cidade. Mérope e Políbio, reis de Corinto, não tinham filhos, então o pastor entregou-lhes a criança e eles a adotaram como filho legítimo, sem nunca lhe revelar o segredo de sua origem. Édipo, criado por Mérope e Políbio, cresceu protegido pelo carinho dos pais adotivos. Quando adulto, ouviu num banquete de um convidado bêbado a notícia de que não era filho legítimo dos reis de Corinto. Angustiado com o que ouviu, mesmo depois de tal versão ter sido desmentida por seus pais, procurou um oráculo e este disse-lhe uma predição terrível: seria parricida e incestuoso e, de seu matrimônio com a mãe, nasceria uma prole nefanda.

Para fugir do destino, o herói tebano resolveu distanciar-se de Corinto para sempre. Em viagem, teve uma discussão, numa encruzilhada, com um velho

acompanhado de escolta. Édipo, na luta, matou o velho e dois guardas que o acompanhavam. O terceiro destes fugiu. Nesse momento, sem que soubesse, o herói começara a cumprir seu destino, pois o velho morto em combate era Laio, rei de Tebas, seu verdadeiro pai. Prosseguindo viagem, Édipo aproximou-se do território tebano e quase chegando às portas da cidade, soube da existência da Esfinge, monstro que propunha aos que ali passassem enigmas de difícil solução, eliminando aqueles que não os resolvessem. Creonte, irmão de Jocasta, sucessor de Laio, anunciara por toda a Grécia que daria a coroa e a mão da rainha viúva a quem fosse capaz de livrar Tebas desse castigo.

Édipo enfrentou a Esfinge e foi por ela desafiado com o seguinte enigma: “Qual é o animal que, pela manhã, anda com quatro pés, ao meio-dia com dois e, pela tarde, com três pés?”. O herói encontrou a resposta: “é o homem que na infância engatinha, na maturidade anda sobre seus dois pés e, na velhice, apoiado por um bastão”. (PELLEGRINO, 1987, p. 307). A esfinge, despeitada, precipitou-se no abismo e o herói, recebendo a mão de Jocasta, passou a reinar em Tebas. Do matrimônio incestuoso nasceram quatro filhos: Polinice, Eteocles, Ismênia e Antígona. Durante anos, Édipo reinou em paz, até que uma peste devastadora atingiu o país. O oráculo, ao ser consultado, revelou que tal epidemia era consequência do fato de os tebanos não terem vingado a morte de Laio. Édipo, então, ordenou investigações rigorosas que por fim o levaram a reconhecer-se como parricida e incestuoso. Jocasta, desesperada, enforca-se e Édipo, ao ver a mãe morta, arranca de seu manto um broche e com a agulha deste dilacera seus olhos, tornando-se cego.

Segundo Jaeger (2003), em Édipo-Rei, Sófocles consegue a representação mais comovedora. Exilado da pátria e cego, o velho Édipo vagueia pelo mundo, esmolando por meio da mão de sua filha, Antígona. “Esse homem, sobre quem parece desabar o peso de todas as dores do mundo, foi desde o início uma figura da mais alta força simbólica”. (JAEGER, 2003, p. 333). De acordo com o helenista, Sófocles é o criador inato de caracteres, pois construiu figuras humanas de carne e osso, repletas de paixões violentas e dos sentimentos mais ternos, de grandeza heroica e altiva e autêntica humanidade, semelhantes a nós e, ao mesmo tempo, dotadas de tão alta nobreza. Sófocles, assim, alcança o ponto culminante no desenvolvimento da tragédia. “A tragédia consuma nele a ´sua natureza`, como diria Aristóteles”. (JAEGER, 2003, p. 320).

Jaeger (2003) atesta que, para tal dramaturgo, seus personagens não são homens da realidade cotidiana, mas sim figuras ideais. O mérito do poeta, segundo o historiador, enraíza-se numa dimensão do humano na qual o estético, o ético e o religioso interpenetram-se e condicionam-se reciprocamente, isto é, na tragédia sofocliana e, sobretudo, nos seus personagens, interpenetram-se, de modo especial, forma e norma. Sófocles pode ser considerado um escultor de homens e, sendo assim, pertence à história da educação humana, pois “[...] é na sua arte que pela primeira vez se manifesta a consciência desperta da educação humana”. (JAEGER, 2003, p. 321). Podemos dizer que o dramaturgo pressupõe a existência de uma sociedade humana, para a qual a educação converteu-se no ideal mais alto.

De acordo com Jaeger (2003), o Sófocles tinha uma consciência precisa das normas ideais do Homem, das normas de acordo com as quais o poeta modela e representa os homens “tais como devem ser”. “Sófocles, seguindo a tendência formadora da sua época, dirige-se ao próprio Homem e proclama as suas normas na representação das suas figuras humanas”. Podemos inferir que a arte com que o poeta cria seus personagens é inspirada por um ideal de conduta humana. “[...] Sófocles humanizou a tragédia e fez dela o modelo imortal de educação”. (JAEGER, 2003, p. 321-326).

Dessa forma, conforme expõe o helenista (2003), podemos dizer que dramaturgo liga suas figuras à idealidade, uma vez que encarnam a arete, tal como concebem os educadores de sua época. A questão da arete humana é agora discutida intensamente pelo ponto de vista da educação. Segundo Jaeger, em Sófocles se manifesta o novo ideal da arete, que pela primeira vez e de modo consciente faz da psyche o ponto de partida de toda educação humana. “Esta palavra ganha no séc.V [...] um mais alto significado [...]. A ‘Alma’ é objetivamente reconhecida como o centro do Homem. É dela que dimanam todas as suas ações e toda a sua conduta”. (JAEGER, 2003, p. 327).

Não podemos deixar de dizer que, segundo Aristóteles (1993), Édipo-Rei é a mais bela das tragédias por ser uma obra que se inscreve em toda a variedade de critérios estipulados pelo filósofo e necessários para julgar a qualidade de uma tragédia. Um dos principais critérios, como já foi visto, é a indução à catarse porque esta está diretamente ligada à formação do cidadão e não precisamente em termos morais, mas sim humanizadores. À obra de Sófocles, o filósofo atribui ainda o poder de gerar catarse independentemente do espetáculo. “É mister, com efeito, arranjar a fábula de maneira tal que, mesmo sem assistir, quem ouvir contar as ocorrências sinta arrepios e

compaixão em consequência dos fatos; é o que experimentaria quem ouvisse a história do Édipo”. (ARISTÓTELES, 1993, p. 71).

Com base nos estudos Aristotélicos, podemos afirmar que a obra de Sófocles, Édipo-Rei, é condutora da catarse, pois sua estrutura faz com que haja um encadeamento lógico dos fatos e tal encadeamento permite que percebamos a inocência e a culpa de Édipo, o que, junto a outros fatores, começa a gerar no espectador compaixão pelo sofrimento do herói que é culpado pelo erro -e não por vício- e inocente pela ignorância. O fato de o herói sofocliano ser digno de apreço e ter um caráter que equilibra virtude e vício é que permite que haja a identificação entre ele e o espectador e este só chegará à catarse se, de fato, houver tal identificação.

Édipo desperta a piedade porque sofre e comete horrores devido às circunstâncias e, assim, faz-nos vivenciar sentimentos que talvez nunca tenhamos vivido, mas poderíamos viver. A tragédia de Sófocles apresenta o universal, a essência da vida humana, a possível passagem da felicidade ao infortúnio e o viver e o reviver apesar das peripécias. A concentração do destino de Édipo, em um breve curso dos acontecimentos, gera um efeito instantâneo no espectador porque este vive o que poderia viver, sente piedade e horror, tem suas paixões despertadas ao mesmo tempo em que o efeito trágico dá vazão a elas, aos seus sofrimentos. Nossa compaixão e nosso horror dirigem-se ao homem que não mereceu sua desgraça e por isso nos sensibilizamos com o horror que a vida do herói se tornara, sentimos piedade pelo infausto que o destino lhe reservou. Expelimos nossas próprias dores e sentimentos ao nos depararmos com o desenlace, enfim, experimentamos a especial sensação de nos colocarmos diante de nós mesmos, do desafio que representa o fato de existirmos.

De acordo com Jaeger (2003), em Sófocles o trágico é a impossibilidade de evitar a dor e, assim, eleva seus grandes sofredores à mais alta nobreza, a uma autêntica grandeza humana, através da completa destruição da sua felicidade ou da sua existência física e social. “O drama de Sófocles é o drama dos movimentos da alma [...]. Para Sófocles, toda a ação dramática é apenas o desenvolvimento essencial do homem sofredor. É assim que ele cumpre o seu destino e realiza a si próprio”. (JAEGER, 2003, p. 332). A dor compõe uma parte essencial do ser das figuras sofoclianas. Conforme atesta Jaeger, para o dramaturgo, a tragédia é órgão do mais alto conhecimento, do conhecimento que engloba a consciência indestrutível e invencível da grandeza do homem sofredor. A consciência de Édipo é que o ajuda a suportar a sua dor.

Para Aristóteles (1993), Édipo Rei ensina o caminho para a virtude, isto é, o caminho para encontrar a disposição de caráter que torna o homem bom e que o faz desempenhar bem sua função social. Édipo desempenha sua função de rei: descobre-se o assassino de Laio, aplica-se a pena merecida -o exílio- e salva sua cidade. Dessa forma, concluímos que a tragédia de Sófocles faz parte da história da formação humana porque, através de seus personagens - grandes figuras humanas, personalidades de caráter inflexível -, aprendemos o viver em sentido universal - uma trajetória inexorável de peripécias e vicissitudes - e um ensinamento ético valioso - uma reflexão sobre uma arete construída na coletividade da polis, sobre as ações humanas, quer na interioridade de cada um, quer no conjunto das relações sociais.