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A ópera como gênero apropriado ao estudo dos Gêneros do Discurso

1 O “Estilo Brasileiro” e os Gêneros do Discurso segundo Bakhtin

1.4 A ópera como gênero apropriado ao estudo dos Gêneros do Discurso

A ópera manifesta um processo único e particular de enunciação discursiva, congregando em sua realização diversas artes (música, poesia, teatro, dança, cenografia, pintura, arquitetura, etc.) em um processo que, reconstituído analiticamente, permitirá avanços sobre a questão da referencialidade na música (ocidental) assim como a reavaliação de sua importância (da ópera) na história da civilização como um importante arcabouço de tópicos e gêneros, revelando os modos de existência das sociedades e suas determinações na elaboração de outros gêneros musicais.

A ópera de Elomar Figueira Mello, ainda pouco divulgada e conhecida, apresenta um corpus com abrangente variedade de traços hibridizados em um discurso de extrema riqueza musical, linguística e cultural. Um de seus principais aspectos é o uso frequente do dialeto, atitude coerente com a temática sertaneza34 e o universo de tópicos e sonoridades vocais a eles associados. Marcante é a hibridização entre o gênero lírico operístico e o canto sertanez, criando insólitos contextos dramáticos. O mesmo ocorre com as formas da cantoria regional tradicional, já fartamente reelaboradas por Elomar em seu “Cancioneiro” e as formas eruditas por ele utilizadas cuja mescla gerou soluções de grande qualidade estética. Elomar revela ainda um domínio magistral na elaboração de uma dramaturgia sertaneza brasileira, original em muitos aspectos35, e

34Sertanez: neologismo elomariano: originário do sertão, relativo ao sertão. Elomar contrapõe o termo

“sertanez” a “sertanejo”, no sentido de diferenciar o habitante autêntico do sertão, o sertanez, do habitante urbano de estilo cowboy com indumentária texana, chamado pela mídia de “sertanejo” assim como a “música sertaneja” que é difundida pela indústria cultural, gênero bastante distante do estilo de Elomar.

35 Em sua ópera “A Carta”, Elomar utilizou um raro recurso cênico-musical, com grande efeito dramático.

Na “Cena do Apartamento”, o personagem “Plêiboi”, um tenor, arma uma cilada para estuprar a jovem e bela “Maria”. Na primeira parte da ária o personagem canta de forma sedutora, irônica e jovial, mas a jovem resiste firmemente ao seu convite, mas em certo momento é substituído em cena por um barítono que canta a segunda parte da ária, o tenor não retorna mais. Uma passagem instrumental anuncia o momento em que o “Plêiboi” altera sua personalidade e decide colocar um dopante em uma taça de vinho

gera novos desafios aos cantores líricos, exigindo novas formas de impostação e emissão vocal para a compreensão adequada do dialeto.

O estilo operístico de Elomar surge em decorrência de seu trabalho compositivo no Cancioneiro (que se encontra gravado e disponível em 16 títulos comerciais realizados entre 1970 e 1994). Suas canções impressionam pelas audácias harmônicas de desafiante complexidade e melodias marcantes, estruturadas preferencialmente em um ambiente modal com muitas interferências cromáticas, criando mesclas com o tonalismo.

Elomar é um homem de figura fortemente expressiva, com sua grande cabeleira, suas botinas e roupa de vaqueiro. Dono de vasta erudição e eloqüente oratória fala, escreve e canta com a mesma naturalidade tanto no dialeto sertanez quanto no português mais erudito e complexo. Desenvolveu seu conhecimento musical basicamente como autodidata. Teve mestres de violão na juventude e uma pequena passagem pela Universidade Livre da Bahia, criada por Koellreutter e Widmer (e que talvez tenha influenciado a composição de algumas passagens bastante dissonantes em suas óperas, embora ele diga que não absorveu nada naquele contexto). Debruçou-se sobre partituras, aprendeu orquestração e estruturação formal a seu modo enquanto elaborava seu estilo compondo canções, árias e óperas. Estimulou João Omar, seu filho, extraordinário violonista, ao estudo da regência orquestral e tem nele um colaborador nessa difícil arte. A música de Elomar propõe desafios ao estudioso e revela processos inusitados, com sonoridades estranhas, surpresas e recursos originais. Trataremos nesse

oferecida à moça, criando um clima de crime e trapaça intensificado pela mudança de timbre e registro vocal. Um notável tratamento do corpo em cena e da voz no contexto operístico com novas abordagens dramáticas e psicológicas.

estudo de revelar as vozes múltiplas existentes no discurso elomariano, tecidos em uma mescla de gêneros de grande originalidade36.

A ópera “O Retirante”, com um prólogo e dois atos, tem o libreto escrito pelo próprio Elomar. Conta história de uma família de retirantes do Nordeste, o personagem Vaqueiro, casado com Juana Sinhora e seus filhos, Zezin e Dejanira. Tendo perdido suas terras por causa de empréstimos bancários, retiram-se para São Paulo em busca de sobrevivência. Ao chegar a São Paulo, a família se depara com ambientes degradantes, sofre em extrema pobreza e a história tem um trágico desfecho, que culmina na ópera com a ária chamada de “Cena de Espancamento na Paulista”, que dramatiza a morte de Zezin, o filho adolescente, espancado por um policial até a morte por causa de um assalto à mão desarmada. Elomar já gravou ou interpretou outras cenas da ópera “O Retirante”, como a “Carta de Arrematação” e “Boca da Águas”, que fazem parte do Prólogo37. A “Cena de Espancamento na Paulista” foi “executada em concerto no Nordestilhas, na cidade de São Paulo, em 1994, com a Camerata Kaleidoscópio” (Guerreiro, 2007, p.256) e existe um excerto dessa cena no DVD “Elomar em Sertanias”38.

A dimensão, duração e complexidade do discurso da “Cena de Espancamento da Paulista” impressionam pela força expressiva e fluente articulação formal além da profusão de gêneros que nela se descortinam. A duração é de aproximadamente dezessete minutos e a partitura tem quatrocentos e setenta e cinco compassos. O discurso musical da “Cena de Espancamento na Paulista” é desenvolvido em uma variedade de recitativos, ariosos, árias e breves intermezzi instrumentais. É

36 Elomar transita entre gêneros líricos, dramáticos, roçalianos e eruditos, tanto na música quanto na

literatura, em um diálogo de grande riqueza, o que será demonstrado na análise da “Cena de Espancamento na Paulista” no Cap. 6.

37 O Prólogo é a primeira parte da ópera “O Retirante”, e pode ser realizado separadamente dos Atos I e

II.

escrita para barítono solista acompanhado de orquestra (uma flauta, um oboé, um clarinete, um fagote, um trompete, uma trompa, um trombone e cordas) e também participa um ator mascarado, o espancador.

A “Cena de Espancamento na Paulista” faz parte do segundo ato da ópera: Zezin, o personagem, ao participar de um assalto à mão desarmada é preso em flagrante por um policial que o espanca violenta e impiedosamente por toda a cena até a morte, enquanto Zezin conta sua história, implorando perdão, sendo respondido com mais pancadas. Próximo da morte, seu corpo astral se desprende e seu espírito flutua fora do corpo até sua terra natal e Zezin morre.

A conjunção de recursos musicais e literários utilizados por Elomar, associados ao tema trágico e socialmente atual da violência urbana fazem desta passagem musical um exuberante e expressivo exemplo do estilo erudito elomariano. A profusão polifônica de vozes do sertão, da urbe e das tradições brasileiras e estrangeiras habilmente entretecidas no discurso da “Cena de Espancamento na Paulista” nos pareceram adequadas à abordagem bakhtiniana dos gêneros do discurso.