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1. Alteridade, ética e cidadania

1.3 Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN’s) temas transversais: um olhar

1.3.1 Ética: carro-chefe dos temas transversais

O PCN reserva um espaço para abordar aspectos concernentes a ética. A primeira distinção elaborada está em diferenciar ética de moral; seus criadores utilizam uma denominação similar a proposta por Russ e Vazques, logo, a primeira seria mais ampla, a outra mais concreta, regeria relações micro.

Justifica-se a escolha pelo conceito de ética dos Temas Transversais, exatamente, por ser mais ampla; afinal, o PCN configuram-se como um documento de âmbito nacional, com referenciais ampliados também. Parte-se do pressuposto que é preciso possuir critérios e valores para nortear as ações em sociedade, para tanto, fez-se uma análise histórica, por exemplo, elenca-se a escravidão na Grécia Antiga, práticas de tortura da Idade Média, etc. para demonstrar a mutabilidade da ética como dependente das sociedades.

Os Temas Transversais elaboraram três pontos para ressaltar a escolha de conteúdo do tema ética: o primeiro – o “núcleo moral” da sociedade, valores eleitos como necessários ao convívio coletivo; o segundo, o caráter democrático da sociedade brasileira, que permite a expressão da diferença; terceiro, o caráter abstrato desses valores.

Por mais que se explicite o caráter abstrato não há aprofundamento dos valores estabelecidos, por certo que o conceito de democracia carrega deontologicamente em seu bojo a expressão da diferença, contudo, tem-se na prática democrática brasileira tal expressão? Ou, então, o próprio exercício da cidadania abrange todos os indivíduos? Dessa forma, explicita-se um panorama que não condiz com a realidade cotidiana e histórica do país.

Segundo o PCN, as relações sociais internas à escola são pautadas em valores morais, sendo que, pelo caminho democrático, equivalem a uma bela experiência de cidadania e responsabilidade, em um diálogo com aqueles que têm ideias diferentes.

Caso contrário, corre-se o risco de transmitir aos alunos a noção de que as relações sócio-culturais em geral são violentas e autoritárias. (BRASIL, 1997, p. 64).

A proposta da transversalidade justifica-se, principalmente, por três razões:

 A primeira: não refazer o erro da má experiência da Moral e Cívica, que partia do pressuposto que a formação moral corresponde a uma “especialidade” e deveria ser isolada no currículo por meio de aulas específicas.

 A segunda: a problemática moral está presente em todas as experiências humanas e, portanto, deve ser enfocada em cada uma dessas experiências que ocorrem tanto durante o convívio na escola como no embate com as diversas matérias.

 A terceira: ajuda o aluno a não dividir a moral num duplo sistema de valores, aqueles que se falam e aqueles que, de fato, inspiram as ações. Infelizmente, tal duplo sistema existe em nossa sociedade. Associar a educação moral a discursos sobre o Bem e Mal nada mais faz do que reforçar o divórcio entre discurso e prática. Ao ancorar a educação moral na vivência social, reatam-se os laços entre falar e agir. (BRASIL, 1997, p. 64).

Não refazer o perfil errôneo da Moral e Cívica constitui-se uma medida plausível, porém, o modo como a ética vem sendo tratada no documento, apesar de sua aparente face na alteridade, não abrange os vieses sociais da política, da economia e da cultura. Além disso, inseri-la no currículo não garante uma transformação de sentido e, menos ainda, de práticas.

Ao se abordar os conteúdos de ética para o primeiro e segundo ciclos da escolaridade, lança-se uma perspectiva mais abrangente sobre a alteridade, aproximando-se da noção especificada nesta pesquisa. Conforme o documento:

Cada sociedade, cada país é composto de pessoas diferentes entre si. Não somente são diferentes em função de suas personalidades singulares, como também o são relativamente a categorias ou grupos de pessoas: elas podem ser classificadas por sexo, etnia, classe social, opção política e ideológica, etc. É grande a diversidade das pessoas que compõem a população brasileira: diversas etnias, diversas culturas de origem, profissões, religiões, opiniões, etc. (Id. Ibidem, 69).

De acordo com o exposto, o PCN incide em um movimento de ir e vir, logo, ora avança, ora recua quanto ao entendimento das ideias sobre ética, alteridade, etc. Os Temas Transversais também organizaram blocos de conteúdos, os quais correspondem a grandes eixos de atitudes e valores subsidiários à ética, são eles: respeito mútuo, justiça, diálogo e solidariedade.

O respeito mútuo segundo o PCN trata da relação de reciprocidade: no sentido de “respeitar e ser respeitado”, reconhecer as diferenças e do respeito a singularidade, como exemplos citam-se: contratos a serem cumpridos, respeito pelos lugares públicos.

Atenta-se que o “respeito mútuo” é encarado pelo PCN, até mesmo, no cumprimento de contratos, quer dizer, configurando-se na ordem capitalista, seguindo os artigos 1º e 3º da Constituição Federal – (livre iniciativa e respeito a propriedade privada) (BRASIL, 2007); um dos poucos momentos que se explicita tal face de inserção a globalização.

O conceito de justiça está atrelado ao de igualdade ou equidade13. O documento aponta que os indivíduos, na grande maioria das vezes, não se encontram em posição de igualdade, pois, existem diferentes condições sociais, econômicas, entre outras. Para o PCN:

Porém, o conceito de igualdade deve ser sofisticado pelo de eqüidade. De fato, na grande maioria das vezes, as pessoas não se encontram em posição de igualdade. Nascem com diferentes talentos, em diferentes condições sociais, econômicas, físicas, etc. Seria injusto não levar em conta essas diferenças e, por exemplo, destinar a crianças e adultos os mesmos trabalhos braçais pesados (infelizmente, no Brasil, tal injustiça acontece) (BRASIL, 1997, p. 72).

Os valores referentes ao diálogo relacionam-se com a comunicação, entendida em várias dimensões – escrita, oral, gestual, etc. Dessa forma, um dos objetivos fundamentais da educação é fazer com que o aluno apreenda as diversas mensagens. A outra acepção presente é o diálogo enquanto atitude de uma sociedade democrática. Nesse sentido, a democracia proporcionaria a expressão de diversas ideias, sendo o diálogo seu mediador.

Por último, a solidariedade, a qual é apreendida como generosidade, seguindo a velha máxima: “doar sem olhar a quem”. Um exercício de cidadania, na defesa dos próprios direitos, mas atento contra as injustiças cometidas aos outros indivíduos.

Em suma, os blocos de conteúdos sobre ética, no PNC aparentam ser, predominantemente, teóricos e, em alguns momentos, quiméricos em relação à realidade brasileira. Porém, configuram-se, ao menos, como propostas.

13

Em Bobbio realizam-se distinções entre as noções de igualdade e equidade conforme o sistema político seguido por determinado Estado; pois, tais conceitos são interpretados de forma distinta em um governo socialista, social-democrata ou neoliberal. Ver em: BOBBIO, N. A Era dos Direitos. 4. ed. Rio de Janeiro: Campus, 1992.

Ainda que, no nível discursivo, o PCN consiga em alguns momentos abarcar a perspectiva da alteridade, evidencia-se que esta não se sustenta quando se analisa o documento com profundidade. Segundo Canen: “[...] A perspectiva intercultural crítica diluí-se esvazia-se em um discurso em que predomina uma perspectiva de educação multicultural (somente) para a aceitação, uma visão de pluralidade que ignora a dinamicidade e a hibridação de culturas [...] (CANEN, 2000, p. 146).

O PCN sobre os Temas Transversais como um todo, avança em determinadas questões, contudo, em outros momentos, necessita de um maior aprofundamento crítico e de conexão com o contexto que cerca e que criou. Para Oliveira:

Não há duvida de que os PCN’s avançam em muitos aspectos, tanto em relação às posturas éticos/morais dogmáticas quanto à omissão acerca da importância da ética/moral na escola. Mas o tom ufanista, que confere à educação escolar o papel de fiador do futuro cidadão crítico, marca claramente o discurso. (OLIVEIRA, 2001, p. 228) . Uma estrada com obstáculos, porém, transponívies de médio a longo prazo, agregando no plano social, em caráter de cooperação, segmentos da sociedade civil – políticos, intelectuais e ONG’s, para, assim, re-organizar e transformar o campo educacional.