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Referimos já que com a modernidade (Descartes, Kant e outros autores) se acentua uma viragem antropológica e se valoriza o paradigma do conhecimento. A filosofia centra as suas reflexões no eu e no sujeito cognoscente, no a priori do conhecer, no eu transcendental enquanto condição de possibilidade do conhecimento empírico, nas estruturas transcendentais desse eu, anteriores à própria experiência, constituintes da "gramática da representação" do próprio objecto. É o início dum percurso onde as questões do método se tornam essenciais e o solipsismo adquire um estatuto privilegiado.

É esta filosofia que se vê criticada em várias frentes, ao ser valorizado o paradigma da linguagem, ao ser declarada a ficção do sujeito, com o aparecimento de discursos filosóficos ambivalentes: "Por um lado, assistimos ao aparecimento de uma série de filosofias «impessoais»- o estruturalismo, a hermenêutica, a pragmática. Por outro, certas correntes de tendência existencialista lamentam a dissolução do eu, isto é, a sua falta de autenticidade".292Entre a saudade de um eu perdido, a crise de um sujeito

como garante de certeza e segurança, e as filosofias defensoras de um novo pensamento, não é por acaso que o estudo das questões da linguagem se torna importante, bem como as reflexões sobre a acção comunicativa, algumas das quais, preocupando-se com noções como «acordo», «consenso», «justiça», assumem claramente preocupações éticas. Mais quando insistem na procura de um suporte que legitime a própria acção comunicativa, e retomam um novo transcendental que encarne a racionalidade, com a «comunidade ideal de diálogo". Como referido anteriormente, constatamos que "a linguagem como meio de comunicação projecta também o seu próprio transcendental a

Camps, Victoria, La imagination ética, op. cit. p. 217. Camps, Victoria, Ética, retórica, política, op. cit. p. 23.

partir do qual poderá legitimar as suas normas e discorrer até à constituição da sociedade comunicativa racional. Da mesma forma que a linguagem representativa contava com uma forma lógica como condição de possibilidade da representação, agora, ao deslocar a atenção para a função comunicativa da linguagem, necessitamos de uma condição de possibilidade da comunicação total e racional. Se aquela procurava o fundamento de um sujeito ideal, esta exige o fundamento de uma comunidade ideal".2930ra, como vimos, não só a comunidade ideal não pode legitimar a

comunicação real, nem as condições da comunicação ideal são atingíveis. Se, por um lado, há situações em que a simples descrição encobre uma prescrição, exigindo juízos descritivo/valorativos, por outro, haverá que ter presente que uns são "regras constitutivas" da própria linguagem, juízos "analíticos"(do tipo, "as promessas devem cumprir-se"), enquanto outros se limitam a expressar opiniões ou pontos de vista sobre a realidade, e como tais, podem ser discutíveis, podem modificar-se, são convicções não universalmente aceites(do tipo, "a família é célula básica da sociedade"). Ora, "são estes enunciados do segundo tipo, os que não devemos duvidar em chamar «descritivo- prescritivos», os que tornam difícil a comunicação e constituem a raiz dos desacordos...pelo que assumo que a legitimação ou o acordo racional, absoluto, só é viável acerca de princípios muito gerais, que são os princípios indiscutíveis- as regras constitutivas- proponho abandonar esta busca e que nos limitemos a validações parciais, relativas, de meio alcance".294A própria ambiguidade dos termos, não só nos impede a

separação clara entre o descritivo e o prescritivo, como constitui fonte de conflitos, numa demonstração da insuficiência representativa da linguagem pela ausência de referentes unívocos (v.g. bom, sincero, justo...), remetendo, muitas vezes para outros conceitos tão equívocos como os primeiros. Somos, por isso, confrontados com imprecisões semânticas da linguagem valorativa, pelo que é pouco eficaz pretender socraticamente fixar todas as opiniões através da razão ou determinar o que «deve ser» dito postulando, à maneira de Habermas, uma comunidade perfeita de falantes. "A linguagem pura e transparente, clara e distinta, sem equívocos, não é a nossa". Mais importante que aplaudir acordos é reconhecer a opacidade comunicativa, as imprecisões e desacordos, aprofundá-los procurando as razões de um eu que se quer emancipado e resiste à sua diluição na identidade colectiva. Ao contrário do que alguns preconizam

Camps, Victoria, Ética, retórica, política, op. cit. p.26. Camps, Victoria, lb. pp. 29-30.

Camps, Victoria, lb. p. 31.

para o sujeito do conhecimento, para o sujeito da ética os limites da linguagem não são os limites do seu mundo, dada a permanente tensão e conflito entre o geral e o particular, os interesses da sociedade e a autonomia do indivíduo. E esta "abertura", expressa inclusive no carácter abstracto, vago e impreciso da linguagem ética, que sugere uma maior liberdade de interpretação, maior "flexibilidade" e menos dogmatismos nos juízos éticos. "Escreveu-se e discutiu-se demasiado sobre a falácia lógica do «ser» ao «deve», quando a dedução realmente difícil de resolver é a inversa: não a que vai do «ser» ao «deve», mas a que vai do «deve» ao «ser». Ideais, utopias, valores, deveres não faltam; o que não se vê em lado nenhum é a sua verifícação".296Mais do que teorias sem realização na prática, ou a reprodução de

antinomias insuperáveis e ignorantes de um dos seus pólos, importa, como já sugeria Hume, subverter os sistemas da moralidade, mostrando que a distinção entre a virtude e o vício não é exclusivamente racional ou empírica, não transformando a ética em pura metalinguagem teórica, mas, dado o seu carácter normativo e prático, desenvolvendo uma argumentação persuasiva que transforme a acção. Neste ponto, Camps considera ser de alguma pertinência a perspectiva emotivista ao referir que a ética não pode limitar-se a expressar sentimentos e emoções, mas deve provocá-los e suscitá-los. O raciocínio dedutivo não é superior à sugestão, nem a convicção racional é superior à persuasão. A arte de persuadir é indispensável a uma ética que não se limite às verdades óbvias ou à fixação de critérios éticos, mas que pretenda mediar entre a teoria e a prática. As técnicas retóricas são indispensáveis a uma ética que favoreça a adesão às ideias, e, como se sabe, não se circunscreve à lógica formal. Esta não convém à nova ética, porque não estamos mais no domínio de uma filosofia sem público nem seguidores. Estamos antes numa esfera onde a ignorância, a necessidade da deliberação, a probabilidade, a verosimilhança sobre o que se delibera (alusão a Perelman), estão presentes, como efectivo terreno da ética. Assim, o discurso ético e o discurso retórico partilham o mesmo objecto. Podem os preceitos morais fundados na autoridade ou na lógica do imperativo categórico ético, provocar adesão prática, mas não conseguirão qualquer adesão livre e autónoma, antes serão intérpretes da coerção e do medo. Pela convicção poderão conseguir-se "adesões constritivas", mas é pela persuasão que, sem se excluir a possibilidade de errar, é possível aconselhar e, usando a imaginação, fazer apelo aos sentimentos, fazendo da retórica o campo da argumentação «razoável», mais

Camps, Victoria, Ética, retórica, política, op. cit. p. 38.

que racional, onde o autoritarismo e o dogmatismo não têm lugar. A ética não pode prescindir da argumentação e da retórica. Aludindo a Perelman, Camps refere algumas das conhecidas diferenciações entre a lógica e a retórica, designadamente a preocupação desta com a adesão (por contraponto à busca da verdade pela lógica), o recurso a símbolos ambíguos e indeterminados ( ao passo que na lógica se usam símbolos rigorosos e precisos), o carácter mais ou menos pertinente e convincente dos argumentos retóricos (face ao objectivo lógico da demonstração), a especificidade do auditório (não indiferente ou impessoal), o valor do exemplo ou a personalidade do orador, para concluir que a retórica "se constitui em paradigma dum raciocínio não

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dogmático e não constritivo".

Assim sendo, uma questão se coloca: "Se a ética trata do contingente e da opinião, e, por conseguinte, tem de fazer derivar a força persuasiva da sua própria habilidade argumentativa, não constituirá um meio excelente para a manipulação que sobrepõe o êxito e a eficácia à verdade e à justiça?"298Camps reconhece tratar-se de um

risco, mas com as vantagens da precaridade e carácter provisório dos argumentos estabelecerem a mediação entre a teoria e a prática e garantirem a autonomia moral. A ética tem de assumir o risco do discurso como instrumento de manipulação, e não pode esconder esse risco com a capa dos discursos solenes e inflexíveis. Antes, deve manifestá-lo e inseri-lo no diálogo e na discussão, favorecendo a autonomia, a necessidade de escolhas e de justificação das acções. Por isso, mais do que imperativos baseados em critérios racionais universalizáveis, importa "uma retórica do conselho e da persuasão, com a intenção de mostrar que a moralidade só chegará a motivar o comportamento se se despoja do dogmatismo, dado que o dogmatismo é o disfarce que encobre um vazio moral. Por exemplo, todos estamos de acordo em que o conceito de «qualidade de vida» necessita de maior precisão, por motivos económicos, sociais, políticos, fisiológicos, mas também e basicamente por motivos éticos. Ora, para redefinir o conceito bastará pensar conjuntamente estratégias económicas, políticas ou culturais ou é mais interessante e inclusivamente mais positivo procurar provocar atitudes de desagrado face ao egoísmo, à competição, ao consumismo, à rivalidade?"299Na ética, mais importantes que os conflitos de crenças, são os conflitos

de atitudes. Daí, a importância de uma educação para os valores, pois "toda a educação

297 Cf. Camps, Victoria, lb. pp.47-49. 298 Camps, Victoria, lb. pp. 50-51. 299 Camps, Victoria, lb. p.52.

é, em última instância, formação da consciência moral", que não seja apenas teórica, que não se limite à instrução e informação (insuficientes em matéria de ética), mas que favoreça a autonomia, a responsabilidade, a deliberação, a argumentação, a educação de atitudes. "Os valores morais transmitem-se, sobretudo, através da prática, através do exemplo, através, precisamente de situações que reclamam a presença de valores alternativos".300Tomando consciência dos conflitos, persuadindo pelo exemplo,

demonstrando perplexidades. No contexto de insuficiência e incompetência moral de que padecemos, Camps considera que a argumentação retórica, apesar de menos rigorosa que outras, "é um mal menor e um mal necessário": "A única forma de evitar o cepticismo, por um lado, e o dogmatismo, por outro, é concebendo a ética como retórica, o que equivale a dizer que confiamos suficientemente nela para não a eliminar como um facto inútil, mas não partilhamos do optimismo dos que esperam da ética a salvação".301Portanto, a argumentação retórica constitui o meio mais adequado ao

discurso precário da própria ética , entre outras razões, porque nenhuma filosofia poderá, em definitivo, resolver os problemas da ética, da sociedade ou da política. Mais do que encontrar soluções importa indicar e descobrir paradoxos.

"A ética vem substituindo a religião. A esperança ética é religiosa num sentido diverso do tradicional. Não é esperança numa transcendência última e duradoira, nem sequer a obstinada esperança blochiana na utopia intrahistórica. É esperança na persistência e perseverança do próprio projecto ético. Com que fundamento? A crença de que o ser humano é projecto".

Projecto progressivo, enquanto progresso moral? Ou antes cheio de retrocessos e recuos? O futuro insiste na perplexidade e no paradoxo. Talvez, como sugere Camps, o fundamento permaneça envolto na religiosidade do mistério.

Camps,Victoria, Los Valores de la Education, Anaya, Madrid, 1998, p.21 Nota: A Ia Ed. data de 1994. A tradução é nossa.

301 Camps, Victoria, Ética, retórica, política, op. cit. p. 53. 302 Camps, Victoria, Ib. p. 102-103.