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3 ÉTICA E CIBERESPAÇO - UMA NOVA QUESTÃO

3.2 Ética e Ciberespaço

Dentre as inúmeras questões suscitadas pela emergência de um novo espaço, o ciberespaço ou espaço virtual, criado pela internet, e do qual emerge uma nova cultura, a cibercultura, destaca-se o seguinte questionamento: As questões éticas estão envolvidas no contexto do ciberespaço?

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Inteligência coletiva: “é uma inteligência distribuída por toda a parte, incessantemente valorizada, coordenada em tempo real, que resulta em uma mobilização efetiva das competências e cuja base e objeto são o reconhecimento e o enriquecimento mútuos das pessoas” (LÉVY apud RAMAL, 2002, p. 2005).

Tomando como referência as idéias de Pierre Lévy, pode-se afirmar que sim, a web pode constituir-se em um instrumento privilegiado para construir uma civilização mais informada, mais consciente e ética. Contudo, paradoxalmente, essa mesma tecnologia que contribui para o benefício da comunicação pode levar, de igual modo, ao aumento do isolamento e à alienação. O ciberespaço pode unir as pessoas, da mesma forma que as pode dividir, particularmente ou em grupos, separados por ideologias, políticas, posses, raças, etnias, diferenças de geração, religiões, valores éticos e morais.

Uma das pedras angulares do ciberespaço está no fato de constituir-se em uma esfera pública não-sujeita a regulamentações externas, diz Moraes (2006), lembrando que os estatutos éticos das comunidades virtuais se esquematizam internamente, através de seus próprios cosmos produtivos, regulados por motivações cooperativas, coordenações de qualidades e vocações individuais. Os códigos informais de conduta não provêm de fora, das instâncias de poder, ao contrário, são aceitos por consenso e adaptados às práticas e tradições dos internautas.

Quéau (2004) refere-se à info-ética, entendendo que a cibercultura é o lugar onde novos comportamentos intelectuais e culturais elaboram-se e são capazes de abranger concreta e praticamente a questão do universal, além de tornar-se o lugar do florescimento de uma ética adequada à sociedade mundial da informação. A info-ética segundo o estudioso não é uma nova ética. Ao contrário, apóia-se sobre valores éticos fundamentais, experimentados, como a igualdade, a justiça e a dignidade humana, e busca por colocá-los em prática no contexto da sociedade mundial da informação. No centro da cibercultura, diz o estudioso, tece-se um desafio profundamente ético.

Quéau (2004) lembra que, para Aristóteles, o domínio público é o lugar da palavra e da ação. É o lugar em que o homem se põe em presença de outros homens, onde ele se oferece ao olhar dos outros, ao julgamento dos outros. Este é o lugar em que o homem (como ser humano) pode revelar seu valor diante de outros homens. O domínio público, portanto, é o lugar em que se pode buscar a excelência, o lugar em que melhor se desenvolve a virtus, e onde se exprime valores que não têm preço. O domínio privado, por sua vez, é o domínio da produção, da vida material, dos apetites individuais. Neste sentido, a cibercultura deve tornar-se o lugar do florescimento de uma ética adequada à sociedade mundial da informação, a info-ética.

recorre à metáfora de Sodoma e Gomorra:

Gen., cap.18-19. Um grande clamor se ergue contra Sodoma e Gomorra devido a seus pecados. Tendo Deus resolvido destruir essas cidades, nas quais se cometiam muitas injustiças, decide falar primeiro a Abraão. [...] o patriarca enceta com o Eterno uma extraordinária sessão de negociação: “Talvez haja cinqüenta justos na cidade! [...] Sucederia ao justo o mesmo que ao culpado?” [Na negociação,] Deus concede a Abraão a salvação da cidade, caso ali se encontrassem [...] dez justos apenas. Ao cair da noite, dois anjos chegam às portas de Sodoma. Nada, em sua aparência, indica que sejam enviados de Deus. Para todos, são pessoas de passagem [...] Lot, que estava sentado à entrada da cidade, convida esses estrangeiros à sua casa [...] segundo as regras da hospitalidade. Eles ainda não haviam se deitado quando a população de Sodoma se reúne em torno da casa de Lot e pede para ver os estrangeiros, ‘para deles abusar’. Lot se recusa a entregar seus hóspedes [...] A demonstração permitiu contar o número de justos em Sodoma: apenas um [...] (LÉVY, 2000, p. 35).

Para Lévy, o erro dos sodomitas está na recusa em dar hospitalidade e na intenção de abusar de seus visitantes. Já o comportamento de Lot evidencia a força das pessoas vivas e ativas, os justos, capazes de trabalhar para a existência do mundo humano que inclui, aproxima e reaproxima as pessoas. Lévy explica:

[...] a hospitalidade representa eminentemente o sustentáculo do laço social, concebido segundo a forma da reciprocidade: o hóspede é tanto aquele que recebe como o que é recebido. E cada um deles pode se tornar estrangeiro. [...] A hospitalidade consiste em atar o indivíduo a um coletivo. Contrapõe-se inteiramente ao ato de exclusão. O justo inclui, “inContrapõe-sere”, reconstitui o tecido social. Em uma sociedade de justos, e segundo a forma de reciprocidade, cada um trabalha para incluir os outros. [No mundo contemporâneo] onde tudo se move, onde todos são levados a mudar, a hospitalidade, moral dos nômades e migrantes, torna-se moral por excelência [...] Por que é preciso ao menos dez justos para que a cidade seja poupada? [...] Porque é preciso uma força coletiva para manter um coletivo. [...] Dez é o início do anonimato. São necessários pelo menos dez, pois os justos devem ter passado pela prova da sociedade dos justos. [...] Os justos só são eficazes, só conseguem manter a existência de uma comunidade constituindo uma inteligência coletiva. [...] Abraão é o justo por excelência. [...] Ao negociar com Deus [...] ele valoriza e desdobra ao máximo o potencial do bem; chama atenção para a bondade dos outros. [...] inventa a engenharia do laço social (LÉVY, 2000, p. 36 - 39).

O filósofo do ciberespaço, portanto, refere-se à ética do coletivo, cujo ponto de partida se configura em uma oportunidade para o exercício de um novo humanismo, como já referido anteriormente. Se alguém recebe outro em interação num espaço virtual, diz Lévy, é importante reconhecer que estes trazem contribuições que vão lhe acrescentar novos saberes e, em contrapartida, esperam reciprocidade.

compartilhar nossos conhecimentos e apontá-los uns para os outros, o que é a condição elementar da inteligência coletiva” (2000, p. 18). Para o estudioso, a transmissão, a educação, a integração e a reorganização do laço social precisam deixar de ser atividades separadas para realizar-se do todo da sociedade para si mesma, e potencialmente de qualquer ponto que seja de um social móvel a qualquer outro.

Contudo, para além da visão otimista de Lévy, acerca de uma ética do coletivo, e a despeito das inúmeras contribuições da grande rede no estabelecimento de uma nova sociedade, muito mais informada e comunicativa, problemas como o uso desta mesma rede para a distribuição de pornografia, para a calúnia, a difamação e roubo de informações têm servido a propósitos criminais preocupantes. É nesse sentido que ações relacionadas com a questão da liberdade de expressão e privacidade das comunicações, apesar de garantidas pelas Constituições das nações democráticas, configuram-se em riscos potenciais e servem como sinais de alerta para a nova realidade. É importante pontuar, porém, que essas questões não são, em essência, meros produtos da internet. A web, como qualquer outro veículo de comunicação, pode ser utilizado de forma criminosa e/ou indevida, conforme podemos conferir na frase de Nascimento:

A questão ética não se restringe ao plano da aceitação das normas socialmente estabelecidas nem se reduz ao problema da criação dos valores por uma liberdade solitária. Nasce na existência concreta de cada um, da consciência dos valores envolvidos no reconhecimento da inalienável dignidade da pessoa e do sentido da responsabilidade pessoal diante do outro, cujo rosto é um apelo constante a ser respeitado e promovido (NASCIMENTO, 1984, p. 16).

Com efeito, a ética nasce da reflexão crítica do indivíduo sobre o comportamento humano e funda-se na consciência crítica, investiga os valores, interpreta, discute e problematiza. A ética indaga sobre os princípios e o comportamento moral, sempre com vistas ao bem-estar da vida em sociedade. Porém, no mundo contemporâneo, a prática da consciência crítica acerca dos problemas da virtualização dos meios de informação e comunicação ainda caminha na esteira do seu próprio desenvolvimento. Nesse contexto, o tema “ética” articula-se de forma imanente ao plano da educação, suscitando, ainda, outras questões como o papel da educação e do educador na atual conjuntura e as questões éticas que devem ser discutidas quando ocorre a adoção da internet e de seus aplicativos por docentes e discentes. São indagações importantes e, apesar do grande movimento provocado pelo avanço da internet em todo o mundo, no meio acadêmico os estudos que prometem respostas a essas questões ainda são incipientes.

Segundo Rodrigues (1999), alguns filósofos já consideram a necessidade de se estabelecer parâmetros éticos específicos para as questões relativas à realidade virtual, pois os antigos já não dão conta dos atuais problemas. As questões ético-sociais e ético-culturais resultantes da globalização mediada pela internet, vêm sendo debatidas em todo o mundo, afirma a autora, pois há uma percepção quase geral, entre os estudiosos, de que é urgente e necessário um código de ética para as atividades tecnológicas.

Nesse sentido, Mário Bunge apud Rodrigues (1999) propõe três códigos diferentes: o primeiro seria universal destinado a todos os seres humanos, cujo objetivo seria regular o uso comum da tecnologia; o segundo seria individual, destinado ao tecnólogo no exercício de sua profissão e seria pautado no dever do tecnólogo em recusar-se a servir a projetos que tenham como objetivo metas anti-sociais; o terceiro teria caráter social, formulando políticas de desenvolvimento tecnológico, devendo ser inspiradas nas necessidades básicas da sociedade.

De acordo com Neves (1999), diante de sua magnitude e capacidade, a tecnologia tem gerado um efeito “bola de neve” e por isso requer uma nova ética, mais ampla e capaz de fundamentar um sistema de deveres e não deveres pautados no bem e no permitido. Para o autor, a preocupação para o futuro está em criar novas regras éticas, visto que o avanço tecnológico tem se desviado das leis que permitem regularizar as suas ações e seus poderes. A autonomia e o dinamismo dos avanços tecnológicos são questões importantes que ultrapassam as pretensões e desejos de seus produtores e seus agentes, ocasionando, por sua vez, perspectivas de imprevisibilidade.

As mais recentes discussões sobre os princípios éticos aplicados ao ciberespaço ressaltam a dificuldade de defini-los, uma vez que os conflitos de valores (liberdade e a facilidade de expressão versus respeito à privacidade, por exemplo) são totalmente novos. Jamais foi tão “fácil” obter informações e nunca tão necessário proteger os direitos das pessoas. Haja vista, para citar um exemplo recente, o caso de um vídeo que mostra cenas íntimas entre uma modelo brasileira e seu namorado, que foi disseminado no mundo inteiro, com uma velocidade impensável.

Rauch (2001) diz que estamos diante de conflitos de valores completamente novos. Segundo o autor, existem em nossa cultura pelo menos duas posições básicas conflitantes no tocante à informação. Para explicar esses conflitos, o autor cita o exemplo dos Estados Unidos, onde é “amplamente aceito tomar como ponto de partida a liberdade de informação (freedom of information): por princípio a informação é livre e só pode ser restringida caso

haja para isso uma justificação expressa” (p. 62-63). Rauch observa que informação e comunicação fazem parte do direito à liberdade que constituem peças fundamentais do consenso social básico naquela sociedade. Segundo o autor, liberdade de informação nos Estados Unidos é comparada à liberdade de “desejar a felicidade, de estabelecer moradia onde quer que seja, de praticar a religião, e é vista como sacrossanta” (p.63). Contudo, essa concepção choca-se com a defesa dos dados pessoais, que, também de acordo com Rauch (2001), é consolidada em diversos países da Europa sob forma de lei. O autor observa que a defesa dos dados pessoais parte da noção de que toda pessoa tem o direito de manter a privacidade do que lhe dize respeito, ou seja, toda transmissão, processamento ou armazenamento de dados pessoais precisa da autorização “expressa” dos envolvidos. Aí, o que está em primeiro lugar, é a defesa diante da informação e da divulgação.

Rauch (2001) faz ver que essas duas concepções se opõem e nos levam para além da questão teórica. Os casos reais manifestam os conflitos entre sistemas jurídicos, que provocam novos questionamentos: “como a opinião pública deve proceder diante de conteúdos de sites pornográficos ou politicamente extremistas? Diante de dados pessoais incorretos? [...]” (RAUCH, 2001, p. 63). O caso da modelo brasileira, citado anteriormente, é um exemplo singular desse tipo de debate, ainda em construção, pois, segundo Rauch, não se sabe ao certo qual dessas concepções se mostrará mais produtiva em uma sociedade informatizada. A ciência da informação necessitará da ajuda da filosofia e da teologia para equacionar este problema.

Rauch (2001) afirma que a reflexão sobre uma ética da informação está apenas começando. Ainda não é possível saber quais conseqüências da técnica podem ser valoradas como boas ou más, fato que dificulta a valoração de projetos futuros, como já aconteceram com outras inovações tecnológicas. Para o autor, não existe outro campo da técnica no qual seja tão difícil fazer prognósticos como no caso das tecnologias de informação e comunicação. Justamente por isso é necessário e mesmo urgente definir-se uma ética da informação. O autor assegura, entretanto, que não se deve esperar que a filosofia ofereça receitas prontas sobre o assunto. Ao contrário, é preciso realizar um diálogo permanente entre a evolução da técnica e de suas aplicações com as disciplinas filosóficas e as ciências sociais, num permanente processo de formação de opiniões. E é preciso integrar os indivíduos nesse processo, pois lhes caberá, como usuários da tecnologia e interessados diretos, o poder último de decisão.

começou a perder espaço para a cultura escrita, e poderia ser vista como a “primeira informatização da sociedade”. A transição ocorreu de forma consciente. Sabia-se que, a par das grandes vantagens, muitas conseqüências da adoção da escrita seriam negativas. A “informatização” naquele tempo foi discutida e, como acontece hoje, em relação à internet, não pôde ser contida. Segundo Rauch, figuras proeminentes da época testemunharam esse processo, deixando claro que havia uma consciência do caráter revolucionário daquela tecnologia. Refletindo sobre essa questão, o autor toma como exemplo os filósofos Sócrates, Platão e Aristóteles. Sócrates, segundo Rauch, estava muito centrado na cultura oral, e, até onde sabemos, não deixou nada escrito. Platão, ao contrário do mestre, escreveu, ainda que privilegiando o procedimento dialogal de Sócrates. Já Aristóteles utilizou-se da escrita e do livro de forma evidente. Duas gerações apenas foram necessárias para que se alterassem os fundamentos da cultura naquela época. Hoje, possivelmente, não será preciso mais do que isso, afirma Rauch (2002). Os comentários e criticas que aconteceram naquele tempo são relevantes e assemelham-se às preocupações do mundo contemporâneo em relação às tecnologias de comunicação e informação, em especial a internet. O autor diz:

Sócrates, no Fedro, defende a opinião de que a escrita nos levaria a negligenciar o cultivo da memória; saberíamos muitas coisas, mas não as relações essenciais entre elas: nós nos tornaríamos doxosophoi, eruditos de aparência, mas não sophoi, sábios. Platão argumentava que com a palavra escrita é muito maior o risco de interpretações equivocadas do que com a linguagem falada, já que quando se escreve não se conhece nem o leitor futuro nem a situação concreta de quem lê (RAUCH, 2002, p. 59).

A História mostra que as conseqüências temidas e as críticas feitas na época não eram levianas. Mostraram-se muito procedentes, pois a tradição do saber oral perdeu-se muito mais rapidamente do que se previa e, com ele, perderam-se bens culturais infindáveis. A cultura escrita que ocupou o lugar da cultura oral trouxe grandes conquistas. O livro simboliza esta nova etapa da humanidade. Hoje, segundo Rauch (2002, p. 60), “estamos diante de uma ruptura cultural semelhante: a supressão de uma cultura escrita por uma cultura multimídia”.

Segundo o autor, uma diferença fundamental entre a cultura escrita e a cultura multimídia é a descentralização da comunicação. Na linguagem escrita o pensamento é linear, seqüencial. O pensamento também segue essa seqüência linear, diferentemente da linguagem oral, que requer o emprego da mímica, gestos e repetições, para enfatizar ou explicar o que se tentou comunicar. As tecnologias de comunicação e informação, mediadas por computadores, possibilitam uma linguagem de consulta a bancos de dados, de comunicação móvel, o que torna possível saltar de um pensamento a outro, estabelecer conexões e mover-se em um texto

tal como em uma rede multidimensional. A única certeza que existe é que a cultura multimídia já é um fato e caminha para suplantar a cultura escrita. “Consolida-se e universaliza-se cada vez mais uma cultura objetiva de informações” (RAUCH, 2002, p. 61). Para o autor, os elementos que constituem essa nova cultura já existem. Essa, portanto, é uma discussão que toma vulto e tem crescido nos últimos 20 anos, desde o surgimento dos primeiros serviços on line. Contudo, é preciso que essa discussão seja disseminada nas escolas e universidades num debate que privilegie os diversos ângulos de uma mesma questão: o surgimento e as conseqüências do uso das tecnologias de informação e comunicação, especialmente aquelas mediadas por computadores, no mundo contemporâneo.

3.3 A FORMAÇÃO DOCENTE E A QUESTÃO DA ÉTICA NO CONTEXTO DO