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O eco da democracia grega presente nas sociedades contemporâneas provém da antiguidade clássica, onde Atenas, apesar dos seus mecanismos peculiares de organização social e política, valorizou o componente educativo. Assim, na medida em que aqueles considerados cidadãos participavam ativamente das decisões políticas, aprendiam a dialogar publicamente sobre os interesses coletivos, e a respeitar as decisões tomadas nas então chamadas assembleias (SILVA, 1996), mantendo assim a ordem da polis.

Essa promoção do diálogo entre o poder público e a sociedade pode não ser inédita na história das civilizações, mas é sem dúvida um passo inovador e um grande desafio para a sociedade atual (BAPTISTA, 2008), principalmente pela ampliação de seus horizontes participativos com a cidadania sendo direito de todos.

No Brasil, esses espaços de diálogo se consolidam, dentre outros como as Audiências Públicas, nos Conselhos Gestores, que emergem das propostas de democratização e descentralização das políticas sociais (CORREIA, 2005, p. 40). Alinhada com o resultado da 8ª Conferência Nacional de Saúde, de 1986, juntamente com o Movimento Sanitário, promulga-se, em 1988 a Constituição Federal, denominada “Constituição Cidadã”, instituindo um novo, e peculiar, reordenamento do setor saúde, alicerçado no SUS (BALSEMÃO, 2002, p.2). Universalizou-se o direito à saúde e consagraram-se esses espaços de gestão democrática, com a possibilidade de participação realizada por diferentes sujeitos sociais.

No final dos anos 1990 com o mecanismo de descentralização das políticas públicas ocorreu uma reordenação da organização do SUS, remodelando sua operacionalização em busca da democratização da gestão e do acesso a bens, serviços e ações de saúde em todo o país (AGUSTINI, NOGUEIRA, 2010). A Lei Orgânica da Saúde no 8.080/90 determinou que a gestão, as ações e os serviços do SUS seguissem os princípios estruturantes e acordassem com as diretrizes previstas pela Constituição Federal para a política de saúde. Em ambos os casos, figurou a participação da sociedade. Regulamentando a Lei Orgânica de Saúde, a Lei 8142, de 28 de dezembro de 1990, define as Conferências de Saúde e os Conselhos de Saúde como instâncias mandatórias que, em nível

nacional, estadual e municipal, objetivam o controle social civil na gestão do SUS (BRASIL, 2012a).

A participação de atores da comunidade nos processos de gestão do SUS foi denominada de Controle Social. Nos Conselhos de Saúde o controle social tem como atribuição a participação no processo de formulação de estratégias e no acompanhamento da execução da política de saúde, inclusive nos aspectos econômicos e financeiros. Para tanto, os usuários do SUS, representados por entidades da sociedade civil que detém 50% das vagas e os trabalhadores de saúde, prestadores de serviços e gestores que, juntos, contam com os outros 50%, devem promover o debate sobre a política de saúde, num processo de caráter deliberativo (BRASIL, 2012a).

Criados em 5.563 municípios brasileiros (BRASIL, 2012b), os Conselhos Municipais de Saúde, traduziram-se em pontes diretas entre a gestão global e o poder do conhecimento local, representando um importante passo para a democratização da política de saúde. Ceccim e Feuerwerker (2004) enfatizam que a população próxima aos assentos das instâncias máximas de tomada de decisões, é uma das características que dá ao SUS singularidade histórica e internacional dando à sociedade o direito e dever de participar do debate e da decisão sobre a formulação, execução e avaliação das políticas de saúde.

As reuniões deliberativas dos Conselhos de Saúde, tanto no nível federal e estadual, como no municipal, devem ocorrer ao menos uma vez por mês, podendo intercorrer reuniões extraordinárias. Esses encontros são presididos, na sua maioria, pelos gestores do SUS, sendo que apenas alguns conselhos conseguem eleger internamente seus presidentes. Na esfera federal, o presidente do Conselho Nacional de Saúde (CNS) é o Ministro da Saúde, e nos estados, à exceção do Rio Grande do Sul, todos são presididos pelos Secretários de Estado da Saúde. Já nos municípios observa-se um avanço na questão da presidência dos conselhos, entrando em debate o caráter democrático desse cargo, já que, quando o presidente do conselho é o próprio gestor do SUS, ele torna-se fiscal de si mesmo, homologando as resoluções que ele mesmo assina como presidente. Esse impasse vem sendo debatido nas plenárias de Conselhos e Conferências de Saúde, para que se legitime o caráter fiscalizador democrático dos conselhos (BALSEMÃO, 2002, p.7-9).

A capacitação dos conselheiros de saúde também tem sido um assunto constante nas pautas das Plenárias Nacionais, em especial a capacitação do segmento dos usuários (BALSEMÃO, 2002, p.9-10), solicitada pelos próprios conselheiros representantes desse segmento

BUECKMANN, FERREIRA, 2007; MOREIRA, ESCOREL, 2009). De acordo com Bravo e Correia (2012), um dos desafios posto à prova, após a institucionalização do controle social, foi o cuidado para que este não se torne um mero aparelho de consentimento do Estado, que não se impõe, muito menos delibera, não contribuindo para alguma mudança nas relações Estado-sociedade civil.

Em um estudo que analisou a resolutividade e a efetividade do SUS, tendo como unidade de análise os participantes do Conselho Municipal de Saúde de Florianópolis, evidenciou-se, a deficiência na organização, composição e representatividade desse conselho; nos encaminhamentos das deliberações dos mesmos; na definição do papel do conselheiro e na sua relação com a entidade que ele representa; e uma defasagem quanto aos fatores relativos ao referencial teórico metodológico e ético que orienta as ações dos conselheiros. Por fim, o estudo evidenciou que a participação popular e o controle social, que são condições essenciais para a efetivação das propostas do SUS, parecem ainda permanecer como expectativa e um grande desafio (GRISOTTI, PATRICIO, SILVA, 2010).

A questão da qualidade do processo deliberativo também é abordada no estudo de Wendhausen e Caponi (2002), onde as autoras demonstram o que denominam de “estratégia de silenciamento”, encontrada principalmente nas falas dos representantes do segmento governamental. Este tipo de discurso que “inibe” a linguagem dialógica nas reuniões é altamente prejudicial para um processo que se intitula deliberativo.

Moreira e Escorel (2009) demonstraram que muitas das problemáticas comuns aos CMS devem-se à dificuldade de se chegar a um consenso quanto às questões em pauta nas reuniões, onde o debate não alimenta a construção de um resultado em conjunto e sim tentativas de sobrepujar as opiniões que sejam diferentes das suas. Os autores concordam que apesar da essência democrática participativa da política de controle social do SUS, ainda caminha-se lentamente para a plena consolidação das instituições que tem como responsabilidade viabilizar a participação efetiva deste setor. Mesmo com as dificuldades estruturais e de gestão, os autores identificam que por institucionalizarem a participação da sociedade organizada nesse processo decisório das políticas sociais, os conselhos gestores ainda são os principais exemplos de espaço de participação social nas políticas públicas.

Para que esses espaços não se reduzam a uma razão instrumental, o processo de diálogo entre as três esferas que fundamentam o SUS, trabalhadores, gestores e usuários torna-se peça primordial. Na busca pela

melhoria da qualidade institucional e no seu reflexo na vida da sociedade, tanto o entendimento dessa necessidade dialógica quanto o próprio desenvolvimento do processo de deliberação são desafios atuais dos Conselhos de Saúde.

Pensando em todas essas dificuldades, principalmente voltadas para a efetivação da implementação de políticas públicas, Campos (2000) avaliou a necessidade de democratização institucional e de produção de modos compartilhados de gestão. Batizada de Cogestão (Campos, 2000) esta estratégia foi inicialmente pensada para diluir o poder e, consequentemente, as capacidades assimétricas de decisão dentro das instituições de saúde.

Essa forma de gestão horizontal tornou-se diretriz estruturante da própria Política Nacional de Humanização (PNH) (BRASIL, 2006b) como forma de incentivo à expansão da participação social para além das instâncias formalizadas para o Controle Social, demonstrando a necessidade de: horizontalizar as decisões e humanizar as relações. A questão é entender que as próprias instâncias formalizadas, como os Conselhos de Saúde, não estão imunes a essas necessidades e, que também necessitam de valores que os norteiem assim como os próprios valores de autonomia, protagonismo, corresponsabilidade entre os sujeitos, e o estabelecimento de vínculos solidários consolidados na PNH (BRASIL, 2006b).

A humanização, já antes citada no plano dos valores necessários à democracia participativa, consolida sua necessidade emergente no plano do Controle Social como forma de balizar as decisões tomadas nessas instâncias de poderes e valores compartilhados, embasando o objetivo maior do bem comum a toda sociedade.

Uma problemática dessa concepção de Cogestão, refletida atualmente, é que essa forma de gestão horizontal foi pensada para incorporar os trabalhadores e não propriamente os usuários nos espaços coletivos em que se pretende intervir. Pensando nisso, concorda-se com Guizardi e Cavalcanti (2010):

Na medida em que se limita à dinâmica interna das equipes de trabalho (...) não se questiona suficientemente o funcionamento institucional (...). Sinalizamos, com isso, a necessidade de ampliar o conceito de Cogestão (...) a fim de ultrapassar as práticas de organização do trabalho, em direção à articulação em rede das atividades de produção de saúde no território (2010, p. 1251).

Trabalhar a ideia de uma gestão horizontalizada, com práticas dialógicas e fortemente fundamentada nos valores de humanização parece ser uma forma de ampliar a ideia de cogestão para todo o território, incluindo assim usuários (GUIZARDI, CAVALCANTI, 2010). Desta forma a Cogestão por si deve permear todos os espaços institucionais do SUS, incluindo os próprios conselhos de saúde, onde a proteção normativa já exige essa deliberação horizontal entre os segmentos, cabendo aos conselhos explicitarem os valores que os embasam enquanto esfera decisória.

Deste modo, o Controle Social já estabelecido no SUS, não foge às necessidades visualizadas pela PNH e a Cogestão, principalmente no enfrentamento cotidiano de problemas éticos relacionados aos diferentes valores necessários as tomadas de decisões, problemas estes que, se não dialogados, podem interferir na qualidade e efetividades das decisões tomadas.

4 MARCO CONCEITUAL