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SIMULAÇÃO E SIMULACROS A propósito de Jean Baudrillard

1.5. ÉTICA E COMUNICAÇÃO NUMA "SOCIEDADE DE INCOMUNICADOS"

1.5.2. SIMULAÇÃO E SIMULACROS A propósito de Jean Baudrillard

Na vida corrente, a um nível mais elementar dos nossos actos, tropeçamos frequentemente com o "fingimento" e a simulação. Na sala de aula simulamos o "diálogo" à maneira socrática, efectuamos montagens representativas de sistemas para melhor os analisarmos, criando ou constituindo artificialmente analogias. No mundo dos negócios ouvimos a cada passo falar de vendas fictícias para se não pagar a credores. Ou constatamos mesmo a estreita aliança entre a simulação e a dissimulação quando, por exemplo, alguém simula uma venda para dissimular uma doacção ou quando o jogador de futebol simula uma finta para dissimular um remate. Aliás, no desporto, são frequentes as conversas sobre simulações - as faltas, as fintas, os penalties. Há quem simule divórcios para fugir ao fisco. Ou doenças, para se defender, para impressionar, para colher frutos com a situação.

Baudrillard diz que "dissimular é fingir não ter o que se tem. Simular é fingir ter o que não se tem. O primeiro refere-se a uma presença, o segundo a uma ausência" Para logo acrescentar que, ao contrário do que, ao nível corrente, usualmente admitimos, "simular" não é "fingir". No fingimento há apenas dissimulação, não é questionado o "princípio da realidade", nem a diferença entre "verdadeiro" e "falso". Ao contrário, na simulação, a diferença entre o "real" e o "imaginário", entre "verdadeiro" e "falso", é anulada. No caso concreto da simulação de uma doença, quanto mais perfeita

209Eduardo Lourenço, Op. Cit., pág. 37.

21 "Baudrillard, Jean; Simulacros e Simulação, pág. 9, Antropos, Relógio d'Agua, 1991, Trad. de Maria

João Costa Pereira.

Baudrillard, Jean, Simulacres et Simulation, Ed. Galileu, 1981, pág. 12.

Nota: Por questão de comodidade, tomaremos como referência a Edição portuguesa.

a simulação, mais sintomas "verdadeiros" são produzidos, pelo que, "objectivamente" o indivíduo não pode ser tratado como "doente" nem como "não doente". No simulacro o real torna-se irrecuperável, perde-se.

Há, assim, uma clara oposição entre a representação e a simulação. A representação "parte do princípio de equivalência do signo e do real" . A simulação "parte da negação radical do signo como valor, parte do signo como reversão e aniquilamento de toda a referência"212. E acrescenta: "Enquanto que a representação

tenta absorver a simulação interpretando-a como falsa representação, a simulação envolve todo o edifício da representação como simulacro"213. A imagem estará assim

sujeita a fases sucessivas: 1- Boa aparência ("reflexo da realidade profunda"); 2- Má aparência ("quando mascara e deforma a realidade profunda"); 3- Finge ser aparência ("mascara a ausência de realidade profunda"); 4- Já não é do domínio da aparência mas da simulação (não tem relação com qualquer realidade, sendo o seu próprio "simulacro puro"). Passamos, assim, dos "signos que dissimulam alguma coisa" (próprios duma "teologia da verdade e do segredo") aos signos que "dissimulam que não há nada," inauguradores da era dos simulacros e da simulação, "onde já não existe Deus para reconhecer os seus", nem "Juízo Final para separar o falso do verdadeiro", o real do artificial, porque "tudo está já antecipadamente morto e ressuscitado"214. E é porque o

real não é mais o que era, que a nostalgia assume sentido, que os "mitos de origem" se sobrevalorizam, que o "figurativo" se impõe e ressuscita, que se dá a "produção desenfreada de real e de referencial", que a simulação se destaca como estratégia de "real", "neo-real", "hiper-real". Permanecemos assim numa "impossibilidade de voltar a encontrar um nível absoluto do real" que representa igualmente "a impossibilidade de encenar a ilusão": Esta "já não é possível porque o real já não é possível" . Os simulacros "proliferam segundo uma lógica comunicacional, afinal a autora do crime perfeito, aquele que consiste em liquidar a realidade substituindo-lhe mecanismos incontroláveis de geração de imagens que se multiplicam num movimento incessante e irreparável, permutáveis sem perda"216. "Crime fóssil" cuja energia (como a da explosão

2,1Baudrillard, Op. Cit., pág. 13. 212Ib.

2,3Ib.

2,4Baudrillard, J., Op. Cit., pág. 14. 215Baudrillard, I, Op. Cit., pps. 29 e 30.

21 'T.opes, Silvina Rodrigues, in Prefácio à obra de Jean Braudillard "O Crime Perfeito", pág. 11, Relógio

inicial do Big Bang) "se vai distribuir através do mundo até ao seu esgotamento eventual", "crime original" cuja visão mítica se resume à "alteração do mundo no jogo da sedução e das aparências, e da sua ilusão definitiva". Daí que, e ao contrário da questão filosófica "tradicional", "por que é que há alguma coisa em vez de nada?", hoje

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a verdadeira questão seja: "Por que é que há nada em vez de alguma coisa?

Diversas vezes Baudrillard reafirma que no "horizonte" da simulação, "não só o mundo desapareceu, mas a própria questão da sua existência já não pode ser colocada", pelo que vivemos num mundo em que o signo realiza a sua função mais elevada, ao fazer desaparecer a própria realidade e ao conseguir mascarar esse mesmo desaparecimento218. A própria imagem já não tem por função a de imaginar ou sonhar a

realidade, porque ela é real, é a realidade virtual do real. A simulação, ao "realizar mundo", ao dar-lhe força de realidade, fazendo-o "existir e significar a qualquer preço"219, não é mais que uma tarefa de aniquilamento da própria ilusão do mundo (de

ilusão), pelo que o oposto da simulação não é o real mas a própria ilusão. Será, por isso, acréscimo de ilusão, querer combater a ilusão com a "verdade", mas antes com uma ilusão ainda maior. Também por isso, a racionalidade não passa de uma "veleidade" na

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luta contra este crime, esta homenagem à "perfeição do sistema"

A "produção" de "hiper-realidade" é resultante, como se referiu, da acção de "simulacros de simulação", o que não significa que, na perspectiva de Baudrillard, todos os simulacros se resumam a esta categoria. Por uma questão metodológica, ainda que

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sucintamente, convirá uma referência a esta questão. Em "Simulacros e Simulação" ' o autor refere a existência de três categorias de simulacros: 1. "Simulacros naturais, naturalistas", que pretendem a restituição ou "instituição ideal de uma natureza à imagem de Deus". Trata-se de simulacros optimistas e harmoniosos, baseados na imagem, na imitação e no fingimento, e a que corresponde o imaginário da "utopia". 2. "Simulacros produtivos, produtivistas", que visam o "desejo" e o objectivo prometaico de contínua expansão e libertação de energia indefinida, baseados na energia, na força e na sua materialização pela máquina e em todo o sistema de produção e a que

'Baudrillard, Jean, O Crime Perfeito, Relógio d'Agua, pág. 24.

8Cf. J. B., O Crime Perfeito, pág. 27, op. cit. 9J. B., O Crime Perfeito, pág. 39, op. cit. !0J. B., O Crime Perfeito, pág. 41, op. cit. nOp. Cit., pág. 151 esegs.

corresponde a "ciência-ficção"222. 3. "Simulacros de simulação", que visam o objectivo

de "controlo total", de "operacionalidade total" de "hiper-realidade" e cuja base é a informação, o modelo.

Estamos hoje a assistir à abolição da distância entre o real e o imaginário, à reabsorção dessa distância "em benefício exclusivo do modelo". Assim, se na "utopia" é máxima a distância entre o real e o imaginário, a descolagem do mundo real, pela aceitação de uma esfera transcendente, essa distância reduz-se de forma significativa na "ficção científica", porque esta apenas constitui uma "projecção" não qualitativamente diferente do mundo real da produção, limitando-se a "acrescentar" a multiplicação das suas próprias possibilidades. Mas onde essa distância desaparece completamente, é totalmente reabsorvida, é na "era implosiva dos modelos". Estes deixam de constituir uma transcendência ou uma projecção223, um "imaginário relativamente ao real", são

imanentes, e constituem "antecipação do real". Está assim aberto o campo da simulação, da ausência de diferenciação entre real e ficção, da "manipulação" em todos os sentidos destes modelos. Paradoxalmente, é o real que passa a constituir a utopia (mas que não é agora da ordem do sonho ou do possível), o princípio da realidade que dominava o mundo é deposto pelo princípio da simulação porque "o mapa cobre todo o território" - Acabou-se a transcendência, "é o fim da metafísica, é o fim da fantasia, é o fim da ficção científica, é a era da hiper-realidade que começa"

"Não há senão a regra que devemos admitir. Mas não se trata já da regra do sujeito mas da regra do jogo do mundo"

Não iremos aqui (por razões inerentes às limitações, inclusive temporais, do presente trabalho) proceder a uma analítica da actualidade com o objectivo de

"desocultar" e "clarificar" os inúmeros espaços de simulação com que somos confrontados. Até porque não se pretende aqui a homenagem ao "último tango do valor", onde a "simulação do saber" seria o grande alívio para o "pânico" de quem tem de "distribuir diplomas sem contrapartida de trabalho «real», nem assumir o "simulacro de trabalho trocado contra um simulacro de diploma"226. Sem nos determos neste ponto,

222No original "Science-fiction". A tradução portuguesa citada refere-se a esta expressão como "ficção

científica".

223Nota: Em nosso entender, este aspecto é bem elucidativo da diferença relativamente à realidade

"arquetípica" do platonismo, expressa na "teoria das ideias" e mesmo na "teoria da anamnese" (cf.).

224Baudrillard, I, Simulacros e Simulação, Op. Cit., pág. 154. 225Baudrillard, Jean, O Crime Perfeito, op. cit., pág. 35. 2260p. Cit., pág. 191 a 194.

tudo parece sugerir que os diplomas universitários são, cada vez mais, colocados no plano do "valor fantasma", dado que o seu "valor de uso" e de troca, o seu referencial se perde, sendo, por isso, segundo Baudrillard, um exemplo claro da importância actual da simulação. Aliás, são múltiplas as análises que, na actualidade, se referem às Universidades como "fábricas de parados".

Esta "produção desenfreada de real e de referencial" revela-se praticamente em todos os "mundos" da nossa actualidade.

Na ciência (de que a clonagem é um claro exemplo)

Nas estratégias de consumo. O hipermercado ("grande fábrica de montagem") é disso um bom exemplo. Nele, as pessoas encontram e seleccionam objectos, encontram "respostas a todas perguntas que podem fazer-se" ou antes "vêm elas próprias em resposta à pergunta funcional e dirigida que os objectos constituem"225 enquanto

hipermercadoria, prestando homenagem ao mito do consumo. "Se a sociedade de consumo já não produz mitos é porque ela constitui o seu próprio mito" "Os hipermercados não tomaram apenas o lugar das catedrais, eles são também as novas escolas e as novas universidades, com vantagem de não exigirem exames à entrada ou notas máximas, salvo aquelas que na carteira se contiverem e o cartão de crédito cobrir"230.

Na cultura, onde todos os modos de expressão virtuais, todas as formas culturais originais, todas as "linguagens determinadas" são absorvidos no modo exclusivo da publicidade, numa homenagem à forma superficial e ao "grau zero de sentido" "Neocultura generalizada, em que cessa a diferença entre a especiaria fina e uma galeria de pintura, entre Play-Boy e um Tratado de Paleontologia"232. Assim, "tudo é cultural.

Ou nada o é". Tudo pode entrar no mundo da publicidade, sendo significativa a "total desideologização do signo cultural até à sua provocante perversão: por exemplo, Che Guevara para ilustrar o sucesso mítico do jeans ou a muralha da China para servir de pano de fundo à performances da Renault"233. Aliás, a própria propaganda, outrora

Nota: Trata-se de capítulo onde Baudrillard analisa a relação pedagógica, e a relação com o "mundo do trabalho", na instituição Universitária.

227Cf., a propósito, o cap. "Clone Story", in "Simulacros e Simulação", pág. 123 a 132. 228Baudrillard, J., op. cit., pág. 97.

229Baudrillard, Jean, A Sociedade de Consumo, Espaço da Sociologia, Ed. 70, pág. 241,1981. 230Saramago, José, "A mão que embala o berço...", in Rev. Visão, 9/10/98.

231Baudrillard, Jean, "Simulacros e Simulação", Op. Cit., pág. 113. 232Baudrillard, Jean, "A Sociedade de Consumo", Op. Cit., pág. 19. 233Lourenço, Eduardo, "O esplendor do Caos", Gradiva, pág. 23, 1999.

orientada para objectivos diferentes, é absorvida pelo modo exclusivo da publicidade, pela lógica sedutora da "transparência superficial de todas as coisas"

"Produção desenfreada de real", no sexo, na guerra, na violência, na política, nas relações sociais, nos media235, onde todo o plano da "construção simbólica" se funde

miticamente, numa espécie de síncrese, com o "real" - o "hiper-real".

Referimos, no início deste capítulo, que uma das estratégias desta "construção simbólica" passa pelo "agenda setting". Trata-se de temática expressamente analisada por Baudrillard, designadamente quando se refere à "implosão do sentido nos media", (embora a expressão propriamente dita não tenha sido por nós encontrada na sua obra).

Como refere Jean Baudrillard, "os media são produtores não da socialização mas do seu contrário, da implosão do social nas massas. E isto não é mais que a extensão macroscópica da implosão do sentido ao nível microscópico do signo. Isto deve ser analisado a partir da fórmula de MacLuhan medium is message, cujas consequências estamos longe de ter esgotado"236. Em "A Sociedade de Consumo", Baudrillard,

procurando explicitar a afirmação de MacLuhan, refere. "Quer ela dizer que a verdadeira mensagem transmitida pela TV e pela Rádio237, descodificada e consumida

inconsciente e profundamente, não é o conteúdo manifesto dos sons e das imagens, mas o esquema constrangedor, ligado à essência técnica dos meios de comunicação, de desarticulação do real em signos sucessivos e equivalentes: é a transição normal, programada e miraculosa, do Vietname para o "music-hall", com base na abstracção total de ambos"238. À medida que o aperfeiçoamento técnico se vai aprofundando,

aprofunda-se também a ausência real do mundo, sendo progressivamente neutralizado o carácter vivido e único de "evento do mundo", em benefício de uma "mensagem totalitária", veiculada pela "omnipotência dum sistema de signos", onde as imagens / signos são uma metalinguagem de um mundo ausente. Dá-se a "assunção total do mundo real na imagem"239. Assim, a fórmula de MacLuhan, sugere que "todos os

conteúdos de sentido são absorvidos na única forma dominante do medium. Só o medium constitui acontecimento", sejam quais forem os conteúdos (conformistas ou

234Baudrillard, Jean, "Simulacros e Simulação", Op. Cit., pág. 114.

235Nota: Como se referiu, não iremos, por questão de opção, desenvolver cada um destes aspectos,

embora as obras de Baudrillard que vêm sendo citadas (e outras) lhes façam referências e análises detalhadas.

236Baudrillard, Jean, "Simulacros e Simulação", Op. Cit., págs. 106 e 107. 237Nota: Convém ter-se presente que a Ia Edição desta obra data de 1970. 238Op. Cit., pp. 147 e 148.

239"A Sociedade de Consumo", Op. Cit., pág. 149.

subversivos), produzindo-se, assim, a "neutralização de todos os conteúdos" Mas não se trata apenas da "implosão da mensagem no medium", dado que ocorre, neste movimento, a "implosão do próprio medium no real", numa "nebulosa hiper-real": Não só as mensagens se volatilizam no medium, como o próprio medium se volatiliza enquanto tal - fim da mensagem e do medium (enquanto instância mediadora de um estado de real para outro). Em suma: "Um único "modelo", cuja eficácia é "imediata", gera, ao mesmo tempo, a mensagem, o medium e o "real". Fim do espaço panóptico, da perspectiva, do sentido.

Mas, para lá do sentido, "há o fascínio que resulta da neutralização e da implosão do sentido"241. Para lá da esfera que habitualmente designamos de "social"

(com todas as suas categorias), há as massas resultantes da "neutralização" e "implosão" do social. Estamos assim, perante um duplo desafio ao sentido: Pelas "massas" e pelo seu silêncio, por um lado, pelos media e pelo seu fascínio, por outro. Duplo desafio que nos coloca numa situação paradoxal: "São os media que neutralizam o sentido e produzem a massa "informe" ("informada"), "ou é a massa que resiste vitoriosamente aos media, ao desviar ou absorver, sem lhes responder, todas as mensagens que estes produzem?". Baudrillard reconhece que ele próprio evoluiu na sua forma de pensar esta questão: Antes ("Requiem pour les Media") pensava que os "media" constituiriam um modelo "irreversível de comunicação sem resposta". Hoje tem dúvidas sobre o facto de a ausência de resposta poder ser entendida como "contra-estratégia" das massas contra o poder. Aliás, não será por acaso que os media tanto estão ao lado do poder para manipular as massas, como do lado das massas liquidando o sentido e o fascínio. Daí a sua ambiguidade expressa, por exemplo, na condenação moral do terrorismo ou na difusão do seu fascínio, veiculando o "sentido e o contra-sentido", "manipulando todos os sentidos ao mesmo tempo": "Situação dupla" e "impasse" ("double bind") que, segundo Baudrillard, anula o efeito (resposta) das próprias práticas libertadoras (de emancipação, expressão, subversão, recusa de alienação e passividade, etc.) dado que estas apenas respondem "a uma das vertentes do sistema" (que nos força a constituirmos puro objecto) mas não respondem à exigência de nos constituirmos como sujeitos, à "exigência de reivindicação libertadora do sujeito". Por isso, se o principal argumento do sistema reside na "maximalização da palavra" e na "produção máxima de sentido",

"Simulacros e Simulação", Op. Cit., pág. 107. "Simulacros e Simulação", Op. Cit., pág. 109.

qualquer resistência estratégica não poderá caminhar no mesmo sentido do sistema. As massas, ao optar pela "recusa do sentido e da palavra, ao devolver o sentido (sem o absorver), ao remeter para o sistema a sua própria lógica estarão a assumir uma resistência estratégica, "se é que ainda se pode falar de estratégia"242.Uma coisa parece

certa: "Todo o amontoado confuso do social gira em torno desse referente esponjoso, dessa realidade ao mesmo tempo opaca e translúcida, desse nada: "as massas" Estas, são "o poder da inércia", "o poder do neutro", fazem "terra" (ou "massa") absorvendo toda a "electricidade do social e do político" que neutralizam sem retorno. Com enorme poder se "absorção e neutralização", as massas constituem uma espécie de "referente mudo", de "buraco negro" onde o social se precipita, implicando a hipótese da morte do social conceptualizável e, por conseguinte, de qualquer análise sociológica (a massa "não é um conceito", é uma noção branda, "viscosa"). A este propósito, Baudrillard refere que os conceitos de "classe", "relação social", "poder", "estatuto", "instituição" e o próprio conceito de "social", "demasiado claros e glória das ciências legítimas" nunca passaram de noções confusas, mas sobre os quais houve acordos com "fins misteriosos" como o da preservação de um certo código de análise. Por exemplo, querer precisar o termo "massa" é um contrasenso, é dar-lhe um sentido que não tem. Dizer "a massa dos trabalhadores", ou as "massas camponesas", é um contrasenso porque a "massa" nunca é de um sujeito ou objecto social, é um ser "sem atributo, sem predicado, sem qualidade, sem referência", sem realidade sociológica, pelo que a sua "definição" é a sua "indefinição radical", "o neutro", o "nem um nem outro" (ne-uter), o "sem sentido", o que "resta quando se esqueceu todo o social". Daí que nem sequer seja adequado falar- se de "alienação" das massas, mas antes de "simulação" devido ao fim de todos os referenciais

Mas será que se pode falar de estratégia? "Na representação imaginária, as massas flutuam algures entre a passividade e a espontaneidade selvagem, mas sempre com uma energia potencial, um stock de socialidade e de energia social, hoje referente mudo, amanhã protagonista da história, quando tomarem a palavra e deixarem de ser maioria silenciosa...". Uma coisa parece certa: "A sua força é actual, está intacta e é a do

242"Simulacros e Simulação", Op. Cit., pág. 111.

243Baudrillard, Jean, "A la sombra de las mayorias silenciosas", in "Cultura y Simulacro", Ed. Kairós,

Barcelona, 4a Edição, 1993, pág. 109.

Nota: A tradução é nossa.

seu silêncio"245. Além disso, "enganar-se de estratégia é grave" .

Não parece, portanto, simples ou linear (antes de grande complexidade) esta questão das relações entre o poder, os media, e as massas. Até onde vai o impacto e o poder dos "media" na "massificação", serão eles os principais agentes dessa massificação, ou, ao contrário, estarão eles próprios dependentes de vários agentes e poderes, inclusive do "contra-poder" das "massas"?

De forma bastante sucinta (e naturalmente inconclusiva) passaremos à abordagem mais específica destas questões.

É hoje quase um lugar comum destacar o poder dos "media" e denunciá-lo como prepotente, perigoso, perverso para o cidadão ou mesmo para as democracias. Esta problemática dos efeitos dos media tem sido objecto de diferentes pesquisas, embora, de forma mais sistematizada tenha ocorrido para compreender os efeitos da propaganda durante e após a Ia Guerra Mundial e com o desenvolvimento dos chamados meios de

comunicação de massas. É neste período que surge o "primeiro paradigma dos estudos dos efeitos dos media", designado por "teoria hipodérmica"247. Segundo este paradigma

as mensagens dos "mass-media" têm influência e "impacto directo nas pessoas e produzem inevitavelmente comportamentos prognosticáveis; esses efeitos aconteciam em todas as pessoas, fossem quais fossem os atributos sociais ou psicológicos do indivíduo"248. Assim, todos os membros de um audiência de massas respondem de

modo igual aos estímulos mediáticos, sendo estes "todo-poderosos" e agentes do crescente isolamento do indivíduo (por exemplo, o aparecimento do nazismo na Alemanha e os estudos sobre a 2a Guerra Mundial, pareciam dar razão a esta teoria).

Embora salvaguardando diferenças (no tempo e no pensamento), julgamos pertinente a referência à opinião de Karl Popper e de John Condry que, não há muito tempo, publicaram dois ensaios que, se não coincidem totalmente com esta teoria, alertam para o excessivo poder dos media (em especial da televisão) nas atitudes e comportamentos

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dos cidadãos e para os perigos que deles resultam para a propria democracia Segundo Condry (que estuda os efeitos da televisão nos Estados Unidos), mais tempo diante do televisor implica, além do menor interesse pela leitura, maior passividade e

245Baudrillard, Op. Cit., pág. 110.

246Baudrillard, Jean, "Simulacros e Simulação", Op. Cit., pág. 111.