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A abordagem conceitual do éthos é feita por Aristóteles, em sua obra Retórica, visando registrar uma técnica cuja finalidade era estabelecer o que é persuasivo não para este ou aquele cidadão/auditório, mas para tipos de cidadãos/auditórios. Assim, o éthos estaria ligado à própria enunciação, e não a um saber (extra) discursivo sobre o orador; pois para o filósofo, algumas provas de persuasão residiriam no caráter moral deste. No seu entender:

Persuade-se pelo caráter quando o discurso é proferido de tal maneira que deixa a impressão de o orador ser digno de fé. Pois acreditamos mais e bem mais depressa em pessoas honestas, em todas as coisas em geral, mas sobretudo nas de que não há conhecimento exacto e que deixam margem para dúvida. É, porém, necessário que esta confiança seja resultado do discurso e não de uma opinião prévia sobre o caráter do orador. (ARISTÓTELES, 2005, p. 96).

Dentro do conceito de éthos, visando obter essa imagem positiva de si, o orador dispõe de três qualidades essenciais a serem exercitadas: a prudência (phrónesis), a virtude (areté) e a

benevolência (eúnoia). Como afirma Aristóteles (2005), três são as causas que tornam persuasivos os oradores, e sua importância é tal que por elas nos persuadimos, sem necessidade de demonstração. São elas: a prudência, a virtude e a benevolência.

Nas teorias argumentativas da atualidade, verifica-se a retomada da noção de éthos enquanto mecanismo que contribui para a análise da argumentação, mas também para o exame do público a que se destina a argumentação. Como assinala Amossy (2005, p. 19), trata-se da “necessidade que tem o orador de se adaptar a seu auditório, portanto, de fazer uma imagem dele e, correlativamente, de construir uma imagem confiável de sua própria pessoa, em função das crenças e valores que ele atribui àqueles que o ouvem”.

No cenário político, as proposições apresentadas só possuem valor quando atreladas aos atores políticos que as proferem/divulgam. Desse modo, é necessário que estes edifiquem uma imagem de sujeito crível, capaz de colocar em prática as ideias veiculadas, ou seja, que eles criem uma figura identitária que pode vir representada em dois tipos de ethé: os ethé de credibilidade e os ethé de identificação. Para melhor entendimento do discurso político, Charaudeau (2006) propõe uma subcategorização desses ethé:

1) ethé de credibilidade: visam produzir no auditório um efeito tal que mostre o orador como digno de crédito. Para tanto, o ator político constrói uma identidade discursiva que reflete um indivíduo com traços de seriedade, competência e virtude. Nesse caso, algumas condições devem ser satisfeitas: a) a condição de sinceridade; b) a condição de perfórmance, em que se observam as condições e os meios que o sujeito político tem para colocar em prática o que ele promete; c) a condição de eficácia, em que se comprova que as ações anunciadas são seguidas dos resultados esperados. Charaudeau (2006, p. 119) afirma que “a credibilidade repousa sobre o poder fazer, e mostrar-se crível é mostrar ou apresentar a prova de que tem esse poder”. Podem ser divididos em:

éthos de seriedade: depende do que cada grupo social tem como representação daquilo que seja “ser sério”. São várias as características que modulam este éthos, tais como a postura corporal, a expressão facial, o autocontrole diante de situações críticas, a demonstração de capacidade e energia para o trabalho, a fidelidade na vida conjugal, o tom de voz firme e comedido, o uso de palavras e construções sintáticas simples e ainda declarações a respeito de si mesmo, principalmente. O ator político investido de um éthos sério busca sempre o bem-estar do cidadão, não fazendo promessas impossíveis, nem propondo

sonhos utópicos de melhoria, atitudes que garantem a construção discursiva de um ar de seriedade;

éthos de virtude: o político deve inspirar uma imagem de indivíduo sincero, fiel e honesto para servir de exemplo de “homem virtuoso” para o auditório a que se dirige. Essas imagens de virtude são, no entanto, construídas com o tempo, com a realidade, com o agir do sujeito político e isso ocorre tanto no âmbito da vida pública, quanto no da vida privada;

éthos de competência: é encontrado, principalmente, nos discursos em que o próprio sujeito faz declarações enfatizando seu percurso político, sua experiência, suas realizações e funções exercidas durante sua carreira como político. Nesse tipo de discurso, é importante e inevitável que se encontrem dizeres que mostrem o conhecimento do candidato sobre todos os mecanismos que impulsionam a política, fatos que comprovem seu preparo para agir e o discernimento sobre as decisões que devem ser tomadas em determinadas situações.

2) ethé de identificação: estão relacionados ao discurso afetivo, pois o auditório se identifica com o ator político através de um processo irracional. Desse modo, visando alcançar uma identificação com o maior número possível de indivíduos do auditório a que se dirige, o sujeito político cria sua imagem com base em uma mistura “de traços pessoais de caráter, de corporalidade, de comportamentos, de declarações verbais, tudo relacionado às expectativas vagas dos cidadãos, por meio de imaginários que atribuem valores positivos e negativos a essas maneiras de ser.” (CHARAUDEAU, 2006, p. 137)

Objetivando, assim, a identificação com o maior número possível de indivíduos, os políticos acabam se valendo de valores opostos para construir sua imagem, tendo em vista que as pessoas são e pensam de maneiras diferentes. Em outras palavras: conforme seu público- alvo, o político procura apresentar-se como alguém moderno, mas também tradicional, procurando atender aos imaginários dos indivíduos a quem se dirige, sem excluir nenhuma opinião. Dividem-se em:

éthos de potência: estreitamente relacionado ao sexo masculino, é verificado por meio da força física, de virilidade, enfim, da realização de “proezas físicas pessoais”, através de discursos que exaltam a força, que apresentam um ator político com voz altiva e palavras fortes;

éthos de caráter: engloba inúmeras imagens, já que de um político com caráter espera-se força, firmeza, moderação, honestidade, dentre outras virtudes que se completam para construção desse tipo de éthos;

éthos de inteligência: é responsável por provocar a admiração e o respeito do auditório pelo sujeito político que demonstre possuí-lo. Charaudeau (2006) defende a ideia de que esse tipo de éthos é percebido em função do que se pode apreender do comportamento do indivíduo em sua vida privada, e não apenas diante da maneira como ele se porta e se pronuncia nos acontecimentos políticos. Há duas figuras representativas desse éthos: a de homem culto e a de homem astuto;

éthos de humanidade: nele se observa a capacidade do indivíduo de demonstrar sentimentos, compaixão, de confessar suas fraquezas e gostos pessoais, mostrando ao auditório todo o seu lado humanístico, de pessoa comum que tem momentos felizes e tristes. O sentimento, uma das figuras primordiais desse tipo de éthos, é mostrado para o auditório com a ajuda das mídias: quando os sujeitos políticos, por exemplo, fazem visitas aos necessitados, ou quando comparecem em situações trágicas, oferecendo ajuda e demonstrando suas condolências, seja através de palavras, seja através de ações;

éthos de chefe: no caso de presidentes da república, é direcionado tanto para o auditório, buscando a identificação deste com o político, como para o próprio governo. A tônica é demonstrar que se exerce liderança. Desse modo, o ator político assume a imagem de guia, de soberano e de comandante;

éthos de solidariedade: caracteriza-se pela construção de uma imagem de disponibilidade do sujeito político para com seu auditório e se dá através de atos e declarações, podendo, por exemplo, manifestar-se na forma de slogans que demonstrem que o ator político sensibiliza-se com as demandas do auditório. Charaudeau (2006, p. 164) assevera que “[...] o movimento de solidariedade passa por um processo de identificação de um grupo por meio de uma ideia, um valor.”

Tanto os ethé de credibilidade quanto os de identificação aqui descritos possibilitarão uma maior compreensão da(s) imagem(ns) construída(s) pelos ex-presidentes em seus discursos. Outro aspecto interessante assinalado por Charaudeau (2006, p. 115) é a questão da identidade do sujeito, que é desdobrada em dois componentes:

Em sua primeira componente [sic], o sujeito mostra-se com sua identidade social de locutor [...]. Em sua segunda componente [sic], o sujeito constrói para si uma figura daquele que enuncia, uma identidade discursiva de enunciador que se atém aos papéis que ele se atribui em seu ato de enunciação, resultado das coerções da situação de comunicação que se impõe a ele e das estratégias que ele escolhe a seguir. O sujeito aparece, portanto, ao olhar do outro, com uma identidade psicológica e social que lhe é atribuída e, ao mesmo tempo, mostra-se mediante a identidade discursiva que ele constrói para si.

Portanto, segundo o autor, o resultado dessa dupla identidade, que acaba fundindo-se em uma, pode ser denominado éthos. Reforçando o pensamento de Charaudeau, Tringali (1988, p. 78) afirma:

Não basta, ao orador cuidar da própria imagem durante o discurso, apresentar-se ora humilde, ora austero, ora tranquilo, ora autoritário... o que realmente conta é a imagem do orador que deriva de toda sua vida moral. Há uma ligação profunda entre a vida e o discurso que, por sua vez, reflete a vida do orador. Sem uma vida honrada, o discurso não persuade.

Nessa mesma direção, Maingueneau, em seus trabalhos mais recentes (2006; 2008), postula a existência de um “éthos efetivo”, que congregaria um éthos pré-discursivo (ou prévio24 e um éthos discursivo, constituído, por sua vez, de um éthos dito (nível do enunciado: as informações que o orador dá de si mesmo) e um éthos mostrado (nível da enunciação: o “tom” que o discurso, mesmo escrito, assume: didático, enérgico etc). Maingueneau altera, assim, a posição inicialmente assumida – mais compatível com a de Aristóteles – de que o éthos se construiria apenas no/pelo discurso. Verifica-se tal alteração no quadro esquemático a seguir:

24No que diz respeito ao éthos prévio, Amossy (2008) pontua que a definição de éthos proposta por Aristóteles –

imagem de si construída no discurso – enfrentou a discordância de pensadores como Cícero e Quintiliano, que consideravam o éthos como um dado preexistente, que compreenderia uma gama de informações, tais como a autoridade individual e institucional do orador, ou seja, a reputação de sua família, seu modo de vida, seu status social. Assim sendo, Cícero e Quintiliano transportam a noção de éthos para a esfera do caráter do orador, esvaziando a ideia de argumento pautado apenas na palavra. O caráter moral e a habilidade de bem manejar o verbo definiriam um bom orador, no entender de Cícero.

ÉTHOS EFETIVO

ÉTHOS PRÉ-

DISCURSIVO ÉTHOS DISCURSIVO

ÉTHOS DITO

↔↔↔↔

ÉTHOS MOSTRADO

ESTEREÓTIPOS LIGADOS AOS MUNDOS ÉTICOS

(Diagrama do éthos discursivo efetivo. In: MAINGUENEAU, 2008, p.19 – Adaptado)

Verifica-se, pois, que o conceito de éthos se alarga nos autores citados, envolvendo também uma imagem prévia do orador, o que é importante se considerarmos que tanto Fernando Henrique Cardoso quanto Luís Inácio Lula da Silva são pessoas públicas, das quais já temos uma imagem, antes mesmo que eles abram a boca. Esses atores políticos devem, então, ter seus discursos minuciosamente examinados e sua imagem social (prévia) e discursiva investigada, pois o discurso político é edificado, muitas vezes, no intuito de dizer o que não pode ser dito. Esse tipo de discurso precisa, pois, ser hábil o suficiente para informar e dizer não dizendo. Assim, a arte da boa argumentação é importante instrumento na dupla tarefa de construção do perfil do orador e de uma imagem de política virtuosa e eficiente, conduzida por ele, questões essas que passam pelo “verossímil” e não pela verdade ontológica.

Nesse sentido, e reforçando a importância do éthos, pode-se afirmar, segundo Maingueneau (2008, p. 29), que:

A problemática do éthos pede que não se reduza a interpretação dos enunciados a uma simples codificação; alguma coisa da ordem da experiência sensível se põe na comunicação verbal. As “ideias” suscitam a adesão por meio de uma maneira de

Desse modo, é preciso contar com o poder advindo de uma “moral inerente ao ser”, ou seja, contar com uma argumentação que está contida na própria figura do indivíduo (nesse caso, ator político) que – por si só – tem força de argumento.

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