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A palavra ética refere-se aos costumes, condutas e comportamentos de um indivíduo dentro de uma sociedade. É o conhecimento, obtido por meio da dialógica reflexiva, que pretende orientar a formação de um caráter justo, íntegro e humanizado. Etimologicamente as palavras “ética” e “moral” têm significados semelhantes, sendo comum o emprego de uma pela outra (CORTINA, 2003, p.15). Contudo, ética trata-se de um saber filosófico que se utiliza da reflexão sobre o caráter, sendo um fenômeno abrangente, universal e generalizável. Já a moral, se refere à formação do caráter na vida cotidiana, relacionada a fenômenos culturais específicos, envolvendo os valores de cada grupo social (GARRAFA, PORTO, 2002, p.9). Enquanto a moral tenta conduzir as ações práticas dos indivíduos, tentando orientar para uma sociedade justa e feliz, as teorias éticas tentam responder questões mais filosóficas que deem conta de explicar e entender o fenômeno da moralidade (CORTINA, NAVARRO, 2005a, p. 51).

Como parte da Filosofia, a Ética é um tipo de saber que se tenta construir racionalmente, utilizando para tanto o rigor conceptual e os métodos de análise e explicação próprios da Filosofia. Como reflexão sobre as questões morais, a Ética pretende desdobrar os conceitos e argumentos que permitam compreender a dimensão moral (2005, p. 09). Desde sua origem na filosofia grega, a ética trata de um saber normativo, ou seja, um saber que pretende orientar a conduta humana, que considera a moral uma conduta a ser recomendada (CORTINA, NAVARRO, 2005a, p. 104).

Quando em sociedade adjetivamos alguém de “pessoa ética”, na realidade estamos denominando o que conhecemos da sua conduta moral, estamos querendo demonstrar que tal pessoa possui uma conduta reflexiva diante das suas tomadas de decisões, reflexões que o permitirão ponderar qual a melhor conduta a ser seguida em determinado contexto de problema ético. A ética seria assim “um chamamento para o humano, uma forma de contraponto à violência da desigualdade”, seria uma “referência valorativa da centralidade do homem” no mundo

(SARMENTO, 2012, p. 112), da centralidade dos valores na moral, e da centralidade da moral na humanidade do próprio homem.

Toda reflexão ética implica uma análise entre a moral da sociedade e a moral própria, para que um “juízo moral” se estabeleça sobre determinado assunto. Essa reflexão dialógica (moral do indivíduo/moral da sociedade) que constitui em si a própria ética é fundamental à sociedade que objetiva a justiça social, pois nem sempre os valores mais valorizados, mais estimados, mais caros a uma sociedade são valores “humanizadores”.

Apesar do caráter polissêmico do termo “humanização”, podemos entendê-lo como um conceito transversal, que vem se consolidando no plano institucional das políticas de saúde e na própria organização do SUS. O conceito de humanização se afirma na criação de espaços de diálogo e de troca de saberes entre usuários, trabalhadores e gestores de saúde. Diferente da concepção cristã de caridade anterior à década de 1980, que acabou dando suporte e justificando políticas paternalistas, o conceito de humanização procura consolidar a ética da reflexão sobre os modos de agir e pertencer ao coletivo, buscando sempre fazer “com o outro” e não “pelo outro”, na busca de alternativas adequadas às necessidades individuais e coletivas (BENEVIDES, PASSOS, 2005; SOUZA, MENDES, 2009).

Enxergando a humanização sob esta ótica de diálogo e construção coletiva, percebe-se que determinadas concepções morais, podem não ter passado por reflexões filosóficas, construídas solidamente através de inúmeros argumentos para se chegar numa determinada doutrina moral. Ou seja, a moral vigente pode ter sido construída sem passar pelo crivo da ética (CORTINA, NAVARRO, 2005a, p.10).

(...) consolidamos valores diferenciados, onde a justiça, a igualdade e a equidade veem sendo suplantadas por um totalitarismo mercantil (onde a competição, a segmentação e a seletividade são os traços que o definem), ou melhor, uma nova expressão ético-valorativa da sociedade contemporânea, muitas vezes encoberta pela generalização positiva de uma sociedade global (SARMENTO, 2012, p. 111).

Mas afinal de onde vêm esses valores? Que “bem” é esse que pretende guiá-los? Pensadores como Gracia (2011) afirmam que valorar determinados conceitos, modos de pensar e agir sempre foram uma necessidade biológica humana:

Cuando las cosas son complejas, y no hay duda de que esto del valor lo es, nada mejor que tomarlas desde el principio, unico modo de verlas em perspectiva. En el caso de los valores eso nos obliga a retornas hasta los mismos orígenes de la especie humana. La valoración es en el ser humano una necesidad natural, um fenômeno biológico. Sin valorar, nuestra vida sería imposible. Y ello por razones de estricta supervivência (GRACIA, 2011, p. 9).

De acordo com Gracia (2011), toda vez que o homem modifica o meio em que vive, humanizando-o, ou seja, transformando natureza em cultura, ele obrigatoriamente passa por um momento de projeção e de valoração, pois ele modifica algo para melhorar sua vida, para acrescentar valor a determinadas ações ou coisas.

De hecho, la realización del proyecto no tiene otro objeto que el de añadir valor a las cosas. La cultura es ese depósito de valor. De ahí, concluye Zubiri, que el ser humano no se halle “ajustado” al medio, como el animal, sino que tenga que hacer, a através del proyecto, su propio ajustamiento. Es decir, tiene que “justi-ficarse”. Por eso, concluye Zubiri, el ser humano no es una realidad “natural” sino “moral” (GRACIA, 2011, p. 11).

Se, ainda de acordo com Gracia (2011), toda cultura humana se fundamentou sobre processos de valoração é de se esperar que o conteúdo desses valores já tenha há muito, sido analisados pela Filosofia, embora com outros nomes, como as chamadas “virtudes” da filosofia clássica.

Para os filósofos da antiguidade clássica, as virtudes (o hábito de se exercitar/vivenciar determinados valores) eram qualidades “puras”, verdadeiras, transcendentes. Pensadores como Sócrates apostavam na busca pela verdade através da introspecção e do diálogo, onde cada ser humano encontraria dentro de si o “bem” que guiaria suas ações e moldaria suas virtudes. Para Platão e seu discípulo Aristóteles, a busca da eudaimonia (por vezes traduzida como felicidade) é que embasaria as virtudes ideais dentro de uma sociedade. Aristóteles acreditava que existe moral porque os seres humanos buscam a felicidade, e que para encontrá- la precisam das orientações morais, que trariam o entendimento de que virtudes qualificariam um caráter adequado para essa finalidade

(HAMILTHON, 2001, p. 88-91; CORTINA, NAVARRO, 2005a, p. 51- 60).

As virtudes foram definidas por Aristóteles como “uma disposição de caráter a qual se distingue em duas “espécies”: intelectual, dada por meio do ensino, e moral, adquirida pelo hábito” (ARISTÓTELES, 1979). Estas reflexões iniciadas pelos filósofos gregos compõem hoje um dos grandes campos da Ética ou “Filosofia Moral”. Atualmente entendemos as virtudes como valores - qualidades que possuem profundo conteúdo (CORTINA, NAVARRO, 2005a, p.74), e que irão compor a “qualidade moral” de uma determinada população. Assim, conforme a sociedade opta (de forma consciente, ou não) por priorizar determinados valores, ela faz com que a moral vigente “balance” para uma determinada direção. Podendo a moral então “pender” para uma direção mais ou menos humanizadora, dependendo de quais valores essa comunidade assume ou “capta” como justificativa de suas ações.

É interessante destacar da filosofia ateniense, a sua concepção de não existência de realização individual separada da convivência em sociedade. Para aqueles gregos, a “polis” (cidade) ideal, só poderia ser alcançada por meio de uma comunidade que entende esse entrelaçamento entre individual (pré-determinado pela posição social) e coletivo e que serve a sua cidade de acordo com todos os valores de que ela necessita para seu pleno bem comum. Esse entendimento de doar o melhor de si para “servir” a comunidade fez com que alguns gregos - aqueles pré- determinados - fossem os primeiros verdadeiros “cidadãos” da história1. Estes homens eram assim chamados por participar ativamente da política de sua polis, entendendo que não haveria plenitude para um único cidadão se o bem comum de toda a comunidade não fosse antes atingido (HAMILTON, 2001, p. 24).

Foi sob esse fundamento que a Grécia investiu na educação, entendendo esta como sendo o sentido de todo o esforço humano. Assim, a educação era pensada como parte ativa do desenvolvimento da sociedade, sendo a formação do homem grego, a Paidéia, parte indissociável da vida comunitária em todos os seus aspectos, político, econômico, social, e moral (JAEGER, 1994):

(...) uma vez que o desenvolvimento social depende da consciência dos valores que regem a vida

1 Não aceitando a descriminação social e de gênero presente na época, mas focando na concepção da responsabilidade daqueles que eram considerados cidadãos.

humana, a história da educação está essencialmente condicionada pela transformação dos valores válidos para cada sociedade. À estabilidade das normas válidas corresponde a solidez dos fundamentos da educação (1994, p.5).

Sob esse olhar, percebe-se que a sociedade grega não enxergava de forma desconectada os valores morais e políticos. Essa permeabilidade dos valores morais da sociedade para dentro das instituições políticas pode ser observada atualmente por meio das políticas de participação social, onde muitas vezes podemos observar conflitos na reaproximação desses valores (sociais e institucionais), principalmente pelo próprio distanciamento histórico entre os desejos da sociedade e as decisões públicas.

Essa ontologia de conceitos que se enlaçam e se aprimoram, deve ser compreendida para que se perceba a necessidade do desenvolvimento moral desses cidadãos que participam, para que os mesmos possam colaborar nas tomadas de decisões políticas e públicas de forma ética, com base em valores apropriados para a melhoria da qualidade de vida, principalmente pelo provimento dos mínimos de justiça a toda população.