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UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES UCAM INSTITUTO A VEZ DO MESTRE IAVM PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU EM GESTÃO PÚBLICA

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INSTITUTO A VEZ DO MESTRE – IAVM

PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU EM GESTÃO PÚBLICA

POR UM NOVO PARADIGMA ÉTICO NA PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS PÚBLICOS:

o enfoque na responsabilidade dos indivíduos e na dignidade do outro

ALUNO: FABIANO NEVES HOELZ

PROF.: ORIENTADOR Dr MÁRIO LUIZ

RIO DE JANEIRO 2014

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UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES – UCAM INSTITUTO A VEZ DO MESTRE – IAVM

PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU EM GESTÃO PÚBLICA

POR UM NOVO PARADIGMA ÉTICO NA PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS PÚBLICOS:

o enfoque na responsabilidade dos indivíduos e na dignidade do outro

ALUNO: FABIANO NEVES HOELZ

Monografia apresentada ao Instituto A Vez do Mestre como requisito parcial para a obtenção do título de especialista em Gestão Pública

RIO DE JANEIRO 2014

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RESUMO

Este trabalho pretende apresentar um novo paradigma ético possível na prestação de serviços públicos que tenha como principais valores norteadores a responsabilidade e a dignidade do usuário e dos servidores públicos. Apresentaremos uma investigação de caráter hermenêutico evidenciando o que é característico à prestação dos serviços públicos no Brasil, como foram constituídas as relações entre servidores e usuários no país e como elas refletem condutas e comportamentos observados na nossa sociedade. A abordagem ética que apresentaremos terá por finalidade trazer a tona o que é constitutivo nas relações humanas e desvelar o que está em jogo nessas relações a fim de que um novo paradigma ético na prestação dos serviços públicos seja instaurado. Evidenciaremos a necessidade dessa nova abordagem para os problemas que se apresentam em nosso cotidiano, colocando em discussão e revisão o conjunto normativo e as práticas que fundamentam as relações estabelecidas entre as instituições públicas, os seus representantes e os usuários de seus serviços. Nosso intuito é que como reflexo da instauração desse paradigma possamos ter serviços públicos de qualidade e tratamento respeitoso de parte a parte.

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METODOLOGIA

A metodologia que norteou a nossa análise é caracterizada pela abordagem hermenêutica dos fenômenos que nos propusemos abordar. Ela é constituída a saber por três momentos: a reconstrução, a destruição e a construção. Antes do primeiro momento, apresentamos os conceitos fundamentais envolvidos em nosso estudo e recuperamos um breve histórico do serviço público no Brasil. Na reconstrução buscamos recuperar os elementos estruturantes que contribuem para a construção de sentido e para a adoção de comportamentos pelos indivíduos em nossa sociedade. No momento seguinte – o da destruição – esses elementos foram colocados em jogo e passamos a questionar se eles seriam suficientes e adequados para enfrentar os problemas na forma que eles se apresentam hoje. E, por fim na construção, introduzimos conceitos importantes para a proposta que apresentamos e, em seguida, analisamos alguns dos problemas que observamos à luz dessa proposta.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 6

CAPITULO I – CONCEITO E HISTÓRIA DO SERVIÇO PÚBLICO 8

1.1. SERVIÇO PÚBLICO 8

1.2. AGENTE PÚBLICO 9

1.3. HISTÓRIA DO SERVIÇO PÚBLICO NO BRASIL 10

CAPITULO II – RECONSTRUÇÃO 15

2.1. SOCIEDADE 15

2.2. SERVIÇO PÚBLICO 20

CAPITULO III – DESTRUIÇÃO 23

CAPITULO IV – CONSTRUÇÃO 28

4.1. CUIDADO 28

4.2. ÉTICA DO CUIDADO 34

4.3. ÉTICA DO CUIDADO, SOCIEDADE E ESTADO 37

4.4. ÉTICA DO CUIDADO E SERVIÇO PÚBLICO 42

CONCLUSÃO 46

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 48

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INTRODUÇÃO

Nossa proposta nesse trabalho é a de apresentar a necessidade do estabelecimento de um novo paradigma ético para a relação entre os servidores de instituições públicas e os usuários dos serviços públicos. As relações entre essas instâncias encontram-se severamente desgastadas a ponto de se colocar muitas vezes em xeque a dignidade das pessoas que prestam e das que fazem uso desses serviços.

É próprio de um regime democrático que as políticas públicas reflitam os anseios da sociedade e os serviços públicos sejam prestados em conformidade com o que a população espera deles. Portanto, os canais de comunicação entre o Estado e a sociedade devem ser variados e bilaterais. O Estado deve ser capaz de mobilizar a sociedade para que sejam realizados os esforços populares necessários para a implementação de algumas políticas públicas, enquanto a sociedade também deve ser capaz de manifestar o que é de seu interesse e exigir do Estado as ações necessárias para a realização de seus anseios. O interesse público e o bem-estar da população devem pautar essa relação entre Estado e sociedade.

Hoje verificamos um descolamento entre o que é de interesse público e o que é de interesse privado. Ambas as instâncias que regem esses interesses operam de maneira autônoma, aumentando as tensões características dessa relação. A cooperação entre essas instâncias e o entrelaçamento desses interesses devem ser promovidos. Em virtude desse isolamento mútuo, o relativismo ganha terreno como corrente de pensamento que fundamenta a conduta em cada uma dessas instâncias.

Ao longo do tempo ocorreu um obscurecimento da figura do outro nas relações estabelecidas em nossa sociedade, a ponto de que comportamentos violentos, ou seja, que violam a dignidade humana, sejam absorvidos na lida diária entre as pessoas e assumidos como normais por grande parte da população. São comportamentos com os quais todos passamos a conviver, queiramos ou não, e que contaminam e fazem parte do horizonte moral a partir do qual as pessoas se movimentam e se orientam, de onde apreendem quais são as condutas aceitáveis pelo corpo social. Urge ser realizado um esforço para que essa situação de proporções calamitosas seja investigada e para que possamos analisar possibilidades para o estabelecimento de relações que se voltem para o seu caráter eminentemente humano.

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Na sociedade de consumo em que vivemos o artefato ganhou vida própria. Ele se materializa na rede referencial de sua utilidade, se autonomizou. Na lida cotidiana com o artefato não percebemos qualquer contexto histórico ou referencial humano na sua constituição. Por isso ele pode ser facilmente descartado. A sociedade do efêmero e da urgência não enxerga o artefato para além de sua utilização imediata. Da mesma maneira, as relações entre pessoas e objetos e as relações interpessoais tornaram-se rápidas e instrumentais. O outro é alguém que pode ter, em algum momento, uma serventia. A sua história de vida, os seus desejos, os seus direitos são desprezados. O que importa é se alguém se mostra útil. O outro é visto segundo a rede referencial de sua utilidade, assim como ocorre com o artefato.

Apesar de todas essas questões, introduzidas de maneira bastante sintética, entendemos que somente uma mudança de perspectiva, que parta do indivíduo, pode permitir o estabelecimento de novas relações que irão ecoar na sociedade, uma vez que a relação é sempre do indivíduo com o outro. É possível estabelecer uma relação responsável com o outro. Esse é o nosso principal intento nesse trabalho, o de apresentar outra maneira de estabelecer essas relações, de modo a refletir num convívio em sociedade mais harmônico, no fortalecimento e na reforma das instituições e na prestação de serviços públicos de qualidade.

Lançaremos mão de conceitos filosóficos basilares que nos permitirão apresentar uma abordagem ética centrada na responsabilidade dos indivíduos e no respeito à dignidade do outro. A ética do cuidado - nossa proposta central - busca resgatar a co-existência inexorável entre o indivíduo e o seu par - o outro - e a sua interdependência constitutiva.

Nosso trabalho busca trazer no seu primeiro capítulo o que é característico à prestação dos serviços públicos no Brasil e um breve histórico contemplando as transformações pelas quais esses serviços passaram. No capítulo seguinte, envidamos esforços para identificar condutas e comportamentos dos indivíduos em nossa sociedade e a sua repercussão na prestação dos serviços públicos. No penúltimo capítulo passamos a colocar em questão os fundamentos que sustentam o horizonte moral a partir do qual os indivíduos se movimentam, passando a problematiza-lo segundo a sua aparente estabilidade. E por fim, no último capítulo de nosso percurso, apresentaremos uma abordagem ética que terá por finalidade trazer a tona o que é constitutivo nas relações humanas e desvelar o que está em jogo nessas relações a fim de que um novo paradigma ético na prestação dos serviços públicos seja instaurado.

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CAPITULO I

CONCEITO E HISTÓRIA DO SERVIÇO PÚBLICO

Recuperamos a seguir o conceito de serviço público necessário para a abordagem do problema que pretendemos enfrentar e um breve histórico da sua prestação no Brasil, para que seja possível identificar como ele ocorre hoje e reconstruir o seu papel na relação entre Estado e sociedade.

1.1. SERVIÇO PÚBLICO

Conforme Alexandre Aragão (2009), os serviços públicos constituem conceito que historicamente tende a uma amplitude bastante dilargada, oriunda de sua matriz francesa, que, via de regra, equiparava os serviços públicos a toda atividade estatal. Com base nisso, grande parte dos conceitos existentes na doutrina dos serviços públicos abrange, com maior ou menor amplitude, atividades estatais que, possuem a mesma base axiológica ou teleológica – o bem-estar da coletividade -, têm regimes jurídicos com pouco ou nada em comum (atividades indelegáveis/atividades delegáveis à iniciativa privada; financiadas por impostos/por tarifas e taxas; exploráveis comercialmente/gratuitamente; exclusivas do Estado/compartilhadas com a iniciativa privada; de uso obrigatório/facultativo; manifestações do jus imperii estatal ou não; atividades administrativas, legislativas e jurisdicionais, etc).

A apresentação do conceito de serviço público que pretendemos apresentar dar-se-á à luz da Constituição Federal de 1988 com enfoque nas atividades administrativas. Uma concepção ampla de serviços públicos corresponderia às atividades prestacionais em geral do Estado, ou seja, às funções que exerce para proporcionar diretamente aos indivíduos comodidades e utilidades, independentemente de poderem deles ser cobradas ou não, ou de serem de titularidade do Estado, segundo Alexandre Aragão (2009).

O direito administrativo brasileiro estabelece uma diferenciação entre serviço público e serviço de utilidade pública. Serviços públicos, propriamente ditos, são aqueles prestados diretamente pela Administração Pública, em razão de sua essencialidade para a manutenção do Estado, como ocorre com a segurança pública, a

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administração da justiça ou a preservação da saúde pública. Já os serviços de utilidade pública são aqueles que são prestados diretamente pela Administração Pública ou por terceiros, mas, sob regulamentação e controle estatal, como ocorre nos casos de concessão, permissão e autorização. Trata-se de serviços que o direito administrativo chama de não essenciais, mas de extrema relevância, como os serviços de energia elé-trica, transporte coletivo, telefone etc. Mas é claro que esses conceitos de essencialidade e relevância são, evidentemente, relativos, pois atualmente, é praticamente impossível para a comunidade viver sem energia elétrica, água, transporte etc. (MÜLLER, N.; BUENO, P. 2010, p. 119).

1.2. AGENTE PÚBLICO

Os serviços públicos são prestados por agentes públicos administrativos. A lei 8.429/92 no seu art. 2º define os agentes públicos como todo aquele que exerce, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função na Administração Pública.

Os agentes administrativos são todos aqueles que exercem atividade pública de natureza profissional e remunerada, estão sujeitos à hierarquia funcional e ao regime jurídico estabelecido pelo órgão a que pertencem. Os agentes administrativos são classificados em três: servidores públicos, empregados públicos e temporários.

Os agentes públicos estão submetidos aos princípios constitucionais que regem a administração pública, definidos nos Artigos 37 e 70 da Constituição Federal de 1988. São eles:

Legalidade

Todo o ato administrativo deve ser fundamentado e desenvolvido sob a forma da lei, no limite da lei e na finalidade da lei.

Determina o inciso II do art 50 da CF: "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei".

Impessoalidade

Em conformidade com o interesse público e coletivo, a atividade pública deve ser voltada à sociedade como um todo indivisível, vedando-se tratamento discriminatório, preferências pessoais, favorecimento pessoal e de terceiros.

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O agente público deve tratar a todos de forma igual. Moralidade

Na ação administrativa impõe-se comportamento: ético, moral e de direito baseados nos bons costumes, na equidade e na justiça do agente público dirigida ao bem comum.

Publicidade

Todo o ato praticado na administração pública deve ser objeto de ampla divulgação, objetivando a transparência e visibilidade de toda a ação do agente público, eliminando desta forma a tradição do secreto.

Eficiência

Impõe ao agente público a necessidade de que suas ações voltadas as finalidades públicas sejam idôneas, rápidas, satisfatórias e econômicas, sem deixar, entretanto, de observar aos demais princípios constitucionais, inclusive o da legalidade.

Economicidade

Vinculado diretamente ao principio da Eficiência, impõe que os recursos financeiros de origem pública sejam geridos de modo adequado e eficiente, para que se obtenham os maiores benefícios pelos menores custos.

Legitimidade

Impõe que todo o ato público atenda ao fim público, obrigando ao agente público que a sua atuação seja legal, moral e vise à finalidade pública.

1.3. HISTÓRIA DO SERVIÇO PÚBLICO NO BRASIL

O serviço público no Brasil tem a sua origem vinculada à chegada e instalação da família real portuguesa no Rio de Janeiro em 1808. A partir desse fato, tem início o processo de tomada de consciência da importância do trabalho administrativo, diante da necessidade de promover o desenvolvimento da então colônia, de acordo com a diplomacia real. Proclamada a independência, o Brasil torna-se império, depois passa a república e, ao longo da história política do país, os serviços públicos tornam-se cada vez mais estruturados e presentes na sociedade.

O histórico do serviço público no Brasil confunde-se com a formação do Estado brasileiro. As administrações colonial e imperial e, até mesmo, a organização estatal do

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início da República não são consideradas pela maior parte da literatura como instituições burocráticas ou estatais. Entretanto, seu legado não pode ser desconsiderado, pois influencia fortemente as relações que são estabelecidas em momento posterior. Em relação ao período imperial, José Murilo de Carvalho em seu livro A construção da ordem: a elite política imperial afirma que “magistrados e militares, ao lado dos agentes do fisco, estiveram entre os primeiros funcionários do Estado moderno a se organizarem em moldes profissionais” (CARVALHO, 2003, p.148). O autor acrescenta que a organização da época era melhor desenvolvida na captação de impostos, enquanto que as ações de desenvolvimento social (educação e saúde, infraestrutura) chegavam somente às capitais de província. O policiamento, por exemplo, ficava totalmente a cargo do poder local (fazendeiros, comerciantes, capitalistas), que constituiria posteriormente a Guarda Nacional. Durante o Império, não havia preocupação com a racionalização do Estado e o ingresso nos empregos públicos seguia, fundamentalmente, a lógica da distribuição de privilégios: “apesar das variações entre os diversos setores, salientando-se a maior burocracia dos setores clássicos do judiciário, do militar e do fiscal, pode-se dizer que, em geral, a classificação de cargos era precária, a divisão de atribuições pouco nítida, os salários variáveis de ministério para ministério; não havia sido institucionalizado o sistema de mérito, e as nomeações e promoções eram muitas vezes feitas à base do apadrinhamento ou, como se dizia na época, do empenho e do patronato, e não da competência técnica; as carreiras eram mal estruturadas e a aposentadoria não generalizada” (CARVALHO, 2003, p.159)

Um dos primeiros documentos consolidando as normas referentes aos funcionários públicos, foi o Decreto 1.713 de 28 de outubro de 1939. Por esse motivo, no ano de 1943, o Presidente Getúlio Vargas institui o dia 28 de outubro como o Dia do Funcionário Público. Em 11 de dezembro de 1990, foi publicado o novo Estatuto dos Servidores Públicos Civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais, consolidando-se, assim, o termo “Servidor Público”.

Os anos 1930 foram marcados pela organização de um aparelho estatal mais moderno, com os primeiros indícios de implantação de cargos e carreiras para o serviço público com base meritocrática, mas ainda mantendo uma estrutura paralela de admissão (GOUVÊA, 1994;TORRES, 2004). Havia preocupação com a profissionalização e capacitação dos servidores, como demonstra a criação do Conselho Federal do Serviço Público Civil em 1936, que se transformou, em 1938, em Departamento Administrativo do Serviço Público (Dasp) e sobreviveu até 1986.

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Durante a existência do Dasp, foram implantados concursos públicos com características meritocráticas, criados órgãos para atuarem variados setores, normas e estatutos.

A criação do Conselho Federal do Serviço Público Civil e do Departamento Administrativo do Serviço Público (Dasp), na década de 1930, representa o primeiro esforço efetivo de constituição de um serviço publico profissional no Brasil. A instituição de um órgão central para a política de recursos humanos, a criação de novas sistemáticas de classificação de cargos e a estruturação de quadros de pessoal, o estabelecimento de regras para a profissionalização dos servidores e a constituição de um sistema de carreiras baseado no mérito são as medidas de maior destaque desse período (KALIL et alli, 2005, p.9).

Embora o Dasp remonte ao final da década de 1930, o primeiro Estatuto dos Funcionários Públicos Civis da União data de 1952, vigorando até 1990, quando foi publicada a Lei nº 8.112 que adotou o Regime Jurídico Único.

Entre os anos 1960 e 1970, a maior mudança na administração pública ocorreu com o Decreto-lei nº 200, de 25 de fevereiro de 1967, que dispõe sobre a organização da administração federal e a reforma administrativa. Muito do que foi estabelecido por esse decreto permanece até hoje, como, por exemplo, a divisão entre administração direta e indireta e a divisão de alguns ministérios e respectivas áreas de competência. O Decreto-lei nº 200 instituiu como princípios a descentralização de atividades, a coordenação e planejamento de ações, mecanismos de controle e a delegação de competências regimentais. Também estabeleceu normas de administração financeira e normas sobre o serviço público civil. Foi aberta a possibilidade de estruturar sistemas de atividades auxiliares para gerenciar atividades de pessoal, orçamento, estatística, administração financeira, contabilidade e auditoria, serviços gerais, dentre outras. A gestão do quadro de servidores é organizada no Sistema de Pessoal Civil da Administração Federal (Sipec), criado pelo Decreto nº 67.326/ 1970, que regulamentou o Decreto-lei nº 200, tendo como “funções básicas a classificação e a redistribuição de cargos e empregos, o recrutamento e a seleção, o cadastro e a lotação, o aperfeiçoamento e a legislação de pessoal” (KALIL et alli, 2005, p.10). Seu órgão central é, atualmente, a Secretaria de Recursos Humanos do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Fazem parte do Sipec as coordenações gerais de recursos humanos dos ministérios, que são as unidades setoriais, e os departamentos de recursos humanos das autarquias e fundações, que são as unidades seccionais. Nesse

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período, o fato mais marcante em relação à gestão de pessoas é o Plano de Classificação de Cargos (PCC), que reorganizou uma série de cargos e empregos em uma tentativa de dar mais racionalidade administrativa ao sistema de carreiras no serviço público.

Os servidores admitidos a partir dos anos 1960, sobretudo na década de 1970 nos órgãos da administração indireta, viveram um momento no qual o conhecimento técnico e a especialização na atividade tomaram grande impulso. Na década de 1980 e início dos anos 1990, os esforços de capacitação dos servidores eram mais dispersos. Na segunda metade dos anos 1990, vislumbrou-se uma reforma que mexia não só com a organização das estruturas administrativas, mas também com os direitos e deveres dos servidores. Embora pregasse a valorização de carreiras consideradas típicas de Estado, flexibilizava e extinguia outras de áreas consideradas meio ou de apoio, além de prever medidas de alteração no sistema previdenciário. Após extensos debates e negociações, foi aprovada em 1998 a Emenda Constitucional nº 19, que permitiu o estabelecimento de contratos de gestão entre o poder público e entidades da administração direta e indireta, estabeleceu teto remuneratório para cargos públicos e cargos eletivos, assegurou a existência de escolas de governo para formação e aperfeiçoamento dos servidores, definiu situações que geram a perda do cargo, e previu limite para despesas com pessoal.

A Emenda nº 19 trouxe parte dos avanços pretendidos, mas a reforma ficou pela metade com a extinção do Ministério da Administração e Reformado Estado (Mare) em 1999. De maneira geral, implantaram-se mudanças na área de gestão (criação de agências reguladoras, por exemplo) e administração de pessoal. Cargos de segurança, ascensorista, copeiro etc. foram extintos (28.451 cargos efetivos que estavam vagos e mais 72.930 cargos ocupados, segundo Torres, 2004). Cargos da alta administração foram reorganizados e algumas carreiras privilegiadas com reestruturação salarial e novos concursos de acesso (especialmente carreiras da área de finanças e auditoria, área jurídica, ciclo de gestão e diplomacia). A situação da remuneração das carreiras do serviço público não era muito boa, devido às dificuldades administrativas dos anos anteriores. As reestruturações ocorridas melhoraram um pouco esse quadro, mas a defasagem salarial da maioria dos servidores, incluídos no Plano de Classificação de Cargos criado em 1970, permanecia grande, especialmente nos cargos de nível superior.

O Sistema Integrado de Administração de Recursos Humanos (Siape) foi instituído em 1990 (Decreto no 99.328, de 19 de junho de 1990) como um programa informatizado para controlar a folha de pagamento, sendo o repositório das informações

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cadastrais de todos os servidores, civis e militares, ativos e aposentados, pensionistas, estatutários e celetistas. O início dos anos 1990 é marcado pelas privatizações, pela extinção de vários órgãos e implantação de planos de demissão voluntária. No fim dessa década, são retomadas as contratações em setores específicos, mas o quantitativo total de servidores cai ou permanece estável

A década de 1990 é marcada, em especial, pelos seguintes fatos: aumento significativo do quantitativo de cargos organizados em carreiras do serviço público federal; fortes distorções de remuneração, resultando em pressões pela reposição de perdas salariais; e desvios nas práticas de avaliação de desempenho das organizações públicas em decorrência das pressões por reposição das perdas salariais (KALIL et alli, 2005, p.11).

A partir de 2002, passa a ocorrer efetivo crescimento no número de servidores públicos, parte integrante de uma política de valorização da capacidade de gestão do Estado e de recuperação da força de trabalho

A história da administração pública no Brasil é pontuada por altos e baixos, por momentos em que a organização das atividades do Estado recebeu especial atenção e por outros nos quais não foi um tema da agenda de governo. No contexto das transformações globais que afetam a administração pública, a gestão de pessoas desponta como área fundamental para um melhor desempenho estatal. O desafio passa a ser a sua inserção estratégica nas estruturas e nos processos decisórios, o que implica a superação de uma cultura administrativa que não vê a questão dos recursos humanos com destaque (CARVALHO et ali, 2009, 103).

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CAPITULO II

RECONSTRUÇÃO

2.1. SOCIEDADE

Para propor um novo paradigma ético para a prestação dos serviços públicos temos que, de início, empreender uma investigação sobre quais são os referenciais significativos que mobilizam os comportamentos dos indivíduos dessa sociedade; indivíduos que utilizam esses serviços, ao mesmo tempo que são encarregados da constituição e da condução das instituições responsáveis pela sua prestação. Nessa breve reconstrução dos elementos estruturantes dos comportamentos presentes em nossa sociedade procuramos recuperar alguns conceitos e situá-los no contexto em que vivemos.

Apresentamos a seguir, a título de introdução à nossa investigação, uma carta de Lúcio Aneu Sêneca (4 a.C.–65 d.C), filósofo estoico, escritor e intelectual do Império Romano que deixa claro que o que vamos relatar sobre nossa sociedade atual é, de alguma forma, percebido há vários séculos.

A Moralidade Pública Degradada

As crianças ficam todas contentes quando encontram na praia alguns calhaus coloridos; nós preferimos enormes colunas variegadas, importadas das areias do Egito ou dos desertos do Norte de África para a construção de algum pórtico ou de um salão de banquetes com capacidade para uma multidão. Olhamos com admiração paredes recobertas de placas de mármore, embora cientes do material que lá está por baixo. Iludimos os nossos próprios olhos: quando recobrimos os tetos a ouro o que fazemos senão deleitar-nos com uma mentira? Sabemos bem que por baixo desse ouro se oculta reles madeira! Mas não são só as paredes ou os tetos que se recobrem de uma ligeira camada: também a felicidade destes aparentes grandes da nossa sociedade é uma felicidade «dourada»! Observa atentamente, e verás a corrupção que se esconde sob essa leve capa de dignidade. Desde que o dinheiro (que tanto atrai a atenção de inúmeros magistrados e juízes e tantos mesmo promove a magistrados e juízes!...), desde que o dinheiro, digo, começou a merecer honras, a honra autêntica começou a perder terreno; alternadamente vendedores ou objetos postos à venda, habituamo-nos a perguntar pela quantidade, e não pela qualidade das coisas. Somos boas pessoas por interesse, somos bandidos por interesse, praticamos a moralidade enquanto dela esperamos tirar lucro, sempre prontos a inverter a marcha se

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pensamos que o crime pode ser mais rendível. Os nossos pais habituaram-nos a dar valor ao ouro e à prata, e a cupidez que assim nos foi instalada ganhou raízes e foi crescendo conosco. Toda a gente, ao fim e ao cabo tão díspar em tudo o mais, está de pleno acordo quanto ao «vil metal»: só a ele aspira, só a ele deseja para os seus, e é ele a coisa mais preciosa que encontra para oferecer aos deuses em ação de graças! A moralidade pública degradou-se a tal ponto que a pobreza é objeto de maldição e causa de opróbrio, desprezada pelos ricos e odiosa aos pobres. (SÊNECA, 1991)

É possível observar na carta de Sêneca uma sociedade em que nada mais tem valor, mas tudo tem um preço, em que a felicidade está fundada nas aparências, na valorização da quantidade em detrimento da qualidade, na observância da moralidade apenas em virtude dos interesses próprios e numa certa inadaptação de uma parcela da sociedade que é desprezada por todos. Algumas características apontadas por Sêneca permanecem presentes em nossa sociedade e contribuem para o que o filósofo chamou de degradação da moral pública.

A moral é o horizonte referencial constituído e compartilhado por pessoas em uma sociedade, donde uma ação pode ser avaliada como justa ou injusta em determinado momento histórico. Ela surge a partir da constituição histórica de comportamentos, hábitos, costumes e práticas, tendo por base preceitos éticos originários. O valor de uma ação atribuído pela sociedade se dá sempre em relação a esse horizonte referencial, portanto, os valores que irão constituir todo o ordenamento social estão fundados na ética. Todas as nossas ideias e costumes são tributários de um pequenino núcleo ético que remeterá para o que é próprio ao caráter humano quando em convívio com o outro. A definição dessa propriedade, que fundamenta a ética, é justamente o maior desafio de quem a estuda e, na história da filosofia, é possível observar respostas diversas a essa questão. A moral, portanto, é o espaço que acolhe o desdobramento prático da ética no tempo. Trata-se do conjunto de significados inscritos no mundo que expressam esse desdobramento e orientam as nossas ações.

Por vezes, o que ocorre é o obscurecimento do núcleo ético do qual a moral é tributária. A repetição de práticas caracterizadas pelo esquecimento da constituição própria das relações dos indivíduos consigo, com o outro e com o mundo levam à lenta e gradual degeneração da moral. As consequências são absolutamente desastrosas para a sociedade. Esse afastamento entre o fundamento e a prática é a expressão da experiência de inadaptação dos agentes ao seu corpo social.

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Existe, em países periféricos como o Brasil, conforme escreve Jessé Souza, toda uma classe de pessoas excluídas e desclassificadas, dado que elas não participam do contexto valorativo de fundo – o que Charles Taylor chama de “dignidade” do agente racional – o qual é condição de possibilidade para o efetivo compartilhamento, por todos, da ideia de igualdade nessa dimensão fundamental para a constituição de um habitus (...) (SOUZA, 2003, p. 70). O conceito de habitus foi cunhado por Pierre Bourdieu em sua sociologia. O habitus remete para um conjunto de disposições para agir socialmente explicáveis e construídas e que não passam pela consciência de quem age. As regras sociais são respeitadas sem que os agentes precisem pensar para cumprir essas regras. Essas ações são caracterizadas pela ausência de percepção ou reflexão. Não há pensamento estratégico ou deliberação.

Uma sociedade democrática, que tenha indivíduos marcados por essa experiência de inadaptação, tende a apresentar no seu corpo social pessoas que se portam de modo impositivo para garantirem os seus direitos, sem se darem conta das responsabilidades que lhes cabem. Há um estranhamento desses indivíduos à estrutura social constituída. Essa postura/disposição assevera uma percepção de autonomização de si em relação ao outro. Para esses indivíduos, não importa se o outro vai respeitar ou não o seu direito; não importa se o fato de eles garantirem o que lhes é de direito terá como consequência o desrespeito ao outro. O outro desaparece como indivíduo a ser considerado pelo que ele é, e passa a ser tomado somente como um obstáculo a ser vencido para a consumação do que lhes cabe. O outro é assumido, no máximo, como mais uma variável em um cálculo de possibilidades; torna-se exclusivamente meio para a obtenção de um fim. Essas pequenas violências cotidianas são usualmente atribuídas a um déficit na educação do agente. Furar filas, não observar as regras de trânsito, jogar lixo no chão são exemplos do que queremos expor. São atitudes naturalizadas pelo hábito, decorrentes da experiência de não-pertencimento àquela comunidade. Jessé Souza sintetiza essa percepção de estranhamento pontuando que a sociedade moderna se singulariza precisamente pela produção de uma configuração, formada pelas ilusões do sentido imediato e cotidiano, que Taylor denomina “naturalismo”, e Bourdieu “doxa”, que produzem um “desconhecimento específico” dos atores acerca de suas próprias condições de vida. (SOUZA, 2003, p. 61)

O indivíduo não sabe mais por que age daquela maneira, ele simplesmente age. Ele reduz o tamanho do mundo, barrando a entrada de novas experiências, desenvolvendo uma alienação tanto dos terrores do mundo quanto de suas próprias

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angústias. Caso contrário, ficaria incapacitado para agir. O indivíduo acaba por entender que tem que se proteger contra o mundo e gera uma espécie de neurose pelo outro. Em suas experiências, esse sujeito nega a presença do outro como indivíduo.

Essa atitude naturalizada, que podemos tomar pela expressão psicanalítica junguiana de inconsciente coletivo, tem por consequência a ocorrência na sociedade de práticas que apesar de alienar o outro são, por muitas vezes, moralmente aceitas. Ao dar importância apenas aos efeitos de suas ações e desconsiderar o outro em suas escolhas, as pessoas atribuem ao outro uma papel instrumental que tem por consequência a negação da sua dignidade de ser considerado como sujeito de direitos e, principalmente, de ser considerado como sujeito autônomo capaz de decidir e de ser responsável por suas escolhas. O apartamento do outro do núcleo ético que funda a moral, leva os indivíduos a uma confusão entre o que é certo e errado, justo e injusto, dado que o comportamento de vários indivíduos dessa sociedade não remete mais para o bem comum, mas para interesses particulares e imediatos, obscurecendo a presença do outro como instância de validação de seus comportamentos. Ocorre gradualmente a degeneração da moral. Variantes morais passam a conviver numa mesma sociedade. São observadas práticas caracterizadas pela subversão de valores que são pilares de uma sociedade republicana e democrática. O indivíduo passa a se portar de modo reativo, procurando assumir uma conduta que o proteja da situação que se apresenta e que o livre de seu problema o mais rápido possível. O que é característico dessa prática é que não importa mais o que seria o certo ou o errado a se fazer. Trata-se de agir sem nenhum valor subjacente ou sentido transcendente. É a postura do sobrevivente. Bicca expressa essa disposição sublinhando o desconforto do indivíduo diante da farsa de uma vida sem vitalidade, da existência como mera sobrevivência, dentro da qual a busca desesperada por aquele cumulativo bem-estar na cultura termina por converter-se na mesma e sub-reptícia origem de mal-estar civilizatório. (BICCA, 2003, p.13)

O desdobramento de uma sociedade marcada pela presença de indivíduos que se comportam como sobreviventes é a degradação do Estado de direitos. A cidadania passa a ser caracterizada pela obtenção de privilégios. Os direitos são tomados por privilégios, uma vez que não são extensivos a todos os cidadãos. Se o individuo tiver seu pleito atendido pelo Estado, ele percebe que faz parte do corpo socialmente instituído, caso contrário ele busca, de maneira independente, garantir os seus direitos. Como pelas vias institucionais essa garantia é colocada em risco, apela-se, por muitas vezes, para vias corrompidas para efetivá-los. Desta forma, um direito torna-se um privilégio, uma troca

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de favores. A busca independente é perniciosa, pois coloca indivíduo contra indivíduo numa luta por privilégios e enfraquece as instituições que deveriam garantir os seus direitos. O que é bom para um será, necessariamente, ruim para o outro. O que inclui um, deixa o outro à margem.

Há uma espécie de institucionalização de uma prática que foi apelidada na sociedade brasileira por Lei de Gérson, que nada mais é que um princípio em que determinada pessoa age de forma a obter vantagem em tudo que faz, e tenta aproveitar-se de todas as situações em benefício próprio, aproveitar-sem aproveitar-se importar com questões éticas ou morais. Essa prática, reveladora de traços bastante característicos e pouco lisonjeiros do caráter de indivíduos brasileiros, contribuiu e contribui para a disseminação da corrupção e o desrespeito a regras de convívio para a obtenção de vantagens pessoais. Trata-se de uma atitude individualista de caráter protecionista diante da inadaptação ao ordenamento social; a uma percepção de não-pertencimento ao corpo social. A consequência é o esgarçamento do tecido social, das relações entre Estado e indivíduo e entre os próprios indivíduos que o constituem.

O subjetivismo parece revelar-se como uma resposta ao não reconhecimento social, uma espécie de entrada à força nesse espaço compartilhado em que o indivíduo entende que o acesso não lhe é facultado. É estabelecida uma relação utilitária com o que é comum a todos, uma relação desprovida de envolvimento com o objeto ou com as pessoas que compartilham de seu uso. Há uma desconsideração pelo que é comum, uma vez que a medida da ação é a consumação de um interesse particular. Como enfatiza Benoist, a sociedade permanece como simples soma de átomos individuais como vontades soberanas, movidas todas igualmente pela busca racional de seu melhor interesse. Cada agente define seus objetivos por si mesmo, de maneira voluntária, e não se adere à sociedade mais que sobre uma base instrumental. (BENOIST, 2013, p. 103).

No âmbito da sociedade encontra-se difundida uma lida pragmática com os problemas que obscurece a presença das pessoas em suas particularidades, tomando um indivíduo genérico em suas considerações e debates sobre como abordar e como propor soluções para esses problemas. No pragmatismo, o efeito da ação para a solução de um problema comum é a própria medida para a sua avaliação.

Parece haver uma relação de forças em nossa sociedade, estabelecida entre a visão subjetivista do indivíduo e a visão pragmática do Estado. Enquanto o subjetivismo ignora o interesse público e busca consumar um interesse particular, o pragmatismo ignora o indivíduo como participante do corpo social, autonomizando as decisões de

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âmbito coletivo dos anseios dos cidadãos. Esse contexto é pernicioso para as relações entre os indivíduos e entre estes e o Estado. O indivíduo não legitima as decisões do Estado, porque não se reconhece nelas e, desamparado, parte sozinho para resolver os seus problemas, apartado do Estado e dos outros. O Estado por sua vez, em sua obsessão com números, percentagens e metas, desconsidera que os interesses das pessoas devem vir em primeiro lugar.

A degradação moral também se manifesta em nossa época através de uma generalizada e, por muitas vezes, conveniente ausência ou diluição da responsabilidade que cabe a cada indivíduo. Amparado por leis que regulam a convivência em sociedade, pelo senso comum ou pela justificativa de que não há como imputar responsabilidade a quem não tem escolha, o indivíduo se esconde utilizando falácias de quem age por medo ou por covardia. Quem é covarde nunca é responsável por suas ações. Quem age por medo entende que ser responsável é agir em conformidade com a norma e se isenta de qualquer ação que não esteja prevista em algum código. Os governos em geral reforçam tal visão ao tentar regular os comportamentos dos indivíduos mediante a adoção de expedientes legislativos, imputando sanções a quem não os cumpre. Com isso, eles transferem uma responsabilidade de ordem moral para a ordem legal e tomam de assalto a liberdade do indivíduo.

2.2. SERVIÇO PÚBLICO

Buscaremos nessa seção, identificar os fatores que contribuíram para que a prestação dos serviços públicos no Brasil seja percebida pelos usuários como insuficiente e precária. Essa investigação tentará apontar para motivos de ordem pré-estrutural, ou seja, nossa intenção é elencar razões subjacentes aos problemas evidentes que todo usuário enfrenta no cotidiano.

O Código de Ética Profissional do Servidor Público Civil do Poder Executivo Federal, aprovado pelo Decreto Nº 1.171, de 22 de junho de 1994, busca regular condutas voltadas para a prestação dos serviços de maneira a resguardar a ideia de que na administração pública a finalidade é sempre o bem comum. Segundo as suas regras deontológicas, os atos, os comportamentos e as atitudes dos servidores serão direcionados para a preservação da honra e da tradição dos serviços públicos.

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A estrutura voltada para prestação dos serviços públicos está apoiada em relações historicamente construídas nos âmbitos social, político e econômico. Ao longo do tempo essas relações constituíram comportamentos sedimentados tanto dos prestadores dos serviços quanto dos seus usuários. Por parte dos prestadores é possível observar exemplos de condutas repreensíveis como o descaso com que as demandas dos usuários são tratadas, o desrespeito frequente a que usuários são submetidos, a leniência dos gestores dos serviços para com faltas de seus subordinados e o desprezo pelo bem público, para elencarmos apenas algumas. Do lado dos usuários podemos apontar a fraude, o vandalismo e a resignação, exemplificados como alguns dos comportamentos existentes e dignos de reprovação.

A grande maioria dos servidores públicos executa funções que são caracterizadas pelo trabalho burocrático, ou seja, de cunho administrativo e confinado em escritórios. Essas características promovem um distanciamento entre o servidor e o serviço público oferecido pela instituição em que trabalha. Mas há um tipo de alienação mais perversa. O distanciamento entre o servidor e as pessoas que usufruem esses serviços. Esse distanciamento retira o caráter humano do trabalho que se executa. Muitas vezes o mais importante é cumprir a rotina burocrática estabelecida do que resolver um problema do usuário. Essa perda de percepção do outro é evidenciada e reforçada pelos processos internos que são criados para controle e verificação de resultados do desempenho do servidor. O servidor se vê envolto ao preenchimento de uma quantidade enorme de formalidades, enquanto os seus clientes aguardam pelo serviço. Uma distorção importante e perigosa decorre da diferença entre a avaliação do desempenho do servidor, que é medida pelo cumprimento das formalidades, e a efetiva prestação do serviço, relacionada ao bem estar da população. A alienação entre a avaliação interna da qualidade do trabalho e a qualidade do serviço percebida pelo usuário é evidente. Essa alienação provoca por um lado a insatisfação generalizada da população por conta de um serviço mal prestado e, por outro, a insatisfação do servidor que não consegue ver o seu trabalho árduo transformado na prestação de serviços de qualidade para a população.

A alienação manifesta-se devastadora para a autoestima e para a motivação do servidor que, não raras vezes, sucumbe diante da ausência de possibilidades de enxergar a efetivação de seu trabalho na melhora da prestação do serviço e se torna um mero cumpridor de formalidades, o que garante o seu emprego e os seus vencimentos. Há,

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sem dúvida, servidores que por interesse se escondem nas formalidades, mas há os que são sufocados por elas.

No âmbito institucional, a influência política é perniciosa para a definição de estratégias e de prioridades para a execução de atividades vinculadas a prestação de serviços públicos. Por vezes, os contratos que garantem a segurança e a estabilidade de um setor da economia são rompidos ou descumpridos em virtude da interferência externa aos assuntos da instituição. Planejamentos de longo prazo são interrompidos por demandas extraordinárias e emergenciais que atropelam o fluxo de atividades previsto e exigem um retorno de caráter duvidoso quando consideramos que o fim da prestação do serviço é o bem público. Outra manifestação desse tipo de interferência no cotidiano do serviço público são as nomeações para cargos comissionados de comando que têm suas nomeações vinculadas a interesses políticos. A influência política, portanto, é determinante para a definição das prioridades institucionais que acabam por atrapalhar o planejamento e a execução da prestação do serviço e desviar a atenção da sua real finalidade.

A situação que evidenciamos no serviço público no Brasil é a desmotivação de grande parte de seus agentes públicos ante a sua baixa eficiência, o obscurecimento do vínculo existente entre o seu trabalho e o serviço prestado e a ingerência política em sua atividade. Apesar desse cenário, o espaço para a ética no serviço público continua preservado. Se for muito difícil vislumbrar uma mudança com origem nas instituições ou nas instâncias de governo em direção ao servidor público, é possível efetivar uma mudança de postura no âmbito dos agentes públicos. Uma mudança maciça nesse nível poderia legitimar e sustentar demandas mais contundentes da sociedade e dos servidores por mudanças estruturais nas instituições e pelo respeito às missões de cada instituição, de maneira que reflitam em serviços públicos prestados com maior qualidade para os usuários.

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CAPITULO III

DESTRUIÇÃO

Nosso propósito nessa seção é o de aprofundar a análise iniciada no capítulo anterior e ampliar a discussão sobre as bases que sustentam as ações dos indivíduos em nossa sociedade. Intentamos, ainda, começar a problematizar essas bases e apontar para possibilidades diversas para o enfrentamento do desafio que é viver de maneira ética e como esse tipo de prática pode refletir na prestação de serviços públicos de melhor qualidade.

Nossa época é caracterizada pela complexidade. A certeza nunca esteve tão fugidia. Tudo que era sólido se desmanchou no ar. A linha que orientou muitos caminhos pregressos está desbotada e quase não é mais visível. Em seu lugar surgiram diversas linhas, aparentemente frágeis, que apontam para as mais variadas direções. A bússola deixou de apontar somente para o norte. Por muitas vezes nos sentimos à deriva e ao sabor dos ventos.

Vivemos num mundo de probabilidades, num mundo gerido por um princípio de incerteza, que é cada vez mais um princípio determinante de tudo o que acontece. A situação da complexidade, assim que é percebida como tal, sobretudo quando se torna clara a existência de fenômenos contraditórios, provoca insegurança e medo. (PINTASILGO, 2012, p. 411 e 378).

Vivemos na era da informação. Estar informado é um valor na sociedade em que vivemos. Todos sabem de tudo, mas nada sabem do todo. Todos sabem de tudo, mas poucos sabem de si. Todos sabem de tudo, mas poucos, muitos poucos, sabem. O descarte quase imediato da informação que nos chega, nos revela o seu caráter eminentemente instrumental em nossas vidas. Não há transcendência possível a partir da informação. Ela sempre remete para o que já se encontra disposto. A sua orientação é sempre para dentro, ela lida com o revelado. Ela diz mais sobre o que já sabemos, não requisita o nosso imaginário. A sua importância aparece quando ela é complementar, quando preenche um vazio esperado. Ela se expande até o limite do já conhecido. Ela não extrapola, não vai além. Não há como requerer da informação mais do que ela pode dar, porém, ela não deve ser considerada um valor per se.

Em nossos dias a informação traveste-se de conhecimento. De um lado a limitada operação de conceitos e a esterilidade de ideias, do outro o culto à novidade e

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uma revolução no vazio. Essas são as duas faces da moeda da pós-modernidade. Enquanto há um grande grupo concentrado em realizar exegeses exaustivas de obras pregressas, que se assemelham a análises jornalísticas de fatos, há outro grande grupo voltado para a dissolução da tradição e o surgimento da maior e melhor teoria de todos os tempos da última semana. O conhecimento tem o seu tempo. Nesses nossos dias, as análises nascem mortas, enquanto as teorias nascem sempre prematuras.

Vivemos uma vida encurtada, seja pelo recorte mínimo do mundo que buscamos perscrutar e, a partir do qual nos movimentamos, seja pelo foco absoluto no presente e a ausência de referenciais prévios para nos orientar. É uma vida em que se opta pela neurose ou pela esquizofrenia. Vivemos num tempo desintegrado. Cada visão dessas de mundo se apega a um momento específico e o enxerga como autônomo. A informação tem, justamente, essa característica. Ela lida com fatos isolados no tempo e, talvez por isso, ela seja tomada por conhecimento hoje.

A ambiguidade, a curiosidade e o falatório marcam nosso cotidiano e obscurecem as relações que estabelecemos com o mundo e que nos identificam nele. A obviedade do que fazer não mais existe. Nada mais nos provê uma sustentação inabalável para as nossas condutas. Estamos carentes de fundamento. Vivemos de maneira contingente. Enquanto nos movemos tudo se move. A ausência de referencial provoca-nos vertigem. Enquanto nos parece que, em comparação a outros momentos históricos vivemos dias melhores, assumindo o critério do bem-estar geral da população, da ampliação de seu espectro de direitos e de uma vida sem tantos sacrifícios físicos para a maioria, há uma sensação de insegurança e incerteza que nos atravessa e nos oprime.

O campo moral parece ter rumado para o relativismo, dadas as mudanças históricas marcadas pelo desenvolvimento científico e tecnológico desde o fim do século XIX. Houve, portanto, o surgimento de uma realidade mais complexa e, ao mesmo tempo, uma desorientação para se comportar nesse mundo. A rearticulação e a expansão das relações consigo, com o outro e com o mundo, decorrentes dessa proliferação de possibilidades do mundo, promoveram o alargamento do horizonte existencial do homem e o desaparecimento de uma orientação inequívoca para a sua conduta.

As correntes de pensamento ético inspiradas na metafísica, que por séculos nos socorreram, revelaram-se insuficientes para lidarem com a complexidade que se apresenta em nossa época.

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A metafísica, ao tomar como horizonte de suas investigações o infinito, aparta-se de tudo que caracteriza o homem. Algumas dessas investigações de cunho metafísico, caracterizadas por uma abordagem que parte do infinitismo, acentuam no homem o que lhe é constante e imutável, atribuem-lhe uma razão calculadora orientada para sustentar os fundamentos últimos que correspondam às concepções instituídas e as causas que expliquem os fenômenos, pois nada é sem causa. Tudo que é, é justificável. Trata-se de encontrar a correspondência entre o mundo e os fundamentos que o sustentam. Em suma, a metafísica busca na ontologia causas e verdades e na ética máximas e regras que sejam infinitas.

A metafísica é, portanto, a responsável pelo encurtamento do campo de compreensão dos fenômenos, ao estabelecer estruturas prévias e controladas onde os acontecimentos devem se dar. Ela esgota em algumas poucas determinações a multiplicidade constitutiva do mundo, reduzindo-o a alguns poucos fenômenos imediatamente entendidos e explicados segundo as suas causas identificadas. Dentro dessa concepção, algumas poucas verdades bastam para que o homem ocupe seu lugar no mundo em que vive e se resigne com orientações razoáveis que o auxilie no entendimento do que acontece à sua volta. Trata-se de um esforço do homem pela manutenção das suas relações existentes com o mundo, relações estas, que o caracterizam, ou seja, que dizem quem ele é, ou, ainda, que dizem respeito ao que ele acredita ser a sua essência. O que podemos verificar é que esse modelo não dá conta da complexidade que temos diante de nós.

Como derivado dessa desarticulação entre o mundo que se nos apresenta e a tradição metafísica há diversos descompassos causados pela insistência em tomarmos a realidade atual a partir de seus preceitos. O homem ainda se orienta no mundo segundo um conjunto de cálculos matemáticos de perdas e ganhos, fundado em uma razão puramente especulativa, porém, agora falta-lhe o fundamento último metafísico que sustenta as suas ações. Diante dessa falta, os resultados das ações passaram a ocupar esse espaço de estruturação e influência no processo de escolha. Passamos então de uma razão calculadora metafísica para uma razão tecnicista. A motivação para a escolha não se encontra mais fora do campo de ação circunstancial, mas encontra-se voltada para os efeitos obtidos a partir da escolha em determinado contexto.

De mãos dadas com o caráter de complexidade que se encontra presente nesse momento em que vivemos, há o obscurecimento de nossa interdependência constitutiva. O ideário iluminista parece ter contribuído de forma decisiva para que ideias como a

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liberdade e a igualdade não tivessem o terreno propício para que se realizassem. Ao substituir a ideia de fraternidade pela ideia de progresso do ideário proposto pelos participantes da Revolução Francesa de 1789, os iluministas retiraram as condições necessárias para que as ideias de liberdade e de igualdade tomassem forma em nossa sociedade.

A ideia de progresso parece ter se autonomizado das outras duas, ao mesmo tempo que não tem a vocação necessária para fornecer o campo para que elas tivessem condições de realização. O progresso autonomizado, caracterizado principalmente pelo progresso econômico, ganhou concretude através de bens materiais e se associou a ideias distintas e, até por vezes opostas, às ideias de liberdade e de igualdade.

A fraternidade é uma ideia que caracteriza de alguma forma a nossa interdependência constitutiva. Ela explicita a necessidade de se estabelecer relações interpessoais que tenham o outro como presença inexorável no horizonte de possibilidades de ação. Sem a presença do outro não se estabelecem os limites da liberdade e a própria noção de liberdade é colocada em xeque, uma vez que ela será tragada pela solidão e pela angústia que se abaterão sobre o sujeito radicalmente livre.

A vida só ganha alguma familiaridade quando compartilhamos sentidos e significados com os outros que encontramos no mundo. Nossa identidade é constituída de igualdades e diferenças que dependem dos outros para existirem. A fraternidade tira as noções de liberdade e igualdade do terreno das abstrações metafísicas e torna possível a sua realização a partir de um campo familiar, estruturante de identidades.

A complexidade e a abstração metafísica parecem ter gerado o impasse que Edgar Morin descreve da seguinte forma: “Se todo conhecimento é reconstrução e percepção, não pode ter valor de reflexo absoluto do real. Somos, portanto, obrigados a negociar com a incerteza.” Ele continua: “Há também o fechamento próprio à tecnocracia, que só vê as dimensões quantitativas, econômicas, e esquece as outras facetas humanas. Como estamos no reino do pensamento mutilante ou fragmentário, a necessidade de contextualizar os problemas é de fato vital. De que forma? Todas as reformas começam marginalmente na medida em que existe uma contradição: como reformar os espíritos sem reformar antes o ensino e por conseqüência as instituições? Mas como reformar as instituições sem reformar antes os espíritos?”

A provocação de Morin (como reformar as instituições sem reformar antes os espíritos?) é o ponto de inflexão que nos leva de volta ao intento de nossa investigação nesse trabalho. A nossa aposta é de que a resposta a essa pergunta esteja na promoção

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de uma mudança do paradigma ético a partir do qual os indivíduos em nossa sociedade se orientam, e que tenha por consequência a melhoria na prestação dos serviços públicos no Brasil.

O que pretendemos, em última instância, é propor uma reforma das instituições que prestam serviços públicos a partir de uma conversão, ou de uma transformação nos espíritos dos servidores, que se encontram, inexoravelmente, implicados. Como pontua Pintasilgo, torna-se vital uma nova competência: a de refazer constantemente a visão do mundo na sua complexidade e na sua interdependência em todos os níveis. (PINTASILGO, 2012, p. 386).

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CAPITULO IV

CONSTRUÇÃO

4.1. CUIDADO

De maneira a sintetizar o que procuramos descrever nos momentos pregressos dessa nossa investigação de cunho hermenêutico, temos que os comportamentos dos indivíduos em nossa sociedade estão marcados pelo relativismo. Se por um lado podemos observar uma componente subjetivista, que tem como único fundamento os interesses dos indivíduos, por outro temos uma componente pragmática, que tem como fundamento interesses coletivos em que os indivíduos não se reconhecem.

O relativismo ocupa um espaço importante para o indivíduo na lida com os seus problemas em sociedade. Os fundamentos metafísicos perderam terreno na constituição do núcleo ético que sustenta o horizonte moral a partir do qual se indivíduo se orienta. Os resultados das ações ganharam mais importância do que as motivações subjacentes ou transcendentes que levaram o indivíduo a realizar as suas escolhas. O tecnicismo ganhou terreno e as relações com os outros indivíduos ficaram muito parecidas com as relações com outros objetos que os cercavam. Toma-se o outro por coisa. O valor do outro passou a ser instrumental.

Para que seja possível propor as mudanças que constituiriam um novo paradigma para a orientação dos espíritos dos indivíduos de nossa sociedade precisamos, antes, introduzir os conceitos filosóficos que nos embasarão nessa árdua tarefa. Começaremos com a apresentação de um conceito central em nossa proposta: o conceito de cuidado. Esse conceito é recuperado por Michel Foucault em sua obra intitulada Hermenêutica do Sujeito, que apresenta o conteúdo das aulas de um curso ministrado pelo professor na década de 80 do século XX.

Nessa obra, o pensador francês busca resgatar da Antiguidade a noção de cuidado a fim de estudar as relações entre subjetividade e verdade. Trata-se de uma tentativa de abordar essas relações não mais a partir do primado do conhecimento, mas a partir do cuidado. Ao longo da tradição, a verdade consistia no conhecimento das relações possíveis estabelecidas entre um sujeito cognoscente e um objeto de

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conhecimento, ambos dados e destacados um do outro. A verdade ficou resumida à adequação da ideia à realidade ou da realidade à ideia, permanecendo como questões o acesso do sujeito ao objeto, no caso do realismo, e a ilusão solipsista, no caso do idealismo. Derivada desta tradição, a compreensão ôntica do cuidado esteve quase sempre associada a certo zelo dedicado a resguardar de danos aquilo que se apresenta no ente como essencial à sua constituição. Segundo a concepção metafísica de homem, carecem de especial atenção as suas propriedades e faculdades, remetidas a um horizonte essencial infinito. Portanto, o que é colocado em risco na compreensão cotidiana e, que carece de cuidado, é o que faz daquele ente aquilo que ele é, segundo a significância estável e confiável do discurso sedimentado. Cuida-se do que já existe, do que está dado. Trata-se de um esforço do homem pela manutenção das suas relações existentes com o mundo, relações estas, que o caracterizam, ou seja, que dizem quem ele é, ou, ainda, que dizem respeito ao que ele acredita ser a sua essência.

Em direção diametralmente oposta, a noção de cuidado em vigor na Antiguidade, resgatada por Foucault, implica a necessidade de uma transformação do próprio sujeito para que este tenha acesso à verdade. Nesta abordagem, assim como o sujeito, a verdade também não se encontra dada. Portanto, sujeito e verdade estão implicados, não podendo ser abordados de forma isolada. Segundo Foucault: “não pode haver verdade sem uma conversão ou sem uma transformação do sujeito.” (FOUCAULT, 2004, p.20)

No início do século XX, o filósofo alemão Martin Heidegger em sua obra Ser e Tempo toma o conceito de cuidado como central para a discussão da dinâmica do ser no tempo, ou seja, do que se apresenta como determinado para nós de início e na maioria das vezes e de suas possibilidades de mudança ao longo do tempo. O cuidado em Heidegger é abordado segundo a perspectiva de possível instância rearticuladora e unificadora dessas determinações. Trata-se da estrutura que promove a articulação entre o que é possível para o homem e o que se encontra disposto no mundo. Suprime-se, portanto, a distância entre essência e existência. É no cuidado que a possibilidade ganha realidade, num processo desvelador de modos de ser possíveis, projetados no mundo pelo homem.

O homem para Heidegger é esse ente caracterizado por se autodeterminar no tempo. Ele faz escolhas e toma decisões segundo a rede de significações que o mundo lhe apresenta, por isso ele é ser-no-mundo. Heidegger considera o homem sempre em sua dinâmica de ser-no-mundo. Ele é sempre essa dinâmica de cuidado. O homem é um

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ser situado em um mundo e no tempo. Heidegger nunca se refere ao homem como homem, mas como ser-aí, onde o aí é esse acontecimento que se dá situado num espaço e num tempo. Essa opção feita por Heidegger é manifesta para que em suas investigações o homem não seja encarado como um ente determinado essencialmente, visada característica da tradição metafísica.

O cuidado é determinação de si mesmo, é a assunção do homem como performance. A apropriação de um comportamento ou de um discurso do mundo se dá quando essa apropriação ou esse discurso passam a ser seus, passam a dizer respeito sobre si, segundo o seu caráter de possibilidade sempre em aberto. O homem deixa de existir em virtude do mundo e passa a existir em virtude de si mesmo. Passa-se de uma existência vivida a partir de uma instância impessoal, onde a fuga de si é característica, para uma existência pessoal, ou seja, a partir de suas possibilidades, desde si e para si.

A Fábula de Higino apresentada no § 42 de Ser e Tempo, transcrita abaixo, ilustra bem a assunção do ser-aí heideggeriano como obra inacabada, moldada ao longo de sua existência pelo seu caráter de cuidado.

Quando um dia o Cuidado atravessou um rio, viu ele terra em forma de barro: meditando, tomou uma parte dela e começou a dar-lhe forma. Enquanto medita sobre o que havia criado, aproxima-se Júpiter. O Cuidado lhe pede que dê espírito a esta figura esculpida com barro. Isto Júpiter lhe concede com prazer. Quando, no entanto, o Cuidado quis dar seu nome a sua figura, Júpiter o proibiu e exigiu que lhe fosse dado o seu nome. Enquanto Cuidado e Júpiter discutiam sobre os nomes, levantou-se também a Terra e desejou que à figura fosse dado o seu nome, já que ela tinha-lhe oferecido uma parte do seu corpo. Os conflitantes tomaram Saturno para juiz. Saturno pronunciou-lhe a seguinte sentença, aparentemente justa: Tu, Júpiter, porque deste o espírito, receberas na sua morte o espírito; tu, Terra, porque lhe presenteaste o corpo, receberás o corpo. Mas porque o Cuidado por primeiro formou esta criatura, irá o Cuidado possuí-la enquanto ela viver. Como, porém, há discordância sobre o nome, irá chamar-se ‘homo’ já que é feita de ‘humus’. (HEIDEGGER, 2006, p.266)

O cuidado de si se resume a dizer que o seu ser está sempre em jogo. Não há fundamento último que defina quem você é. Não há nada certo, apenas o provável. Todas as referências de sua vida assumem um caráter provisório. É possível estabelecer o seguinte paralelo: o cuidado está para a ontologia, assim como o ceticismo está para a epistemologia. Não se trata da negação de tudo, apenas o reconhecimento que a escolha que se fez é uma entre tantas possíveis. Tudo é contingente, tudo é passível de dúvida e de mudança.

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De início e na maioria das vezes o mundo nos fornece as orientações para que nos movimentemos dentro da estrutura social em que nos encontramos. O homem que abdica do seu caráter de cuidado movimenta-se segundo as determinações que recebe do mundo e não as questiona. Segue adiante em seu cotidiano e quando interpelado por que age desta ou daquela forma, afirma que não sabe o motivo (talvez o mais honesto); que alguém mandou agir assim; que não conhece outra forma de agir; que todos agem daquela forma, etc. Todas essas ações estão marcadas por nunca estarem em questão, por não existirem dúvidas nas escolhas realizadas, por um certo automatismo irrefletido. É o modo como nos orientamos no nosso cotidiano. Tal modo de ser é denominado por Heidegger como impróprio.

A autodeterminação parece uma tarefa apartada do cotidiano, uma vez que temos que seguir inúmeros trâmites consagrados para nos movimentarmos no mundo. Se autenticidade for entendida como a criação de regras e modos de ser apartados da realidade, não há como ser autêntico ao tomar um ônibus ou ao fazer compras. Mas é possível ser cuidadoso em nosso cotidiano. Não precisamos criar novas formas de agir no nosso dia-a-dia, mas se nos apropriarmos das existentes e nos responsabilizarmos pelas nossas ações estaremos agindo de maneira cuidadosa e autêntica. A apropriação sempre terá início com o questionamento da convenção que nos utilizamos para realizar as coisas mais simples. E se a resposta é a assunção da convenção, mesmo que de forma contingente, não há como escapar da responsabilidade diante de tal ato.

As convenções, determinações, orientações do mundo são compartilhadas por todos. Se não somos cuidado, se não as questionamos, acabamos por escolher que o estado das coisas permaneça. Se atribuímos ao mundo o fornecimento exclusivo da motivação para as nossas escolhas, optamos por reforçar as estruturas existentes. A responsabilidade é empurrada para o mundo. Justificativas como “foi ele que nos orientou” ou “nós só fizemos o que todos fazem” são apenas tentativas de desvincular a nossa conduta de nossa responsabilidade, porém, continuamos responsáveis por nossas ações. E, abdicando de sermos cuidado e sendo irresponsáveis com as nossas ações, assumimos a nós mesmos como sujeitos descuidados e irresponsáveis para com as convenções, determinações, orientações do mundo que, por sua vez, serão referência para as ações de outras pessoas.

Da mesma maneira, quando somos cuidado, seja nos apropriando de determinações prévias do mundo, seja modulando esses modos de ser e criando novas possibilidades, reforçamos os modos de vida existentes ou os alteramos.

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