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CAPITULO IV – CONSTRUÇÃO

4.3. ÉTICA DO CUIDADO, SOCIEDADE E ESTADO

Numa sociedade em que se verifique a estratificação da dignidade humana, os privilégios e as injustiças hão de proliferar. Os privilégios aparecem quando um está abaixo e outro acima da lei, expressão máxima do totalitarismo. Não admitir a humanidade do outro é requerer privilégios para si. Os direitos surgiram para regular relações entre pessoas e pessoas e entre pessoas e o Estado investido pelas pessoas. Porém, numa sociedade em que nem todos são "gente" o direito é legitimador de injustiça. Por isso, surge a necessidade de mirar para antes das leis, regular relações fundadas na dignidade humana e, a partir daí, buscar uma cidadania norteada pela educação, pela multiplicação de possibilidades, pela proliferação das oportunidades.

Como diz Jessé Souza, é essa “dignidade”, efetivamente compartilhada por classes que lograram homogeneizar a economia emocional de todos os seus membros numa medida significativa, que parece ser o fundamento profundo do reconhecimento social infra e ultra-jurídico, o qual, por sua vez, permite a eficácia social da regra jurídica da igualdade, e, portanto, da noção moderna de cidadania. É essa dimensão da “dignidade” compartilhada, no sentido não jurídico de “levar o outro em consideração”, e que Charles Taylor chama de respeito atitudinal, que tem que estar disseminada de forma efetiva numa sociedade para que possamos dizer que, nessa sociedade concreta, temos a dimensão jurídica da cidadania e da igualdade garantida pela lei. Para que haja eficácia legal da regra de igualdade é necessário que a percepção da igualdade na dimensão da vida cotidiana esteja efetivamente internalizada. (SOUZA, 2003, p. 63).

O terreno em que será levantado o edifício da cidadania precisa ser o da humanidade que todos partilhamos. As fundações desse edifício serão preceitos éticos impregnados do que é comum a todos, o nosso caráter humano. Não há nada mais humano do que as relações que estabelecemos no mundo. As relações consigo, com os outros e com o mundo. A realidade se mostra nessas relações. Porém, a relação reguladora das outras duas é a relação com o outro. Não há um eu sem o outro, nem mesmo seria possível dizer “eu” sem a presença de um outro. O outro é fundamental para que se estabeleçam as demais relações, e a ética funda, justamente, o comportamento, o portar-se diante do outro, a relação com o outro. O comportamento só adquire um valor quando o outro está implicado. Não se trata de abdicar do caráter individual de cada ser humano, mas antes, de reconhecer a importância do outro na

relação entre indivíduos. Trata-se de deixar de encarar o outro como objeto ou meio para alguma finalidade. É dar rosto ao outro e manter o seu rosto. Sozinhos, nos perdemos nas nossas dores e angústias, sufocamos nos nossos medos. O outro oferece referência, prumo, consolo, estabilidade. Trata-se de uma fusão de horizontes significativos, de uma comunhão entre indivíduos. Toda estrutura social advém dessa relação primária, portanto, quando essa estrutura dá sinais de que vai ruir e as relações estão degeneradas há a necessidade de retomar as relações básicas para a sua reforma. Esse trabalho é justamente sobre a necessidade da constituição de novas relações entre as pessoas de modo a restituir o essencial na lida com o outro, a sua humanidade.

A relação entre o indivíduo e a sociedade é apresentada por Alain de Benoist de maneira inequívoca:

“Hoje sabemos – desde muito tempo – que o homem é um ser social, que a existência do homem não precedeu sua coexistência; em suma, que a sociedade é o horizonte em que se inscreve, desde sua origem, a presença humana no mundo. Assim como o espírito só pode ser apreendido se está encarnado, o indivíduo somente e pode situar-se dentro de um contexto sócio-histórico determinado. A pertença à humanidade jamais é imediata, mas mediata: pertence-se a ela somente mediante a interpretação de uma coletividade particular ou de uma cultura determinada. Para o homem resulta impossível definir-se simplesmente como indivíduo porque vive necessariamente em uma comunidade com a qual entra em relação mediante valores, normas, significações compartilhadas, e onde o conjunto de tais relações, de tais práticas, em uma palavra, de tudo aquilo que constitui se meio de vida e o entorno em seu ser, não está sobreposto senão, pelo contrário, é constitutivo de seu eu”. (BENOIST, 2013, p.120)

Ainda na esteira da autonomização do indivíduo em relação ao corpo social, parece-me que o filósofo Charles Taylor toca num ponto fundamental no livro Ética da Autenticidade. Ele cita que algumas abordagens éticas que levam em conta o caráter de autenticidade parecem extrair o valor das ações a partir da própria possibilidade de escolher. Se dada ação foi tomada por uma escolha pessoal essa ação é considerada boa, caso contrário a ação será considerada ruim. Nada mais atual. A demanda por escolher como as coisas devem acontecer é crescente e tratada como um valor em si. O direito de escolha é o direito radical. Mas o direito de escolher simplesmente não existe! Em Ser e Tempo de Heidegger entendemos porque ele não existe.

O filósofo alemão afirma que somos culpa. De que se trata tal afirmação? O que Heidegger tenta nos mostrar é que existir é o mesmo que fazer escolhas. Como temos que optar a cada momento de nossas vidas por tantas possibilidades quantas as que se nos apresentam, ao escolher uma única em dada situação, acabamos por carregar a culpa de não termos escolhido aos outras possibilidades disponíveis. O homem tem-que-ser, ele tem que escolher. Ele não escapa do fato de ter que escolher. Portanto, a escolha não pode ser um valor em si. Só se pode atribuir valor a algo se há opções disponíveis. Como no caso da escolha ela não é opcional, mas inexorável, ela não pode ser considerada um valor. O que dá valor às nossas escolhas é o que nos anima a escolhermos determinadas possibilidades que o mundo nos apresentou, em detrimento de outras tantas que deixamos de escolher. Como disse Sartre, estamos condenados a ser livres, ou seja, a fazer escolhas e a ser responsável por elas. (SARTRE, 2002).

Talvez pela destituição de parâmetros éticos normativos de tradição metafísica, que resultaram em perspectivas relativistas de toda sorte, as necessidades dos indivíduos são supridas sem sacrifícios sociais. Essa possibilidade avilta a consciência de cidadania, uma vez que o indivíduo passa a ser um consumidor de direitos sem valores ao dever, faz a maturidade política vacilar. Preocupados que estão somente em aumentar a sua utilidade, há que reforçar e fazer aceitar a responsabilidade como o outro lado da cidadania.

Maria de Lourdes Pintasilgo explicita de maneira exemplar essa relação entre direitos e responsabilidades:

- se temos direito à vida, temos também a obrigação de respeitar a vida;

- se temos o direito à liberdade, temos a obrigação de respeitar a liberdade dos outros; - se temos o direito à segurança, temos a obrigação de criar condições para que cada ser humano goze de uma segurança humana;

- se temos o direito de participar no processo político de nosso país e eleger os nossos dirigentes, temos a obrigação de participar a e assegurar que os melhores dirigentes sejam escolhidos;

- se temos o direito de trabalhar em condições justas e favoráveis, de modo a obter um nível decente para nós e aqueles que dependem de nós, temos, também, a obrigação de realizar com a maior exatidão, e até o máximo de nossas capacidades, esse mesmo trabalho;

- se temos o direito de liberdade de pensamento, de consciência e de religião, temos, também, a obrigação de respeitar os pensamentos e os princípios religiosos dos outros;

- se temos o direito a ser educados, temos, também, a obrigação de aprender tanto quanto as nossas capacidades nos permitam e partilhar o nosso conhecimento e experiência com os outros;

- se temos o direito de beneficiar da abundância da Terra, temos também a obrigação de a respeitar, de dela cuidar e de a restaurar, a ela e aos seus recursos naturais.

Resumindo, cada direito tem, sem dúvida, a responsabilidade que lhe corresponde. Os direitos são expressões das relações constituídas entre cidadãos e Estado que visam resguardar a dignidade de cada um, mas o que funda a possibilidade de que tenhamos direitos são as relações interpessoais que se perfazem e se sustentam na lida responsável com o outro.

No sentido oposto, o Estado deve lidar com as questões sob o primado da dignidade de seus cidadãos, deixando de lado a lida pragmática e tecnicista que orienta as suas ações em nossos dias. Enquanto a ética da justiça constrói todo o edifício político sobre o ser humano como sede de direitos, a ética do cuidado toma em linha de conta a posição eminentemente realista de que o ser humano também é um ser de vulnerabilidades que, em numerosas situações, o impedem de se erguer para defender os seus direitos. Uma ética do cuidado pode dar um novo ponto de partida ao papel do Estado em relação às verdadeira prioridades políticas de sociedades em que a pessoa humana deve ser o centro e o fim último de toda decisão política. (PINTASILGO, 2012, p. 138).

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