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Plano estrutural da “Cena de Espancamento na Paulista”

6 Análise do discurso da “Cena de Espancamento na Paulista” da ópera “O

6.2 Plano estrutural da “Cena de Espancamento na Paulista”

A análise semântica das seções será realizada em diálogo com a descrição e explicação do plano estrutural da “Cena de Espancamento na Paulista”, realizando a conexão entre o discurso musical e o discurso literário-dramático-cênico. O diálogo entre o campo semântico e o campo sintático em uma perspectiva bakhtiniana nos permitirá a compreensão dos estilos e dos gêneros atuantes no discurso elomariano na “Cena de Espancamento na Paulista”.

A “Cena”171 é dividida em duas grandes partes:

(1)

compasso 1 ao 209,

(2)

compasso 210 ao 475. A parte (1) tem 8 unidades formais, a parte (2), 11 unidades formais.

1

LáM (T)172 - 8unidades formais - dó#m (Dr-) /MiM (D)

2

LáM (T) - 11unidades formais - MiM (D para Dr) /dó#m (Dr- para T-).

O eixo harmônico é definido desde o início em LáM e confirma a centralidade dessa tonalidade em sua reaparição ou “reexposição”173 (c.210). No entanto, a cadência harmônica na conclusão da “Cena” (c.475) é realizada com a dominante relativa, dó#m

171 Eventualmente nos referiremos à “Cena de Espancamento na Paulista” apenas como “Cena”, em

maíuscula e entre aspas, para evitar prejuízos à fluência do texto.

172 A descrição da cifragem funcional utilizada é: T = Tônica Maior, T- = tônica menor, D = Dominante,

D- = dominante menor, S = Subdominante, Tr = Tônica Relativa, Sr = Subdominante relativa, Dr = Dominante Relativa, Dr- = Dominante Relativa menor, DDr- = Dominante da Dominante Relativa menor DD = Dominante da Dominante, DDD = Dominante terciária da dominante, Di = Dominante Individual.

173 Utilizamos o termo “reexposição” apenas no sentido de enfatizar a recorrência do mesmo material

musical, dividindo a cena em duas grandes estruturas. O material reexposto consta de apenas 12 compassos, seguindo após o c.222, em diferente elaboração e material rítmico-melódico-harmônico completamente novo.

(Dr- para T-), situada quatro 5ªs ascendentes em relação a LáM (T para Sr), criando um enunciado musical de grande importância no discurso harmônico da “Cena” e que determina uma conexão essencial com o sentido do texto e do discurso dramático.

Do ponto de vista semântico, a tonalidade de LáM, representa a vida de Zezin no momento das pancadas e a tonalidade distante, dó#m, significa liberação, expansão, transcendência e a morte de Zezin. O modo menor reafirma o caráter trágico que se desenvolve no discurso da “Cena”. O acorde de dó#m (Dr-) e seu campo harmônico relativo à tonalidade de LáM (T) tem uma função variada e bastante ambígua, porém determinante na estruturação harmônica desta peça. Na tonalidade de LáM, o acorde de dó#m (III grau) tem a nota sensível (que lhe confere o potencial de Dr) e cria uma relação fraca do ponto de vista tonal, conferindo colorido modalizante aos passos harmônicos próximos a este grau. Por isso, as aparições do acorde de dó#m já se caracterizam desde o início da cena como veículos de caráter modalizante nos passos harmônicos, função recorrente em diversas unidades formais.

A oposição entre T e Dr-, ocorre pela primeira vez no c.8, com uma breve resolução (DT) sobre dó#m e logo após, no c.13, aonde Elomar utiliza este acorde como VI grau de MiM, preparando a modulação com uma ampla frase melódica no recitativo. O plano harmônico integral da cena torna clara a função que esta relação harmônica entre T – Dr- – D exerce na totalidade do discurso musical na “Cena”, revelando também uma perfeita combinação no diálogo entre a tensão e estruturação harmônicas e o conteúdo semântico representado174. Elomar polariza as dominantes e tônicas evitando as subdominantes, polarizando o tripé T – Dr- – D em vez de T – S – D175. Esse

174 A utilização da simbologia derivada da harmonia tonal (LáM, dó#m, MiM...) para a análise da música

de Elomar leva em consideração que os processos harmônicos por ele utilizados são mesclas de ambos os gêneros, modal e tonal, tratados com grande liberdade.

procedimente enfraquece o tensionamento harmônico e evidencia o entrecruzamento de processos modais e tonais. As evoluções melódicas, de marcada tendência modal dialogam com esse arcabouço harmônico de pouca estabilidade, criando um constraste cheio de surpresas na oposição entre as tendências melódicas e harmônicas, conferindo uma tensão específica à complexa harmonia na “Cena de Espancamento na Paulista”.

Desenvolver a leitura sintática e semântica da “Cena” em diálogo com o texto do libreto nos permite proceder à exegese dialógica entre os processos harmônicos e os processos literários: a vida e a morte iminente expressas no texto literário, dialogam intimamente com as tonalidades básicas da estrutura (LáM, dó#m e seus satélites), sendo conectadas pelo sentido discursivo-musical.

A tonalidade de origem, LáM, representa a vida de Zezin veiculando sua expressão que é entrecortada pelas pancadas em compasso ternário, caracterizando o que denominamos “Tema do Espancamento”. A primeira aparição do “Tema do Espancamento” (em estilo de mazurca ou valsa) encontra-se no c.113. É assim denominado por causa de sua acentuação rítmica que sugere pancadas. A tonalidade é LáM. O “Tema do Espancamento” ressurge diversas vezes na “Cena”, sempre como figura de acompanhamento para o solista. Associado ao “Tema do Espancamento” encontramos o “Motivo do Espancamento”, uma rápida escala ascendente ou descendente, que ocorre pela primeira vez no c.263, reaparece no c.326, e próximo ao final, retorna no c.446. O “Motivo do Espancamento” surge em aparições solitárias com evidentes conexões dramáticas176. A tonalidade de dó#m (Dr-) representa o término da vida de Zezin, mas dialoga em duplo sentido: o sentido trágico, pela proximidade da

176 Elomar utiliza essas figuras recorrentes de maneira semelhante ao “leitmotiv” wagneriano, que em

nosso trabalho denominamos apenas com o termo “motivo”, por entender que “motivo condutor” seria redundante.

morte violenta, e o sentido de elevação e transcendência, reafirmado ao final da “Cena” com a substituição da tônica LáM, através do procedimento não usual de concluir um trecho (tonal) na dominante relativa177. A tonalidade de dó#m (Dr-) engloba o campo semântico da morte e transcendência, representado pelo retorno à terra natal e ao mundo da infância, no desdobramento astral de Zezin. O acorde de dó#m e sua relação com o eixo em LáM cria entre essas tonalidades um diálogo harmônico intenso (entre T e Dr-) de consequências estruturais determinantes, revelado nos retornos frequentes a esses eixos tonais durante a “Cena”. Existe nesse discurso uma ambigüidade interpretativa – vida/violência e morte/transcendência – a qual deve ser compreendida como potencialidade estético-expressiva que se torna tanto mais evidente na medida em que o discurso se desenvolve. Esses diversos processos – o diálogo entre as tonalidades, a ambigüidade entre os passos harmônicos, os padrões rítmico-melódicos, a orquestração e o dialeto – enunciam uma profusão de gêneros com forte carga cultural, ancestral, histórica e social. Em síntese, a condução harmônica tonal-modal na “Cena” possibilita um contexto bastante expressivo gerado ao redor da tensão criada pelo acorde dó#m entre os acordes de LáM, MiM e também sol#m, Sol#/M e mi m, criando um ambiente harmônico cheio de ambiguidades, onde as oposições Maior x menor e Tonal x Modal, desenvolvem um processo que roça os limites de sentido das funções harmônicas, produzindo uma música sensual, expressiva, harmonicamente “perigosa”. Estabelecemos uma relação semântica entre o jogo “vida x morte” e o jogo “agressor x

177 A “Cena de Espancamento na Paulista”, como ocorre tradicionalmente em outras cenas de ópera,

encadeia-se com outras seções compondo uma grande estrutura sequencial que não constitui uma forma musical no sentido técnico do termo, mas sim, diversas formas musicais integradas em um discurso musical complexo que denominamos “ópera”. Dessa maneira, são comuns terminações de grandes trechos em suspensões harmônicas que se encadeiam na continuidade do discurso musical com outros trechos, como é o caso da “Cena de Espancamento na Paulista” que se encadeia com a cena final dando continuidade ao discurso harmônico. A “Cena de Espancamento na Paulista” e outras cenas e árias de Elomar são estruturas axiais em suas óperas, ao redor das quais são construídas as cenas com coros, danças, recitativos e conexões. A complexidade e forma de estruturação confere a essas seções de óperas independência e completude formais, permitindo sua apreciação estética em separado do todo da ópera.

oprimido”, relações humanas também limítrofes e perigosas, que se expressam em diálogo convergente no discurso literário-musical da “Cena”.

Neste sentido, a contribuição desse estudo calcado nas explicações sobre os gêneros do discurso de Bakhtin se associa às idéias de Ratner sobre os tópicos do discurso musical, em seu diálogo elucidante entre os enunciados musicais e as formas primárias da vida social: da língua prosaica para a literatura e das danças e canções do povo para a música elaborada ou erudita. Essa conexão torna evidente o potencial dialógico da ópera, forma sempre inacabada que, assim como o romance, tem grande potencial para expressar profundamente a essência da sociedade. Embora seja apenas fragmento de uma ópera completa, consideramos que a eloqüência discursiva da “Cena de Espancamento na Paulista” permite uma ampla abordagem do estilo erudito elomariano178, pois nela encontramos uma profusão de mensagens, imagens, estilos, gêneros, práticas e processos que a tornam um campo fértil para a análise bakhtiniana e suas conexões ratnerianas.

178 A expressão, “estilo erudito elomariano” é usada aqui para distinguir suas óperas e outras obras

eruditas das canções de seu “Cancioneiro”. Compreendemos, no entanto que erudita, no sentido laico da palavra, é toda sua obra.