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SEGUNDA PARTE

ÓPIO, SONHOS E DEVANEIOS

O culto romântico do sonho e o ópio

Os neoclássicos haviam voltado os olhos ao ser humano em sua dimensão essencialmente social, a ser analisado à luz da razão. Em nada lhes importava a dimensão noturna e o espaço privado dos sonhos, cujas portas vão ser abertas pelo eu, em seu primado no mundo, estabelecido pelos impetuosos românticos. A partir disso, os sonhos deixariam de ser curiosidades intrigantes, ou perturbadoras, relegadas à periferia da literatura. Manifestações diretas do mundo interior, os sonhos eram portadores de revelações pelas quais não se pode pedir, que não se pode obter pelo esforço, mas que são mais como uma dádiva. Os sonhos eram como o vento da inspiração, tornando o poeta uma harpa eólica – e efêmeros, incompreensíveis como ela.

Se não podiam ser obtidos pelo esforço, ao menos poderiam ser “provocados”. Os românticos buscaram cultivar voluntariamente os sonhos, ainda que fosse em forma de pesadelos. Ou sobretudo pela possibilidade de serem pesadelos, os quais possuíam o que Shelley denominou de “o encanto tempestuoso do terror”. Por isso, os bardos românticos, voltando as costas à sociedade bem educada, lançaram a moda dos alucinógenos, e com ar de tanta solenidade que seus efeitos se fariam sentir muito tempo depois, nos anos de 1960, por outros bardos − os do culto às drogas:

O pintor Fuseli, que pensava que “uma das regiões mais inexploradas da arte eram os sonhos”, comia grandes quantidades de carne crua antes de ir para a cama. Anne Radcliffe, que domesticou o romance gótico nos anos 1790, também recorria a comidas indigestas e passava as horas em que estava acordada explicando os pesadelos provocados por sua dieta. Southey preferia gás hilariante [...] Melmoth, o

descrições de sonhos horríveis que pouco têm a ver com seus enredos centrais [...] algumas vezes [as fantasias góticas] eram estimuladas pelo ópio. Byron tomava

Black drop, um composto popular, como tranquilizante; Shelley tomava láudano

para suas dores de cabeça de origem nervosa [...] Neófitos góticos de menor importância, do tipo satirizado em Northanger Abbey, haviam tentado copiar o sucesso de Horace Walpole por anos, estimulando seus próprios pesadelos: comiam carne estragada após longos períodos de vegetarianismo, liam o maior número de livros recheados de vermes que pudessem encontrar e tentavam fazer com que sua imaginação lampejante se soltasse. Mas logo descobriram que os pesadelos in vacuo, criados em série, não eram realmente assustadores – muito romance, pouca agonia, salvo, talvez, uma indigestão. (ALVAREZ, 1996, p.170)

De fato, esse aspecto sensacionalista do romantismo tinha mais que ver com moda do que com criatividade, e, entre tantos estimulantes, o ópio viria a ocupar uma posição tão proeminente, que, na literatura, bem como na mente popular, passaria a ser sinônimo de “sonhos”, “devaneios” e “visões, e sob sua aura de luz fantástica teria início uma tradição de obras literárias sobre drogas que chegaria até nossos dias, e que teria como representantes mais conspícuos, dentre outros, as Memórias de um consumidor de ópio, de Thomas de Quincey (2002), o extraordinário poema Lothus- eaters [Lotófagos] de Tennyson, Os paraísos artificiais, de Baudelaire, o Haxixe, de Walter Benjamin e o Diário de uma desintoxicação, de Jean Cocteau.

Por mais de 3.500 anos, porém, a droga fora usada como um remédio, ou melhor, não somente um anódino, mas até mesmo uma “cura” para talvez três quartos das moléstias que acometiam os homens, e provavelmente era tão antiga quanto a medicina:

Num tratado de medicina egípcia do séc. XVI a. C, os médicos tebanos foram aconselhados a receitar o ópio para crianças que chorassem, da mesma forma que, 3.500 anos depois, os bebês vitorianos recebiam doses do opiáceo Godfrey’s Cordial, ministradas pelas suas enfermeiras, para mantê-las quietas. (HAYTER, 1968, p. 296)

Na época dos poetas românticos, o ópio era como a aspirina, e podia ser obtido facilmente de farmacêuticos, donos de boticários e médicos como analgésico e antiespasmódico, a preços baixos e sem prescrição (quando Marx se referiu à religião como sendo o “ópio do povo”, ele estava se referindo a esse acesso fácil à droga, e o povo sabia o que ele estava dizendo). Entretanto, seriam os próprios escritores românticos os responsáveis por conferir ao ópio um glamour à base de falsos encantos, dentre eles, o de suscitar sonhos e devaneios, e por ensejar uma série de equívocos, no âmbito da medicina, acerca dos efeitos da droga.

O uso de ópio por um tempo considerável invariavelmente causa dependência física, mas, na época de Coleridge, não havia nenhum conceito de “vício”, no sentido dessa dependência, e pouco se suspeitava acerca dos perigos da droga. Acreditava-se que algumas pessoas fossem passíveis de formar o hábito com o uso da droga, um conhecimento que fazia parte da classe médica, mas que nunca fora devidamente examinado. Por isso, nos séculos XVIII e XIX, um sem-número de pessoas conheceu a experiência do vício acidental, bem como da cura eventual, sem saber o que estava ocorrendo. O mal-estar causado pela abstinência era atribuído a outras causas, como histeria, disenteria ou epilepsia, casos em que o ópio era novamente prescrito, dando continuidade ao círculo vicioso, e a cura ocasional advinha de uma não prescrição de ópio, por algum motivo, quando o paciente poderia ver-se livre do vício após uma crise aguda.

O ópio que Thomas de Quincey e Coleridge consumiram era em forma de láudano, ou seja, a tintura do ópio diluída em vinho ou brandy. Ele também se achava disponível em pó, e estava presente em muitos remédios populares como Kendal Black Drop, Dover’s Powder e Godfrey’s Cordial (HOLMES, 1999, p.11). Em centros de pesquisa laboratorial avançada da época, como na Universidade de Edinburgh e em Gottingen, não havia consenso sobre se o ópio era um estimulante, um alucinógeno ou um sedativo. Na verdade, o ópio apresenta todas essas propriedades, uma vez que contém um dos coquetéis mais ricos da natureza em termos de drogas, das quais os químicos do século XIX posteriormente derivariam a morfina, a heroína, o nepente e a codeína. É possível que os médicos de então não

ousassem admitir para si mesmos os perigos da droga, sem a qual, como se dizia no século XVII, “a medicina seria um homem de um braço”

Visões antigas tendiam a considerar as influências do ópio como “benignas” ou “malignas”. De acordo com as primeiras, o ópio seria capaz de exercer influência sobre a imaginação criativa e a vida do gênio, inspirando, por meio de sonhos ou devaneios aparentados a transes, poesia e prosa poética que de outra forma não poderiam ser compostas. Por outra parte, o ópio também seria responsável pela deterioração da saúde física e pelo abreviamento da vida do dependente; pela deterioração gradual do intelecto, da personalidade e a subsequente depravação moral. O comportamento corporal entraria no cômputo dessas mudanças no dependente – a lividez das faces, os giros rápidos do globo ocular, o emagrecimento. Após um prazer indefinível nos primeiros estágios, acompanhado de sonhos distintos dos normais em virtude de um suposto aguçamento dos sentidos, a droga daria lugar a um sentimento de horror e a manifestações semelhantes às do delirium tremens no alcoolismo, esse mesmo aguçamento dos sentidos só fazendo acentuar a impressão de malignidade, a depressão e a culpa do dependente. Uma concepção bastante gótica, essa, mas ela perpassa um sem-número de escritos sobre o assunto até há um tempo relativamente curto.

Antes dos dias de De Quincey e Coleridge, porém, o relato de sonhos produzidos pelo ópio não figura com proeminência na literatura. Em 1793, Samuel Crumpe escreveu um livro sobre ópio e sobre o uso que se fazia dele no Oriente, particularmente na Pérsia. Crumpe, por sua vez, colhera informações do livro Travels through Persia de Chardin, uma obra que Coleridge provavelmente leu e que seu amigo Robert Southey usou como uma das fontes para seu Thalaba, embora haja indícios de que Chardin tenha confundido o ópio com o haxixe (SCHNEIDER, 1970, p.52).

David Hartley fez referências ambíguas ao ópio em seu relato da teoria dos sonhos, explicando que neles “o estado do corpo sugere”, de entre impressões recentes, “ideias” tais como são apropriadas ao estado de prazer ou dor do estômago, da cabeça ou de alguma outra parte. Ele observou que “uma pessoa que consumiu ópio vê cenas alegres, ou medonhas, na medida em que o ópio incita vibrações

prazerosas ou dolorosas no estômago” (SCHNEIDER, 1970, p. 53). Ou seja, na medida em que produz euforia nos dependentes, e náusea nas pessoas que não são. Por essa observação, pode ser que ele pensasse numa associação entre o ópio e os sonhos, embora seja clara a afirmação de que os sonhos são um reflexo da condição de prazer ou dor do corpo.

Erasmus Darwin, um autor que se mostraria importantíssimo para certas concepções de Coleridge, em seu The loves of the plants descreveu os efeitos do ópio, embora nada dissesse acerca dos sonhos. Já o amigo de Coleridge, Robert Southey, em seu Common-place book, deixou anotações sobre projetos de escrever acerca do que chamou de “visões do láudano”, registrando algumas delas, e dando mostras de acreditar que essas “visões” eram produzidas pela droga, crença talvez alimentada por sua leitura de Chardin (SCHNEIDER, 1970, p. 53). A um de seus temas ele chamou de “o frio em minha cabeça”, com referência aos membros do corpo tornados sensíveis durante um resfriado em dependentes da droga – os olhos, o nariz e a cabeça. A “febre do feno” haveria de atacá-lo em anos posteriores, e há registros das visões que o assombraram durante seu consumo de ópio. Southey também possuía um temperamento instável.

O próprio Samuel Crumpe já havia descrito seu uso para várias enfermidades, inclusive algumas que figuram proeminentemente nas cartas de Coleridge – gota, reumatismo e disenteria – mas, ao que tudo indica, ele ignorava que o uso regular da droga invariavelmente produzia dependência.

Diferentemente de Crumpe, Darwin estava alerta aos aspectos psicológicos do remédio, e já observara sintomas a que chamou de “paixões animadoras da mente, como a alegria, o amor” (SCHNEIDER, 1970, p. 56). Numa passagem de sua Zoonomia, sob a rubrica de “Doenças da Sensação”, Darwin descreveu diversos tipos de delírio. Depois de se ocupar do tipo provocado pela febre, ele analisou um segundo, que ocorre “quando a somatória da sensação aprazível geral se torna demasiado grande” e as ideias que vêm à baila “são tomadas por irritações dos objetos exteriores” (SCHNEIDER, 1970, p. 57). Curiosamente, ele atribui essas manifestações aos “prazeres da vaidade descontrolada”, ou às “esperanças entusiásticas do céu”, considerando essas coisas como fontes possíveis de falsa

euforia ou delírio. Darwin também observa que o ópio, “quando tomado por luxúria, não como um remédio, é tão pernicioso quanto o álcool; assim como o Barão de Tott relata em sua narrativa dos comedores de ópio na Turquia” (SCHNEIDER, 1970, p. 57). A exemplo de outros médicos, porém, Darwin considerava a droga apropriada a quase tudo, tendendo a voltar sua preocupação ao álcool. A impressão que se pode ter de Darwin e Crumpe, exemplos típicos da mentalidade médica do século XVIII, é de que o alcoolismo, sim, era um problema familiar a todos, e, embora houvesse indícios de excentricidades no uso do ópio em países como a Turquia e o Egito, parecia não haver nenhuma consciência geral dos perigos do ópio aos ingleses.

Quanto a isso, Coleridge e De Quincey tiveram muito a ensinar à profissão médica durante um bom tempo. Na verdade, tidos como pioneiros na reflexão acerca da dependência química, gerações de médicos consideraram-nos exemplos de como a droga pode levar à destruição.

A tendência inata tanto de Coleridge como de De Quincey aos sonhos neuróticos parecem ter ido ao encontro de uma voga literária. Nutria-se amplamente o interesse pela análise racional ou psicológica dos sonhos – o espanto que podiam causar em face da impressão de sentidos desconhecidos, seus sentimentos recorrentes de melancolia, medo, perseguição ou de beatitude ocasional, tudo isso rapidamente se disseminava na literatura romântica, particularmente na Inglaterra e na Alemanha. Assim, é lícito afirmar que os escritos em torno de sonhos por parte de Coleridge e De Quincey derivaram mais da conjunção de temperamentos individuais com uma tradição literária do que do consumo propriamente dito de opiáceos.

A literatura germânica de então, da qual De Quincey e Coleridge haviam lido mais do que seus contemporâneos ingleses, estava repleta de registros de sonhos e de discussões sobre eles. Os sonhos eram uma preocupação frequente em Novalis e Tieck, por exemplo. Sabe-se que Jean Paul Richter exerceu influência sobre os escritos visionários de De Quincey. “Permitam-me incorporar num sonho”, escreveu Jean Paul, “alguns pensamentos que tenho a oferecer acerca da educação das princesas”. Essas são as primeiras palavras de um capítulo de Levana, de Jean Paul, de cujo título De Quincey posteriormente se apropriaria (SCHNEIDER, 1970, p.78-

79). Com efeito, os escritores deliberadamente tentaram reproduzir a fantasmagoria mutável dos sonhos, bem como lhes sondar os significados.

Na versão literária dos infortúnios de De Quincey, os sonhos ou alucinações predominam sobre tudo o mais. Mas, até aí, não há novidade: mesmo antes de usar o ópio, ele sempre sonhou muito. Sua vida é particularmente útil quanto ao problema do ópio por fornecer um registro bem documentado do período anterior e posterior a seu uso de um modo pelo qual não é possível ter de Coleridge. Sabe-se hoje que o consumo de ópio não levou De Quincey a trilhar nenhuma outra estrada que ele já não estivesse trilhando.

O documento mais revelador que se tem de De Quincey é um diário datado de 1803, quando ele nem ao menos tinha dezoito anos. Nesse diário, De Quincey fala de suas alucinações auditivas e visuais ainda na infância; de sua fuga da escola e de seu conflito com sua mãe; de seu enorme receio de não causar boa impressão aos outros; de seu fascínio pelos romances de Radcliff (SCHNEIDER, 1970, p.73). Sem ser ainda um consumidor de ópio, seus projetos literários pareciam antevisões do que ele haveria de fazer: “Meu drama árabe será um exemplo de patos e poesia unidos; patos não muito alto, mas fundo” – como a “fronte de Deus” (SCHNEIDER, 1970, p.73). O símile figura na “Balada do velho marinheiro”, este também repleto de patos, e em particular o do pária, o qual parecia assombrar De Quincey. Esses mesmos diários estão repletos de registros de sonhos e devaneios, que atestam já estar o jovem escritor vivendo num mundo semineurótico, semiliterário, sem nenhum uso da droga. Seus pensamentos eram assombrados pelo sentimento de morte e perseguição, flagrante era a sua atração por cenas patéticas de isolamento numa ilha ou no mar: fascinavam-no a “Ode to horror” de Southey, e a ““Balada” do velho marinheiro” (SCHNEIDER, 1970, p. 75).

Um interlúdio de dezoito anos separando esse diário e as famosas confissões de um inglês consumidor de ópio resultou num aumento da envergadura das leituras de De Quincey, amadureceu-lhe o gosto de certa forma, embora, como supõem alguns intérpretes, não o tenha feito amadurecer como ser humano. O ópio e seus supostos sonhos não parecem a diferença entre as duas obras, uma vez que a qualidade “onírica” já está presente ora de modo rudimentar ora declarado naqueles

apontamentos. Tornar-se-iam-se mais variados e vivos, no entanto, os tons de sua paleta, e o escritor ganharia confiança ao descobrir que a experiência com o ópio lhe dava a deixa para fazer o que aparentemente sempre foi seu intuito – fazer de sua própria vida, com sua solidão, patos neurótico e rasgos de soberba o principal tema sobre que escrever. Registrar os sonhos é uma forma de fazer isso, visto que neles os outros, as imagens do mundo exterior e os sentimentos somos nós mesmos. De modo que suas visões oníricas de sólidas construções, o malásio, seus “lagos translúcidos, brilhantes como espelhos” (DE QUINCEY, 2002, p. 74) se convertendo em oceanos, com rostos espocando neles, não passam de anagramas de si mesmo. Não se pode dizer em que medida suas descrições dessas coisas foram inspiradas realmente em sonhos ou no romance gótico e na literatura alemã. Esses interesses De Quincey partilhava em especial com o amigo Coleridge, e eles dão a impressão de matizar os sonhos exuberantes descritos em suas Confissões, classificados subjetivamente de “arquitetônicos”, “lacustres”, “oceânicos”, “orientais”, “relativos a rostos”, dentre outros. Que essas conversas entre os dois eram bem comuns atesta-o o seguinte passo, em que De Quincey alude aos sonhos do primeiro tipo:

Muitos anos atrás, quando folheava as Antiguidades de Roma, de Piranesi, Mr. Coleridge, que estava ao meu lado, descreveu-me uma série de gravuras deste artista, chamadas seus Sonhos, que apresentam o cenário de suas próprias visões durante o delírio de febre. Algumas delas (descrevo de memória a narrativa de Mr. Coleridge) representavam grandes salas góticas, e no chão havia engenhos e maquinismos, rodas, cabos, polias, catapultas, etc., expressão do enorme poder posto em combate e da resistência vencida. Subindo pelas paredes dessa sala havia uma escadaria e sobre ela, subindo os degraus, está o próprio Piranesi; seguindo a escada um pouco mais acima o leitor perceberá que ela termina abruptamente, sem nenhuma balaustrada, não permitindo nenhum passo à frente para aquele que alcançou sua extremidade, exceto em direção ao abismo. O que quer que tenha acontecido ao próprio Piranesi, supõe-se que pelo menos os seus trabalhos terminaram aqui. Mas levantai os olhos, leitor, e contemplai alguns degraus ainda mais altos, nos quais novamente se percebe Piranesi, desta vez postado na extremidade do abismo. Novamente subi os olhos, e mais uma vez fitai alguns degraus ainda mais no alto. E novamente encontramos o

pobre Piranesi em seu trabalho incessante, de subir até que as escadas inacabadas e o próprio Piranesi se perdem na abóboda da sala. Com o mesmo poder de infinito crescimento e repetição procedia minha arquitetura em meus sonhos. No início de minha doença, os esplendores de meus sonhos eram extremamente arquitetônicos, e contemplei tantas cidades e pomposos palácios como jamais viu o olho da vigília, a não ser nas nuvens. (DE QUINCEY, 2002, p.72-73)

A seguir, seus sonhos lacustres dão lugar ao domínio “despótico” de rostos humanos:

Aos meus sonhos arquitetônicos sucediam-se sonhos de lagos e extensões prateadas de água que me perseguiram tanto que temi (apesar de possivelmente parecer cômico a um médico) ser tomado de algum estado hidrópico ou de uma tendência do cérebro que poderia ter-me tornado (para usar uma metáfora) objetivo num estado em que o órgão sensitivo pudesse projetar-se como se fosse seu próprio objeto (...).As águas agora mudavam seu aspecto; de lagos translúcidos, brilhantes como espelhos, se transformaram em mares e oceanos. E então aconteceu uma grande mudança, que ao se desenvolver lentamente como um caracol, durante vários meses, proporcionou-me um tormento infinito e não me deixou antes de ter se desenvolvido até o fim. Até então, o rosto humano já havia entrado em meus sonhos, mas não despoticamente, nem com um poder especial para atormentar-me. Mas agora, o que chamo de tirania do rosto humano começou a acontecer. Talvez parte de minha vida em Londres possa explicar isso. Seja como for, sobre as águas encrespadas do oceano começaram a aparecer rostos; o mar parecia repleto de rostos, virados para os céus, rostos implorando, furiosos, desesperados, surgidos das profundezas aos milhares, por gerações, por séculos. Minha agitação era infinita, minha mente vomitava e movia-se como o oceano. (DE QUINCEY, 2002, p.74)

Nunca será possível dizer se, em seus sonhos “orientais”, o malásio que veio à sua porta e que posteriormente o assombrou foi muito mais do que um vestígio de um antigo projeto de um “conto patético”, do qual um homem negro é o herói:

O malásio foi um terrível inimigo durante meses. Todas as noites tenho sido

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